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A era da critarquia: o governo dos juízes

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05/11/2022 às 15:50

Resumo:


  • A critarquia é uma forma de governo de juízes, com exemplos históricos, como o descrito na Bíblia em relação ao povo de Israel.

  • A Constituição da República estabelece que os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si: Legislativo, Executivo e Judiciário.

  • Existem teorias sobre a atividade criativa dos juízes, destacando-se a interpretativista e a não interpretativista, esta última defendendo o ativismo judicial na interpretação da norma constitucional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Estranhos tempos está vivenciando a nossa Suprema Corte, após a judicialização da política, seguida de politização da Justiça que fizeram com que o STF descambasse para um ativismo judicial que parece não ter fim.

Conforme definição extraída do site wikipedia, critarquia é uma forma de governo de juízes, com vários exemplos na história, sendo o mais marcante aquele descrito na bíblia em relação ao povo de Israel.1

Ora, o tema volta aos holofotes tendo as vistas as recentes e inúmeras decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em temas sensíveis, algumas de ofício e outras mediante provocação.

Pois bem. A Constituição da República, em seu artigo 2º, prescreve que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

No geral, as Constituições Estaduais repetem esse preceito, como a de São Paulo, em seu artigo 5º. Além disso, estipula que é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.2

No tocante aos municípios, temos que eles não possuem Poder Judiciário, e a única função essencial à justiça prevista em sua estrutura é a Procuradoria Municipal (ex: Art. 87 da Lei Orgânica de São Paulo).3

Outrossim, a Constituição Federal nada dispõe acerca da atividade criativa dos juízes.

Por isso, duas teorias despontam acerca da possibilidade ou não do julgador criar normas jurídicas, são elas, a teoria interpretativista e a não interpretativista.

Nesse diapasão, conforme escreve o Delegado de Polícia Rodrigo Perin Nardi4,

Para a corrente interpretativista é impossível que o juiz, quando da interpretação constitucional, crie o Direito, devendo alcançar o significado original da Constituição. O magistrado não poderá se valer de valores substantivos, atendo-se à captação e declaração do sentido dos preceitos expressos na Carta Magna, conforme a vontade do legislador. De outro vértice, a corrente não interpretativista sustenta ser imprescindível o ativismo judicial na interpretação da norma constitucional, ao fundamento de a Constituição ser um organismo vivo, razão pela qual cada geração tem o direito de interpretá-la à sua maneira podendo as normas constitucionais sofrerem uma atualização quanto ao seu significado, conforme o tempo correlato.

Portanto, a corrente que agrega a possibilidade de um ativismo judicial é a não interpretativista.

Contudo, o autor assevera ser inegável que, “na atualidade, o Poder Judiciário, especialmente por intermédio do Supremo Tribunal Federal, com base no ativismo judicial e ante a necessidade de efetivação de medidas de políticas públicas, vem tomando decisões judiciais majoritárias ou contramajoritárias, favoráveis ou não aos anseios da maioria social, fato esse que acaba por agravar, em algumas situações, as instabilidades e divisões sociais, haja vista a extrema insegurança jurídica gerada”.5

Nesse sentido, decisão bastante polêmica foi tomada na ADO nº 26-DF, onde o tribunal enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo.6

A grande crítica presente em relação a essa decisão foi o fato de que a Constituição é expressa quando afirma que não há crime sem lei anterior que o defina (art. 5º, inc. XXXIX), consagrando princípio secular de legalidade, garantia fundamental do cidadão contra os abusos do Estado e viga mestra do Estado Democrático de Direito.

