Capa da publicação Inquérito das fake news no STF e o sistema acusatório
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O inquérito das “fake news” no STF:

uma possível violação ao sistema acusatório

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A abertura de investigação por quem figura como vítima, a condução por quem o instaurou e o seu futuro processamento no mesmo órgão nos levam a questionar a postura do STF no famigerado inquérito das fake news.

Resumo: A presente pesquisa científica foi realizada com o pretexto de levantar itens questionáveis, principalmente no que tange a ferimentos ao Princípio Acusatório, no Inquérito 4781/DF, o intitulado “Inquérito das Fake News”. O procedimento investigativo objeto deste artigo é resultado do entendimento do Supremo Tribunal Federal de que ataques a seus membros, no âmbito das redes sociais, se enquadra no que o artigo 43 do Regimento Interno do Tribunal Supremo descreve como “sede ou dependência do Tribunal”, uma vez as ofensas proferidas contra os membros do Colendo STF se enquadrarem como crime, e, portanto, ensejaram a instauração da investigação no próprio Órgão Colegiado. Esta peça científica analisou tópicos que levantam suspeita de violação do sistema acusatório, tendo em vista alguns gargalos presentes no procedimento, como a abertura da investigação por quem figura como vítima, a condução dele justamente por quem o instaurou e o seu futuro processamento na mesma Casa, isto é, ofensa à máxima do processualismo penal da separação das instâncias acusadora e julgadora. Nesse sentido, a metodologia empregada para desvendar a incidência, ou não, de vícios foi a análise de doutrinas consistentes no tema e jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal e Tribunais Superiores.

Palavras-chave: Acusatório. Inquisitivo. STF. Fake News. Inquérito.


1. INTRODUÇÃO

Com o processo de difusão das redes sociais, as notícias e a comunicação como um todo mudaram de patamar, saindo de uma transmissão mais lenta e controlada, para um trânsito global em questão de segundos. Em virtude disso, é de extrema importância levantar uma discussão acerca da complexidade de todo e qualquer ato administrativo ou judicial que tenha como objetivo controlar informações e determinar as consequências para quem dissemina informações fraudulentas, principalmente com intuito criminoso.

Nessa perspectiva, o inquérito nº 4781/DF, conduzido pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, popularmente intitulado “inquérito das Fake News”, foi instaurado justamente em razão da revelação de uma rede organizada de difusão de falsas informações e crimes por meio cibernéticos. Assim, o referido ato se torna o foco desta pesquisa bibliográfica, uma vez que o referido procedimento inquisitivo levanta muitos questionamentos e dúvidas relacionadas à sua legalidade, principalmente por poder ferir o princípio Acusatório.

Levando em consideração a problemática de entender de que maneira haveria vícios de legalidade no inquérito conduzido pelo STF, esta pesquisa busca, justamente, compreender os pilares de garantia mínima de legalidade e respeito ao sistema Acusatório, pois ele está intrinsecamente ligado a direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal de 1988, que é exatamente a separação das instâncias acusadora e julgadora. Para isso, analisa o que tange a abertura e condução de uma investigação justamente por quem é a vítima do objeto investigativo e que, mais à frente, deve julgar o caso, quer dizer, instaurador, processador, vítima e julgador figurarem na mesma pessoa, em um só polo.

Diante disso, foi levantada a seguinte hipótese: O sistema acusatório adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é incompatível com a abertura, de ofício, condução e processamento de inquérito (INQ) pelo mesmo sujeito: o STF. Esta declaração é discorrida ao longo do presente trabalho, sustendo-se em leis, códigos, jurisprudência e escritos e proclamações de doutrinadores e juristas que se declinam sobre o tema. Por exemplo, quando, no inquérito 4781/DF, o juiz figura em mais de um quadrante, claramente contraria o sistema de separações adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro e típico de um Estado Democrático de Direito, uma vez que o magistrado deve ser um terceiro imparcial. (LOPES JR., 2019, p. 45).

Nesse contexto, esse escrito tem como objetivo o exame dos pontos sucessivos do desenrolar do “Inquérito das Fake News”, e como e onde ele se destoa da configuração comum empregada nos procedimentos forenses. Passará desde a instauração, que ocorreu de ofício, até o provável processamento e julgamento de uma futura ação penal, que é o resultado natural de um inquérito policial (IPL).

