Capa da publicação Inquérito das fake news no STF e o sistema acusatório
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O inquérito das “fake news” no STF:

uma possível violação ao sistema acusatório

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4. DA CONSTITUCIONALIDADE DO INQUÉRITO DAS “FAKE NEWS

Antes de adentrar no tópico que aduzirá as possíveis anomalias do Inquérito 4781 DF, é de extrema importância discorrer acerca da constitucionalidade desde procedimento, uma vez que a possibilidade de inconstitucionalidade dele foi levantada por entidades como a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).

A referida Associação, por exemplo, sustentou a ocorrência de violação constitucional em mandado de segurança:

[…] por meio do ato coator, o Presidente do STF “de ofício e em um só ato”:

a) instaurou Inquérito Criminal em claro abuso de poder, pois o Supremo Tribunal Federal não pode se confundir com órgão investigador, em vista do princípio acusatório;

b) designou pessoa específica para conduzir os trabalhos, violando os princípios do juiz natural e da impessoalidade, criando verdadeiro tribunal de exceção;

c) fundamentou o ato em artigo do Regimento Interno da Corte que não guarda similitude fática/equivalência com os fundamentos da PORTARIA, extrapolando os âmbitos conformativos dados pela lei ao ato administrativo, pois (i) os atos investigados não ocorreram nas dependências da Suprema Corte; e (ii) não foram especificadas as autoridades investigadas e sujeitas à sua jurisdição criminal; e também d) ainda que se entenda que o ato seja legal, o artigo de lei (RISTF) utilizado como fundamento para a edição da PORTARIA não foi recepcionado pela Constituição Federal, pois viola o sistema acusatório e a imparcialidade do Judiciário.

Nesse sentido, sustenta que o ato coator: i) é inconstitucional pois “a competência constitucional para requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial é do Ministério Público, nos termos do art. 129, VIII, da Carta da República.”

O mesmo mandado de segurança requereu a concessão de decisão liminar que basicamente solicitava a suspensão da Portaria GP Nº 69 de 14 de março de 2019 (responsável pela determinação instauração do inquérito) e a efetiva participação do Parquet em sua função constitucional junto ao processo de modo a supervisioná-lo:

Desta forma, requer a concessão de liminar, e, ao final, sua confirmação, a fim de que o STF promova:

“a) Concessão de Liminar. a concessão da liminar para que sejam suspensos os efeitos do ato coator (-Portaria nº 69, de 14 de março de 2019, do Gabinete da Presidência do Supremo Tribunal Federal-), garantindo-se o direito líquido e certo dos associados da impetrante de (i) terem segurança para a sua atuação profissional, sem sofrerem o risco de, a qualquer momento e sem conhecerem os motivos, tornarem-se investigados sem a supervisão do Parquet; […]”.

Nesse sentido, aliás, a então Procuradora-Geral da República Raquel Dodge, referendou o pleito da Associação dos Procuradores da República, pedindo o deferimento da referida liminar e assinando o citado Mandado de Segurança.

Para além disso, outro instituto que questionou o inquérito em sede do STF foi o partido político Rede Sustentabilidade através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 572 Distrito Federal.

Ocorre que, de forma geral, não acolhendo o pedido formulado pelo Partido o Supremo declarou a constitucionalidade da abertura do famigerado inquérito, conforme trazido em acórdão proferido pela Corte:

[…] Na sequência, o Tribunal, por maioria, conheceu da arguição de descumprimento de preceito fundamental, converteu o julgamento da medida cautelar em julgamento definitivo de mérito e, nos limites desse processo, diante de incitamento ao fechamento do STF, de ameaça de morte ou de prisão de seus membros, de apregoada desobediência a decisões judiciais, julgou totalmente improcedente o pedido nos termos expressos em que foi formulado ao final da petição inicial, para declarar a constitucionalidade da Portaria GP 69/2019 enquanto constitucional o artigo 43 do RISTF […].” (Grifo meu)

Tendo o Supremo colocado um fim à discussão, em 22 de agosto de 2022 ao conceder uma entrevista ao programa Roda Viva transmitido pela emissora TV Cultura, a já ex-PGR, ao retomar o tema da então postura da Procuradoria-Geral de contrariedade ao inquérito, após posição do Supremo no sentido de declarar a constitucionalidade do caso, Dodge foi clara em acolher e referendar o entendimento da Corte Suprema, uma vez que, em suas próprias palavras:

“[…] me incumbe, como membro do Ministério Público, reconhecer que o Supremo Tribunal Federal tem a última palavra na guarda e na interpretação da Constituição. E uma vez decididas aquelas questões, decidido está, e incumbe a nós dar seguimento e cumprimento às decisões da Corte.”

Portanto, muito embora ainda se discuta temas que se aproximam do preceito constitucional, como princípios que se balizam na CF/88, fica encerrado, por decisão incontestável da maior Corte deste País que, no que diz respeito à constitucionalidade daquele instrumento investigativo, não há mais o que ser objetado.