Outra decisão que causou espécie na comunidade jurídica é aquela proferida na ADPF nº 572-DF, acerca das supostas fake news e ataques aos membros do tribunal, verbis:

EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ADPF. PORTARIA GP Nº 69 DE 2019. PRELIMINARES SUPERADAS. JULGAMENTO DE MEDIDA CAUTELAR CONVERTIDO NO MÉRITO. PROCESSO SUFICIENTEMENTE INSTRUÍDO. INCITAMENTO AO FECHAMENTO DO STF. AMEAÇA DE MORTE E PRISÃO DE SEUS MEMBROS. DESOBEDIÊNCIA. PEDIDO IMPROCEDENTE NAS ESPECÍFICAS E PRÓPRIAS CIRCUNSTÂNCIAS DE FATO EXCLUSIVAMENTE ENVOLVIDAS COM A PORTARIA IMPUGNADA. LIMITES. PEÇA INFORMATIVA. ACOMPANHAMENTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. SÚMULA VINCULANTE Nº 14. OBJETO LIMITADO A MANIFESTAÇÕES QUE DENOTEM RISCO EFETIVO À INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE IMPRENSA.7

Na decisão supra, o que mais causou espanto foi o fato do sodalício, de ofício, ter instaurado inquérito para apurar situações ocorridas fora de sua sede, contrariando seu próprio regimento interno, e além disso, mesmo após o requerimento da Procuradoria-Geral da República pelo arquivamento, ter-se negado a fazê-lo, contrariando o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal que consagra o sistema acusatório de processo penal.8

Sobre o tema, judiciosa observação foi feita pelo professor Kiyoshi Harada, nos seguintes termos9:

Contudo, isso é inusitado, não só, por não ter prazo definido para a  conclusão do inquérito, como também, e principalmente, por concentrar nas mãos do Ministro Relator o papel de investigador, acusador e julgador, contrariando o princípio de separação dos Poderes, um dos pilares do Estado Democrático de Direito. (…) Estranhos tempos está vivenciando a nossa Suprema Corte, após a judicialização da política, seguida de politização da Justiça que fizeram com que o STF descambasse para um ativismo judicial que parece não ter fim. Hoje, a Corte Suprema do país que deveria ser o guardião da Constituição passa por cima de seus preceitos ao invadir a competência dos outros dois Poderes. O STF está interferindo até na formulação de políticas públicas, bem como na execução orçamentária, sem que seus membros estivessem legitimados pelo voto popular. (g. n.)

Ora, o professor, de forma lapidar, deixa claro que a Suprema Corte, a despeito de possuir a função de guardião da Constituição, por força de seu artigo 102, tem diuturnamente atropelado seus preceitos e invadido a competência dos outros dois poderes, num autêntico governo da magistratura.

Contudo, a medida mais recente e assustadora tomada no âmbito do Poder Judiciário pelo Tribunal Superior Eleitoral foi a Resolução nº 23.714 de 20 de outubro de 2022, vésperas das eleições, como forma de enfrentamento à desinformação que atinja a integridade do processo eleitoral.10

Contra a resolução, foi proposta a ADI nº 7.261-DF pela PGR, sob os seguintes argumentos, sintetizados pelo relator da ação:

Alega o PGR que “o ato impugnado inova no ordenamento jurídico, com estabelecimento de novas vedação e sanções distintas das previstas em lei, amplia o poder de polícia do Presidente do TSE em prejuízo da colegialidade, do juízo natural e do duplo grau de jurisdição, e alija o Ministério Público da iniciativa de ações ou de medidas voltadas a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições”.

Nesse último caso, de a um só tempo, a Justiça Eleitoral violou diversos dispositivos constitucionais, dentre eles a separação de poderes, haja vista que não compete ao Poder Judiciário legislar de forma típica, além da regra da anualidade eleitoral prevista no artigo 16 da Constituição Cidadã, que impede que a lei que alterar o processo eleitoral seja aplicada até um ano da data de sua vigência.

Portanto, conforme já assentado acima, tais decisões acabam por agravar, em algumas situações, as instabilidades e divisões sociais, haja vista a extrema insegurança jurídica que geram.

Além disso, terminam por conferir a Constituição um caráter meramente nominalista.