Portanto, esta pesquisa compreende o método hipotético-dedutivo, um artigo, baseando-se em bibliografias com fulcro em atingir o mais límpido resultado. Compreende ainda, em um espaço de tempo entre o segundo semestre de 2023 e o primeiro de 2024.


2. A CONFIGURAÇÃO DE UM INQUÉRITO

De início, é importantíssimo entender o que é um inquérito e as suas características. Nesse âmbito, traduzindo-se em uma verdadeira investigação, o INQ é próprio da ceara penal e presta-se a investigar crimes, pois a função de tratar dos ilícitos ocorridos na sociedade, desde o levantamento das primeiras provas até o julgamento do caso, é própria do Estado, sendo chamada de persecução penal. Assim, conforme artigo 2º da Lei de Investigação Criminal Conduzida pelo Delegado de Polícia (Lei 12.830/2013): “As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas do Estado.”.

A título de comparação didática, se há um impasse controverso entre partes em uma relação puramente civil, como uma compra e venda, é perfeitamente possível – e hoje, inclusive, incentivado – que a celeuma seja resolvida da forma mais simples e menos jurídica possível. Ocorre que, em se tratando de questões criminais, a exemplo de um homicídio (art. 121. – Código Penal), é impossível solucionar o transtorno por meios extraoficiais. Nesse prisma, o Poder Judiciário e seus serviços auxiliares devem agir, e o primeiro ato é justamente a instauração, por parte da autoridade policial, de uma investigação para apurar os fatos. Esta questão de “dever” intransponível do Poder Público é tão forte que existem determinados crimes que apenas o Ministério Público pode “tomar a frente” na função de acusar, é o que se chama de Ação Penal Pública.

Portanto, o inquérito policial é um instrumento investigativo que, em seu curso mais comum, é instaurado por uma portaria da autoridade policial – o delegado – e que, no seu decorrer, a polícia – com intervenção/auxílio do Ministério Público (MP) e da Justiça, quando necessária – tenta buscar a verdade acerca do ilícito denunciado ou flagranteado, de modo a perseguir a materialidade e a autoria do crime e, ao determiná-la, encaminhará o feito, com indiciamento ou não (apontamento claro de quem, ao menos, têm direto envolvimento com o ilícito), ao órgão do MP para que este apresente, ou não, denúncia.

Nesse sentido, é o que ministra o doutrinador Capez (2018):

É o conjunto de diligências realizado pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, afim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo (CPP, art. 4º). Trata-se de procedimento persecutório de caráter administrativo instaurado pela autoridade policial. Tem como destinatários imediatos o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (CF, art.129, I), e o ofendido, titular da ação penal privada (CPP, art. 30); como destinatário mediato tem o juiz, que se utilizará dos elementos de informação nele constantes, para o recebimento da peça inicial e para a formação do seu convencimento quanto à necessidade de decretação de medidas cautelares.

Contudo, há dois componentes próprios de INQ que são alvos de muita discussão. O primeiro deles é que, apesar da obrigatória deferência a pilares processuais de um Estado Democrático: o contraditório e ampla defesa (que dimanaram até mesmo em princípios), a investigação se trata de um procedimento pré-processual, em que predomina o caráter inquisitório, sem as características da fase jurídica de um processo. Na prática, isso se traduz em um trâmite propriamente escrito (o que se desencontra com as contemporâneas inclinações da justiça no sentido da oralidade e simplicidade dos atos), sigiloso e sem direito certo de contraditório, o que vai de encontro com a temática inquisitorial (a ser tratada mais a frente) e está traduzido nos artigos 9º e 20 do Código de Processo Penal (CPP):

Art. 9º – Todas as peças do inquérito policial serão, num só processo, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.

Art. 20. – A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.

Logo, esse instrumento investigativo do Estado, por se encontrar no espectro pré-processual, ou seja, antes de se iniciar uma ação penal, alguns elementos que traduzem legalidade e constitucionalidade a qualquer processo – como a publicidade, pautada justamente sobre o princípio constitucional da publicidade – podem ser tolhidos, sendo válido, por exemplo, que o INQ corra em sigilo e sem oportunizar o contraditório aos investigados.

O segundo componente melindroso é o fato de que o inquérito compõe a fase de investigação, isto é, provas robustas são levantadas e organizadas neste momento, mas, na teoria, estas devem se prestar tão somente ao IPL, ao convencimento do delegado para indiciamento ou não e, sequencialmente, ao convencimento Ministério Público para apresentação de denúncia ou não.

