Nunca uma matéria tributária mudou tantas vezes de posicionamento nos tribunais superiores como aquela pertinente a incidência do IPI sobre os produtos importados.
Sucessivas alterações da jurisprudência sem que houvesse modificação legislativa causa muita insegurança jurídica.
É o caso de perguntar: como fica o caso do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial que o exonere do pagamento do IPI na hipótese de superveniência de uma decisão em contrário proferida no recurso extraordinário sob a sistemática de repercussão geral?
A se aplicar o entendimento consagrado pela Corte nos julgamentos dos RREE nºs 949297 e 955227, ambos sob a sistemática de repercussão geral, na sessão do dia 8-2-2023, haveria necessidade de recolher o IPI observados os princípios da irretroatividade, anterioridade e da nonagesimidade.
Essa oscilação jurisprudencial revela, data vênia, insuficiência teórica sobre as noções do fato gerador do IPI em seus múltiplos aspectos.
Por isso convém recapitulá-las.
O fato gerador do IPI, de conformidade com o parágrafo único, do art. 46 do CTN, é a operação com produto industrializado, assim entendida a submissão de produto de qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo.
No mesmo sentido prescreve o art. 3º, da Lei nº 4.502/64 que rege o extinto imposto sobre consumo, ainda em vigor.
Dentro dessa conceituação elástica até o sangue humano embalado pode ser considerado produto industrializado, o mesmo acontecendo com uma madeira serrada.
O aspecto temporal do fato gerador do IPI, normalmente, confundido com o seu aspecto material, consoante os incisos do art. 46 do CTN é:
“I - o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II - a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do art. 51;
III - a sua arrematação, quando apreendido abandonado”.
O referido parágrafo único do art. 51 do CTN, por sua vez, dispõe que:
“Para os efeitos desse imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento importador, industrial, comerciante ou arrematante”.
Não se pode separar em compartimentos estanques o aspecto material do fato gerador do IPI e o aspecto temporal desse mesmo fato gerador, devendo-se interpretá-los conjuntamente, de sorte que se tem por ocorrido o fato gerador do IPI alternativamente no desembaraço aduaneiro no caso de importação, saída do estabelecimento no caso de fabricação nacional, ou na arrematação no caso de produto apreendido ou abandonado.
Há nítida diferença com o fato gerador do ICMS, que é a circulação jurídica de qualquer mercadoria como gênero.
No IPI o fato gerador é a circulação jurídica de produto industrializado, nos termos da conceituação prevista no parágrafo único, do art. 46 do CTN.
No ICMS haverá incidência do imposto em cada operação de revenda. No IPI não haverá incidência do imposto na revenda, a menos que o produto adquirido tenha sido submetido à nova industrialização. Esse aspecto é de vital importância para a compreensão do fato gerador do IPI que não se renova a cada operação, como acontece com o ICMS.
Se pago o IPI de produto importado, por ocasião do seu desembaraço aduaneiro, consoante escrevemos “daí em diante poderá transitar por ‘n’ estabelecimentos comerciais, atacadistas ou varejistas, sem que se possa cogitar de incidência do IPI, a menos que tenha havido qualquer das operações referidas no parágrafo único, do art. 46 do CTN”.[1]
O disposto no parágrafo único, do art. 51 do CTN, a seu turno, não deve ser interpretado isoladamente, mas, dentro do sistema jurídico em vigor, sob pena de consagrar a validade de uma ficção jurídica (atribuição ao fato de uma característica irreal) afrontando o princípio da capacidade contributiva.
O STJ havia pacificado a sua jurisprudência no sentido de não incidência na revenda de produto importado (ED no Resp nº 1.398.721-SC). Porém, logo alterou seu entendimento reputando incidente o IPI na revenda (ED no Resp nº 1.403.532/SC).
O STF, por sua vez, nos autos do RE nº 946.648/55 julgado sob a sistemática de repercussão geral (Tema 906) firmou a tese que “é constitucional a incidência do imposto sobre produtos industrializados - IPI - no desembaraço aduaneiro de bem industrializado e na saída do estabelecimento do importador para comercialização no mercado interno”.
Ambos os tribunais superiores firmam esse novo entendimento no suposto princípio da igualdade material, muito em vigor nos tempos atuais, confundindo-a com a igualdade de direito, protegido em nível de cláusula pétrea (art. 5º, art.60, parágrafo 4º, I da CF).
Com isso, os tribunais citados acabam violentando o princípio da igualdade jurídica à medida que o produto importado é duplamente penalizado com a imposição do imposto, ferindo as normas da OMC de que participa o nosso País.
Por derradeiro, é discutível a competência do STF para julgar essa questão que se limita interpretar textos do CTN, como asseverado no voto vencido prolatado pelo Ministro Dias Toffoli.
Está se tornando cada vez mais frequente a alteração de decisão escorreita do STJ no exercício da suposta competência do STF em questões em que não se ventila matéria constitucional, ao menos de forma direta, como exige a jurisprudência da Corte para conhecer do Recurso Extraordinário.
[1] Cf. nosso Direito Financeiro e Tributário. Dialética, 2022, p.632