Segundo o professor Pedro Lenza, a constituição pode ser classificada quanto à correspondência com a realidade. Eis as suas lições11:

Karl Loewenstein distinguiu as Constituições normativas, nominalistas (nominativas ou nominais) e semânticas. Trata-se do critério ontológico, que busca identificar a correspondência entre a realidade política do Estado e o texto constitucional. Segundo Pinto Ferreira, “as Constituições normativas são aquelas em que o processo de poder está de tal forma disciplinado que as relações políticas e os agentes do poder subordinam-se às determinações do seu conteúdo e do seu controle procedimental. As Constituições nominalistas contêm disposições de limitação e controle de dominação política, sem ressonância na sistemática de processo real de poder, e com insuficiente concretização constitucional. Enfim, as Constituições semânticas são simples reflexos da realidade política, servindo como mero instrumento dos donos do poder e das elites políticas, sem limitação do seu conteúdo”. Isso quer dizer que da normativa à semântica percebemos uma gradação de democracia e Estado Democrático de Direito para autoritarismo. (g. n.)

Por conseguinte, o risco desse ativismo judicial descambar para o autoritarismo é grande, conforme anota Lenza, sendo que cada vez mais o texto se distancia da realidade.

Nada obstante, como já salientado, em alguns casos tais decisões são benéficas para a sociedade.

Por exemplo, a Suprema Corte, na questão de ordem na Ação Penal nº 937-RJ, mediante atividade criativa, consagrou os princípios republicano e da igualdade de todos perante a lei. Eis a ementa do acórdão, verbis:

DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÃO DE ORDEM EM AÇÃO PENAL. LIMITAÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO AOS CRIMES PRATICADOS NO CARGO E EM RAZÃO DELE. ESTABELECIMENTO DE MARCO TEMPORAL DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA. 2. Impõe-se, todavia, a alteração desta linha de entendimento, para restringir o foro privilegiado aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo. É que a prática atual não realiza adequadamente princípios constitucionais estruturantes, como igualdade e república, por impedir, em grande número de casos, a responsabilização de agentes públicos por crimes de naturezas diversas. Além disso, a falta de efetividade mínima do sistema penal, nesses casos, frustra valores constitucionais importantes, como a probidade e a moralidade administrativa. (g. n.)

Ora, apesar dessa última decisão ter consagrado diversos valores constitucionais, têm sido raras situações de tal jaez, sendo, na maioria dos casos, decisões polêmicas e com alta probabilidade de produção de rupturas sociais. Nessa esteira, o Ministro do STF Moraes ensina que12,

O bom senso entre a “passividade judicial” e o “pragmatismo jurídico”, entre o “respeito à tradicional formulação das regras de freios e contrapesos da Separação de Poderes” e “a necessidade de garantir às normas constitucionais a máxima efetividade” deve guiar o Poder Judiciário, e, em especial, o Supremo Tribunal Federal na aplicação do ativismo judicial, com a apresentação de metodologia interpretativa clara e fundamentada, de maneira a balizar o excessivo subjetivismo, permitindo a análise crítica da opção tomada, com o desenvolvimento de técnicas de autocontenção judicial, principalmente, afastando sua aplicação em questões estritamente políticas, e, basicamente, com a utilização minimalista desse método decisório, ou seja, somente interferindo excepcionalmente de forma ativista, mediante a gravidade de casos concretos colocados e em defesa da supremacia dos Direitos Fundamentais.

Entretanto, o próprio ministro tem protagonizado a condução de diversas medidas de duvidosa constitucionalidade, como o inquérito das notícias falsas e as atividades do Tribunal Superior Eleitoral nas eleições de 2022.

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De seu turno, o Ministro do STF Barroso também entende deva haver situações de autocontenção da Corte. Eis suas palavras13:

Nas demais situações – isto é, quando não estejam em jogo os direitos fundamentais ou os procedimentos democráticos –, juízes e tribunais devem acatar as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor-lhes sua própria valoração política. Isso deve ser feito não só por razões ligadas à legitimidade democrática, como também em atenção às capacidades institucionais dos órgãos judiciários e sua impossibilidade de prever e administrar os efeitos sistêmicos das decisões proferidas em casos individuais. Os membros do Judiciário não devem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida –, supondo-se experts em todas as matérias. Por fim, o fato de a última palavra acerca da interpretação da Constituição ser do Judiciário não o transforma no único – nem no principal – foro de debate e de reconhecimento da vontade constitucional a cada tempo. A jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes. (g. n.)