Sanada esta etapa, sendo o caso de uma ação penal, o que deve ocorrer é que, via de regra, todo o material probatório a ser considerado pelo juiz em seu julgamento final deve ser produzido no processo judicial, já com as partes definidas (vítima/acusador e réu), de modo a não haver confusão entre duas fazes de configurações e objetivos distintos, é o que diz o próprio CPP no Título de Provas:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Diante desse cenário, já que é certo, inclusive por letra de lei (a exemplo da supracitada), que, de regra, a fase extrajudicial não se confunde com a judicial, embargando inclusive a transferência demasiada de provas de uma fase a outra, há de se mencionar a integração do Juiz das Garantias no ordenamento jurídico brasileiro, que se externa como uma regra procedimental encarregada de garantir que o magistrado que participa da fase de investigação não seja o mesmo a processar a ação do caso. Isso impede que ele contamine o seu convencimento – que precipuamente deveria se dar pelo apurado no processo – com o que verificou no decorrer do inquérito.

2.1. DA MÁXIMA DA SEPARAÇÃO DAS INSTÂNCIAS ACUSADORA E JULGADORA

Para falar da sistemática adotada no Brasil de separação das instâncias é imprescindível remontar aos dois principais e antagônicos sistemas do processo penal, o inquisitivo e o acusatório. O primeiro tem seus moldes na idade média, carregando em sua nomenclatura significados como “inquirição” – que remete à figura da autoridade interrogando o agente – e “inquisição” – justamente o órgão interno da antiga Igreja Católica com característica de tribunal com atribuição de julgar as pessoas identificadas como hereges, blasfemadores, feiticeiros e outros grupos.

Retomando justamente as duas terminologias acima mencionadas, é importante entender que tanto a citada “inquirição” quando a “santa inquisição” adotavam métodos nada republicanos em seus processos, em outras palavras, não havia esforço no sentido de garantir a imparcialidade dos agentes julgadores, muito pelo contrário, o cunho era justamente a fusão entre os papéis de acusar e julgar, e é exatamente esta a característica do sistema inquisitivo, nesse sentido, Capez (2021) explica:

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O sistema inquisitivo, como o próprio nome diz, remonta ao século 12, período da Santa Inquisição e dos Tribunais Eclesiásticos. Nesse sistema, o juiz atua como parte, investiga, dirige toda a produção da prova, acusa e julga.

Indiscutivelmente, esse modelo contraria as bases de qualquer democracia. No Brasil, vigora a ideia de que é descabido que a mesma pessoa que acusa, lá na frente, seja a que julga, isso viola as mais simples regras de separação das funções dentro do processo penal.

O outro sistema é o Acusatório, adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, já que nele há a separação de cada função primordial de uma investigação criminal, qual seja, a de quem acusa, de quem processa e de quem julga, exatamente como leciona Capez (2021):

O sistema acusatório caracteriza-se pela separação das funções de acusar, julgar, defender. O juiz é imparcial e as provas não possuem valor pré-estabelecido, podendo o juiz apreciá-las de acordo com a sua livre convicção, desde que fundamentada. O processo é público e estão presentes as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Assim, um funcionamento do aparelho jurídico que reverencie a típica função de acusar, as garantias mínimas do réu e a imparcialidade do juiz, mais do que legalidade, se alinha com a Constituição de 1988, essa que é extremamente garantista, principalmente no que diz respeito aos direitos basilares da pessoa humana.

Inevitavelmente, toda a construção e evolução do direito brasileiro passa por fatores e fatos históricos de relevância. A exemplo disso, muito do cuidado que o legislador, a doutrina e o Judiciário têm com a garantia de que um processo seja verdadeiramente democrático, equânime e que evite ilegalidades, vem da memória de um momento em que seguranças constitucionais galgadas a muito custo foram rasgadas, que foi a Ditadura Militar – a julgar pelas provas obtidas a partir de torturas.

Sendo assim, hoje procedimentos eivados de ilegalidades tanto estão superados – ou deveriam – que muito recentemente o Congresso Nacional aprovou um projeto que, em um dos seus pontos, mirou exata e precisamente no fortalecimento do princípio Acusatório. Trata-se do “Juiz das Garantias” a partir da Lei nº 13.964/2019, o qual, em palavras simples, determina a distinção entre o juiz que participou da fase de investigação e o juiz que processará a causa, ou seja, não pode ser o mesmo magistrado a conduzir os dois momentos processuais. Esse fato é especificado em cada um dos seguintes artigos do CPP (Brasil) acrescido pela referida Lei:

Art. 3º-A – O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Art. 3º-C – A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399. deste Código.