5. POSSÍVEIS VÍCIOS NO INQUÉRITO DAS “FAKE NEWS

Como foco principal deste trabalho, esse tópico analisa quais são os temas críticos que levantaram discussões acerca da existência, ou não, de irregularidades no inquérito do STF, e fará o seu julgamento acerca da existência de tais.

Basicamente estas se resumem a ferimentos a princípios que encontram base na Constituição Federal e Máximas também acolhidas pela ideia de Estado Democrático de Direito adotado pelo ordenamento brasileiro.

5.1. FERIMENTO AO PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE

No processo penal, vigora o princípio da imparcialidade no que diz respeito à iniciativa de investigação, aos atos do judiciário e ao processamento da causa. Ou seja, o delegado, ao instaurar um inquérito, pugna pela resolução do ilícito, e não pela perseguição de uma determinada pessoa. O MP, por sua vez, busca proteger a ordem social e responsabilizar os infratores, já o magistrado, conduzir o processo, exercendo juízo de valor apenas ao final, na sentença.

Por isso, o próprio Código de Processo Penal aponta casos em que o juiz pode encontrar-se em situação de impedimento ou suspeito. Os casos de impedimento são mais claros e diretos, sem margem de subjetividade, mas ainda que não se enquadre em um desses, ele pode dar-se por suspeito, quanto se tratar de situação em que, por proximidade – de diversas naturezas – com as partes, o julgamento restaria viciado quanto à aparência de parcialidade:

Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:

I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito;

II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha;

III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão;

IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.

Tendo por base o princípio da impessoalidade, é de se auferir que, no momento em que os magistrados do STF, uma vez vítimas, participam diretamente do processo, desde a sua instauração, condução, determinação de diligências e futuro julgamento – já que não há tribunal superior a este para tal – há de hesitar quanto à [real] possibilidade de contaminação subjetiva do magistrado tanto na direção quanto no sentenciamento de uma ação em que ele figura como parte. Nesse sentido ministra Lopes Júnior:

“a imparcialidade é garantida pelo modelo acusatório e sacrificada no sistema inquisitório, de modo que somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória” (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 91. apud NETO, 2021, p. 7)

E, nesse sentido, havendo ferimento à imparcialidade, fere-se, também, o um princípio alçado a exórdio constitucional mediante artigo 37 da Constituição Federal: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]”. (Grifo meu)

Um outro ponto a ser analisado é o fato de que o Ministro Alexandre de Moraes foi realmente escolhido como relator, quando a legislação determina o sorteio.

Partindo direto para a base legal, o Regimento Interno do Supremo em seu artigo 66 diz que “A distribuição será feita por sorteio ou prevenção, mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo.”. O CPP, em seu artigo 75, segue na mesma linha: “A precedência da distribuição fixará a competência quando, na mesma circunscrição judiciária, houver mais de um juiz igualmente competente.”, qual seja, referendando uma distribuição imparcial e aleatória. Ocorre que o referido relator foi taxativamente escolhido pelo então Ministro Presidente, conforme se observa da Portaria GP Nº 69: “Designo para a condução do feito e eminente Ministro Alexandre de Moraes, que poderá requerer à Presidência a estrutura material e de pessoal necessária para a respectiva condução.” (Grifo meu)

Esta questão, inclusive, foi levantada pela ANPR em mandado de segurança impetrado contra a Portaria supramencionada, nos seguintes termos:

Alega que, por meio do ato coator, o Presidente do STF “de ofício e em um só ato”:

[...]

b) designou pessoa específica para conduzir os trabalhos, violando os princípios do juiz natural e da impessoalidade, criando verdadeiro tribunal de exceção;

[…]

(Grifo meu)

Ademais, de forma conclusiva, a título de integração ao tema da obrigatória necessidade de imparcialidade em julgamentos penais, cita-se o seguinte ditado que se popularizou no meio jurídico: “Não basta ao juiz ser imparcial, tem que parecer imparcial”, proveniente do antigo provérbio: “à mulher de Júlio César não basta ser honesta; deve parecer honesta”.

5.2. FERIMENTO AO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO

Primeiramente, importante realçar que, quanto à possibilidade jurídica, ou não e quanto à legalidade, ou não, a instauração de um inquérito em sede do Supremo Tribunal Federal é viável, o Regimento Interno da Corte acolhe essa possibilidade, inclusive, de forma expressa, quando a prevê em seu artigo 43.

Ocorre que questões periféricas e seguintes a esta abertura é que maculam o princípio Acusatório, se traduzindo em um procedimento possivelmente viciado.

Primeiro ponto, as próprias vítimas instauram a investigação. Os crimes que fundamentaram o inquérito têm como vítimas os Ministros do Supremo, ou seja, na prática, quem sofreu as ações dos agentes infratores são os mesmos que determinaram a ocorrência de um processo de investigação, algo aparentemente desarrazoado, tendo em vista que o simples ato de proceder a abertura um processo de inquirição, de uma forma ou de outra, indica uma inclinação no sentido de já ter se convencido de que “ali” há algo de errado.