Apesar da advertência do ilustre ministro, de que a jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, vários perfis de redes sociais tem sido bloqueados apenas por discordar das urnas eletrônicas e da forma como foi conduzido o processo eleitoral de 2022.14

De outro vértice, o Advogado da União Marcelo Novelino obtempera que, “nos estados democráticos, a escolha dos valores predominantes deve ser feita por representantes eleitos, pois caso a maioria não concorde, tem a possibilidade de eleger outros. Em síntese: na adjudicação constitucional, o papel do juiz deve ser análogo ao do árbitro de futebol, ou seja, ele tem o dever de agir quando as regras do jogo são violadas a fim de evitar vantagens indevidas, mas não pode interferir no resultado da partida”.15

De seu turno, Mendes e Branco advertem que “para além disso, mesmo considerando que não cabe, em princípio, ao Judiciário, primariamente, a tarefa de universalizar e efetivar direitos sociais, pode-se concluir que é possível que a atuação jurisdicional contribua para o aperfeiçoamento das políticas públicas sociais.”.16

Ora, os autores acertam quando defendem a atuação judicial no aperfeiçoamento das políticas sociais. Seria o caso em que uma empresa estivesse causando significativa degradação do meio ambiente e os órgãos públicos fiscalizadores nada fizessem para fazer cessar essa conduta ilícita e para reparar os prejuízos causados.

Para Nathalia Masson, o ativismo judicial surge da necessidade de se suplantar a inércia deliberandi do Poder Legislativo. São suas palavras17:

Atualmente, o cenário que se desenha para o Poder Legislativo é melancólico: crise de legitimidade e perda desprestígio levaram o Poder a uma nova fase de decadência. Os recentes (e, infelizmente, corriqueiros) escândalos envolvendo compra de votos, troca de favores, manobras de proteção e blindagem entre os pares, bem como os procedimentos corruptos de finalidade exclusivamente eleitoreira, retiraram-lhe a credibilidade e a confiança em seus atos. Adicione-se a isso, o próprio sistema parlamentar de trabalho, que envolve infindáveis debates e discussões de difícil (às vezes, impossível) conciliação entre os grupos opostos, o que faz com a agenda política do país seja constantemente deslocada para o Executivo (sempre ágil na concessão de medidas sanatórias, especialmente as normativas rápidas, como as medidas provisórias) ou para o Judiciário que, num ativismo judicial moderado, mas tornado necessário pelas injustificáveis omissões do Congresso Nacional, tem suprido as ausências do Poder Legislativo. (g. n.)

Nada obstante, olvida a professora que a Constituição não autoriza o Poder Judiciário a suplantar as deficiências dos outros poderes, se transformando num superpoder, ainda mais quando levarmos em conta que essa escolha competiu a maioria dos eleitores do país, num regime democrático.

Finalmente, Eduardo dos Santos, em uma posição mais conclusiva, afirma que18

Assim, o ativismo judicial apresenta-se como um fenômeno constitucionalmente e democraticamente ilegítimo, fundado na arbitrariedade, no achismo e no decisionismo, na crença de que os valores pessoais do magistrado são melhores que os valores da ordem jurídica vigente, como se ele fosse um ser iluminado que sabe o que é melhor para a sociedade, como se sua visão e concepção sobre todas as coisas fossem melhores do que as das demais pessoas, é uma espécie de privatização do público, de substituição do pluralismo democrático consagrado na Constituição por uma aristocracia moral dos magistrados, o que pode conduzir a uma verdadeira juristocracia. (g. n.)

Concluindo, é premente a necessidade do Supremo Tribunal aplicar a autocontenção nos seus julgamentos, se abstendo do ativismo em questões controversas, sob pena de ruptura institucional e afastamento dos demais poderes de suas responsabilidades precípuas, além de que nem todos os problemas sociais se resolvem na caneta.

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Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno Abdalla. A era da critarquia: o governo dos juízes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7066, 5 nov. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100987. Acesso em: 30 dez. 2024.

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