Art. 3º-D – O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.

A título de complementação, outra ferramenta do ordenamento jurídico brasileiro que visa coibir a parcialidade do julgador são justamente os instrumentos do impedimento e suspeição, aquela é mais certa pois mira os casos em que o magistrado é proibido de julgar por ter algum nível de parentesco ou ligação direta com a parte. Nesse caso, não há margem de subjetividade, já na suspeição, é necessário analisar a concretude, já que se baseia em um juízo de razoabilidade, é o caso do juiz ser amigo íntimo do réu – o que seria exatamente um “amigo íntimo”? A despeito da abstração, estes dois instrumentos são de importante valia à legalidade do processo [penal, principalmente].

Ademais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) referenda a adesão ao sistema Acusatório:

Inexiste controvérsia acerca do modelo acusatório conferido ao sistema penal brasileiro, caracterizado pela separação das atividades desempenhadas pelos atores processuais, pela inércia da jurisdição e imparcialidade do julgador, tampouco de que a cabe ao Ministério Público, na forma do artigo 129 da Constituição Federal, promover privativamente a ação penal pública.

(STJ – Decisão Monocrática – Habeas Corpus nº 640518 – SC – Relatora Ministra Laurita Vaz – Data: 21/01/2021)

Dessa forma, é consenso jurídico que o inquérito, como instrumento investigativo, não pode se furtar de ser fiel a procedimentos que respeitem a separação das instâncias – pelo menos, já que o contraditório e a ampla defesa são elementos propriamente da ação penal, e não da fase pré-processual – que é corolário de um Estado Democrático.


3. DO INQUÉRITO DAS “FAKE NEWS

O inquérito 4781 DF é um procedimento investigativo aberto em sede do STF, pelo próprio Supremo, mais especificamente pelo então Presidente (Pres.) da Casa à época, Dias Toffoli. A instauração, em si, teve fundamento no Regimento Interno do Tribunal, mas sua justificativa jurídica foram crimes praticados por meios digitais.

Os pormenores desta instauração e do seu processamento – que, aliás está ativo ainda no presente ano (2024) – são detalhados neste item 3., a fim de que sejam estabelecidas as discrepâncias procedimentais entre o trâmite de qualquer outra investigação de igual natureza, e esta, em especial. Tal comparativo, atrelado ao que a Constituição Federal e o Código de Processo Penal preceituam, ajudarão a compreender o que há de equívoco no “Inquérito das “Fake News”.

3.1. DA INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO DAS “FAKE NEWS

No dia 14 de março de 2019, com fundamento no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Presidente Dias Toffoli, através da Portaria GP Nº 69, instaurou o Inquérito 4.781 Distrito Federal.

Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.

§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.

O referido instrumento investigativo tem como alvo os autores de “notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi” (STF, 2020) consumados na internet contra a Corte Suprema e seus membros, conforme detalhado pelo Min. Alexandre de Moraes:

[...] atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte [...].

(STF – Inquérito 4.781 DF – Decisão, Min. Alexandre de Moraes, fls 1 – Relator: Ministro Alexandre de Moraes – Data: 26/05/2020).

O supracitado Ministro apontou a prática dos crimes tipificados nos artigos 138, 139, 140 e 288 do Código Penal, quais sejam calúnia, difamação, injúria e associação criminosa, respectivamente; além dos crimes tipificados nos artigos 18, 22, 23 e 26 da Lei 7.170/1983 como fundamentação da instauração.

Para além dos ilícitos apontados, o que substanciou a abertura do Inquérito (INQ) 4781 DF foi a suspeita de financiamento de uma organização criminosa que disseminava as informações falsas e calúnias, além do depoimento dos então Deputados Federais Joice Hasselmann e Alexandre Frota, conforme manifestação do Ministro Moraes na qualidade de Magistrado Instrutor:

[...] os depoimentos prestados pelos Deputados Federais Alexandre Frota e Joice Hasselmann em 17/12/2019, que narraram a existência de um grupo organizado conhecido por Gabinete do Ódio, dedicado a disseminação de notícias falsas e ataques a diversas pessoas e autoridades, dentre elas o Supremo Tribunal Federal.