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Foi nesse sentido que se instituiu o “Juiz das Garantias”, instrumento que busca separar o magistrado que participa da fase investigativa daquele que será julgador da ação penal, uma vez ser mais compatível com o princípio Acusatório que o juiz do processo se paute apenas pelos elementos produzidos em sede da ação, e não pelos da fase extrajudicial. E a ideia é formalizada no artigo 3º-A no Código de Processo Penal (CPP): “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”.

Ademais, o sentido de separação dessas duas fases é tão significativo que a reforma ocorrida no CPP no ano de 2019 (Lei 13.964, de 2019) alterou o trato dos autos do inquérito policial, que não mais compõem os elementos probatórios da fase judicial, justamente para que o julgador não se influencie pelo material colhido no inquérito. Desse modo é que explicam Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa: “Na fase de investigação e recebimento da acusação, atuará o Juiz das Garantias, enquanto na fase de julgamento, o Juiz de Julgamento não receberá, nem se contaminará pelo produzido na fase anterior […]”.

O segundo ponto a ser analisado é a condução do procedimento. Aqui, mais uma vez, quando o Ministro Alexandre de Moraes é escolhido como relator e, por ofício disso, conduz o inquérito, por exemplo, determinando diligências de ofício, há a confusão de funções, quem deveria instaurar e conduzir, que é a autoridade policial, tem sua atribuição usurpada, colocando no polo da acusação a mesma pessoa que, mais à frente, figurará como vítima e julgadora numa possível ação penal. Por isso, o “Juiz das Garantias” e, consequentemente, o Princípio Acusatório também são afrontados nesse caso.

O ponto três é a dúvida quando ao processamento e julgamento da provável ação criminal que se verificará. A despeito do Inquérito 4781 DF ter completado cinco anos de abertura em 14 de março de 2024, provavelmente este resultará em um processo judicial, que por ter como vítima membros do Supremo e ter sua fase extraoficial desenrolada também no STF, será processado e julgado pelo mesmo Colendo Tribunal, o que não poderia configurar maior investida contra o sistema Acusatório.

Ou seja [a embargo de ser repetitivo no presente artigo científico], se a máxima constitucional do princípio Acusatório é justamente a separação entre as instâncias acusadora e julgadora [e obviamente entre réu e ambas referidas instâncias], a situação verificada no caso de investigação aberta, conduzida e futuramente processada pelo Supremo Tribunal Federal não respeitou tal máxima.

Por fim, destaca-se uma consequência de todo esse ferimento ao sistema Acusatório, que é a transgressão da própria Constituição Federal. Como a ideia de separação das funções de acusar e de julgar, é uma das bases de um Estado Democrático de Direito, ou seja, em que o réu tenha seus direitos básicos – julgamento por magistrado imparcial – respeitados, em havendo violação a esse direito, viola-se também a própria Carta Magna.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, foi trazido um embasamento das principais características de um inquérito policial e na sequência, como se deram alguns pontos de extrema relevância no inquérito das Fake News. Isso foi importante porque evidenciou o contraste entre o que é o procedimento padrão e legal ocorrido na prática, e o que se verificou na famigerada investigação.

Derivante disso, foi trazido também o esmiuçamento de tópicos sensíveis do INQ 4781/DF e o que, de fato, dentro deles estaria em contrariedade ao Sistema Acusatório, a saber: (i) a abertura da investigação pela própria vítima – o que contrariou o princípio constitucional da impessoalidade; (ii) a condução deste procedimento, mais uma vez, pela vítima – o que também contraria o último princípio mencionado e o sistema de separação das funções de acusar e julgar; (iii) e uma futura ação penal que, em se tramitando no STF, também violaria o princípio Acusatório, uma vez que os Ministros da Corte seriam os magistrados do caso, apesar de serem as vítimas do processo.

A retomada de todos esses pontos é importante para verificar que a hipótese levantada no início deste escrito, qual seja: “O sistema acusatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é incompatível com a abertura, de ofício, condução e processamento de inquérito pelo mesmo sujeito, o STF”, é confirmada por todo o examinado. E apesar de toda a reverência à decisão daquele que, parafraseando a ex-PGR Raquel Dodge, “tem a última palavra na guarda e na interpretação da Constituição”, qual seja, o Supremo Tribunal Federal, no sentido em que declarou a constitucionalidade do inquérito objeto deste trabalho, respeitosamente, este graduando do curso de direito entende haver pontos em que o referido inquérito fere máximas do Sistema Acusatório – que é um preceito constitucional.

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Sobre o autor
Murilo Benício Magalhães Araújo

Natural de Brasília-DF, Murilo é estudante de Direito pelo Centro Universitário Dom Pedro II. Com passagem por estágios em escritório de advocacia e no MPF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Murilo Benício Magalhães. O inquérito das “fake news” no STF:: uma possível violação ao sistema acusatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7720, 20 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110620. Acesso em: 21 nov. 2024.

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