(STF – Inquérito 4.781 DF – Decisão, Min. Alexandre de Moraes, fls 3 – Relator: Ministro Alexandre de Moraes – Data: 26/05/2020).

Conforme mostrado, o inquérito em questão investiga crimes que vitimaram o Supremo e seus Ministros, mas que, de igual maneira, foi “instaurado por eles próprios” – instaurado pelo Ministro Presidente.

3.2. DA CONDUÇÃO DO INQUÉRITO DAS “FAKE NEWS

Já de início, um relevantíssimo ponto a ser colocado quanto à condução é que a escolha do relator do caso. Se o Presidente [do Supremo] é quem determina [e determinou] a abertura de investigação, existirá um ministro que deve ser escolhido com a função de conduzir inquérito, ou seja, que vai cuidar do trâmite. Ele é quem vai, por exemplo, tomar as decisões das diligências a serem realizadas, em um inquérito policial comum – que acontece em uma delegacia – o delegado é a autoridade responsável por essa função, então, a título exemplificativo, quando a polícia científica precisa examinar um documento para descobrir se este é verdadeiro ou falso, o delegado é quem determina esse ato.

Pois bem, na mesma ocasião em que determinou a abertura desta apuração criminal, Dias Toffoli literalmente escolheu o Ministro Moraes como o relator do caso. Esse fato foi revelado na digitalização da Portaria GP Nº 69 de 14 de março de 2019 resgatada pelo sítio público “Consultor Jurídico”, em que o referido Pres. do Tribunal, à época, decide, nos seguintes termos: “Designo para a condução do feito e eminente Ministro Alexandre de Moraes, que poderá requerer à Presidência a estrutura material e de pessoal necessária para a respectiva condução.”.

Se a investigação foi formalmente instaurada pelo próprio STF, a sua condução também ocorreu da mesma forma. Por isso mesmo, o Ministro Relator Alexandre de Moraes foi constante na oficialidade de cada novo ato do procedimento, de modo que prescindiu provocação de membro do Ministério Público, da autoridade policial ou até de qualquer outra “parte” para a determinação de diligências.

Exemplo disso é a seguinte determinação de busca e apreensão determinada pelo referido Ministro, constante de decisão nos autos do inquérito, em que se fundamenta [a determinação de busca] não em ordem do chefe da polícia ou do Parquet, mas no Regimento Interno do Supremo e do seu convencimento pessoal acerca de relatório gerado no mesmo inquérito:

Em razão de todo o exposto, nos termos do artigo 21 do RISTF,

DETERMINO:

1) A BUSCA E APREENSÃO de computadores, “tablets”, celulares e outros dispositivos eletrônicos, bem como de quaisquer outros materiais relacionados à disseminação das aludidas mensagens ofensivas e ameaçadoras, em poder de [...]

[...]

Expeçam-se os mandados, dirigidos à Polícia Federal, nos termos do art. 243. do Código de Processo Penal. Autorizo desde logo o acesso, pela autoridade policial, aos documentos e dados armazenados em arquivos eletrônicos apreendidos nos locais de busca, contidos em quaisquer dispositivos. Consigne-se a autorização nos mandados expedidos.

Esse agir de ofício do Juiz da Corte Suprema vai em desencontro com a sistemática corriqueira e consolidada no ordenamento e na prática de procedimentos pré-processuais em que a autoridade policial e o Ministério Público são quem requerem a realização de diligências, ficando a cargo do magistrado apenas as questões que exigem autorização judicial para tal (como a quebra de um sigilo telefônico) e o processamento – somente em se tornando uma ação.

Em discrepância a isso, Alexandre de Morais determinou, de ofício, muitas diligências, mesmo que ele próprio, Moraes, seja uma das vítimas do caso investigado, o que, no entendimento dos Advogados e Doutrinadores Criminalistas Felipe Valls Germano e Aury Lopes Jr, configura uma inversão no papel dos polos no processo acusatório criminal: “[...] pode-se observar uma alteração significativa na posição do Ministério Público Federal em relação ao sistema processual penal vigente no ordenamento jurídico brasileiro”.

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Sobre o autor
Murilo Benício Magalhães Araújo

Natural de Brasília-DF, Murilo é estudante de Direito pelo Centro Universitário Dom Pedro II. Com passagem por estágios em escritório de advocacia e no MPF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Murilo Benício Magalhães. O inquérito das “fake news” no STF:: uma possível violação ao sistema acusatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7720, 20 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110620. Acesso em: 18 set. 2024.

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