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Procedimento de execução extrajudicial da garantia hipotecária.

Da constitucionalidade do procedimento à inovação da ata notarial de arrematação

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5. Da ata notarial de arrematação

Conforme mencionado nos tópicos iniciais retro, o contrato é um importante instrumento para circulação de riquezas na sociedade atual, sobretudo para aquisição de bens em geral. Destrinchando-se suas características, tem-se que esse é formado por duas características essenciais: uma material e outra formal. O título, sob o aspecto material, pode ser compreendido como o acordo de vontades que justifica o negócio jurídico escriturado. O título formal, por sua vez, pode ser visto como o suporte jurídico documental que acredita a existência do título material.

Isso posto, passa-se a subsunção dos fatos à teoria. A ata notarial de arrematação é uma inovação trazida pela lei nº 14.711 de 2023. Referido ato é realizado quando da conclusão do procedimento executório da garantia hipotecária, a fim de que ele se perfectibilize para transmitir a propriedade do bem imóvel hipotecado ao seu arrematante.

O documento em análise substitui a carta de arrematação mencionada no revogado decreto-lei nº 70 de 1966.Para o procedimento em questão, mencionado documento era revestido de maior formalidade, visto que para sua formação eram obrigatoriamente necessárias as assinaturas do leiloeiro, do credor, do agente fiduciário e de cinco pessoas físicas idôneas e capazes para figurar como testemunhas do ato realizado.Necessário mencionar, mais adiante, que a mencionada carta também deveria conter cópia dos autos do leilão, onde eram descritas as condições nas quais o bem foi arrematado, e a descrição do imóvel, indicando-se sua matrícula e respectivos registros constantes nesta.

Neste ponto, necessário valer-se da hermenêutica jurídica, sobretudo do critério histórico para interpretar os fatos expostos neste tópico. O revogado decreto-lei nº 70 de 1966 previa que a mencionada carta era título hábil a ser transcrito24 no Registro de Imóveis. Informava o legislador infraconstitucional, ainda que de modo indireto, que a carta representava o suporte documental adequado para acreditar a existência do leilão narrado no auto lavrado. Tal raciocínio foi corroborado pelo legislador processual civil de 1973, que previu no §3º do art. 700. do revogado código semelhante disposição. O atual CPC não dispõe de previsão normativa expressa de mesmo sentido, embora ainda determine a expedição da carta após transcorrido o prazo para impugnação da arrematação realizada, conforme o texto do §3º do art. 903.

Importante perceber que não se discute a registrabilidade dos documentos que ora são comparados. A lei nº 6.015 de 1973, em seu art. 167, item 26, elenca que a arrematação em hasta pública é ato passível de registro perante a serventia competente, sem mencionar o documento pela qual é acreditada. Através dos fatos expostos, entende-se que a carta de arrematação é o título hábil para gerar a aquisição de propriedade pelo arrematante, visto que,sendo o documento que se origina do contrato acessório firmado entre vendedor e leiloeiro, perfectibiliza o contrato principal de compra e venda realizado entre o credor da garantia e o arrematante do bem, escrito particular plenamente registrável pelo disposto no II do art. 221. da lei de registros públicos.

A impropriedade da ata para o fim almejado pela norma pode ser também demonstrada através de breve consideração de sua natureza.De acordo com os tópicos já abordados, a ata notarial é instrumento destinado à narração dos fatos jurídicos presenciados ou verificados pessoalmente pelo tabelião de notas. Percebe-se a primeira incorreção ao ler o texto do §11º do art. 9º da lei nº 14.711 de 2023, visto que a ata notarial em questão será necessariamente lavrada após a ocorrência do leilão do bem dado em garantia, sem que haja a necessária presença do tabelião. Pode-se suscitar, todavia, o argumento de que ao tabelião seria conferido o poder de realizar juízo de valor sobre os documentos que devem ser apresentados pelo interessado, tal como realizado nas atas notariais de constatação de posse, sem que tenha presenciado o fato por si narrado. Necessário observar, para responder a afirmação elencada, as previsões que demonstram as limitações impostas ao tabelião na prática de tais atos. Quanto à ata destinada à usucapião extrajudicial, se deve lembrar que existe previsão expressa nas normas da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo determinando que o citado documento colabora apenas para fins de instrução do pedido, sem ser capaz de transmitir a propriedade para o solicitante. Analisando-se a citada ata notarial para aquisição de nacionalidade espanhola, por sua vez, vale observar que esta somente é realizada após a aprovação do pedido pelo Ministério de Justiça local. Veja que o notário somente atua após o pronunciamento por parte do órgão público em questão. Considerada a irregularidade do meio utilizado para a transmissão da propriedade ao arrematante do bem hipotecado, sugere-se, no tópico seguinte, proposta de lege ferenda para sanar o equívoco comentado.

5.1. Da proposta de alteração da lei nº 14.711/2023

A fim de aprimorar a redação atual da referida legislação, diante do estudo realizado, sugere-se as seguintes alterações:

PROJETO DE LEI Nº XX, DE 2024

Altera os §§1º, 2º e 11º do art. 9º da lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2024, bem como acrescenta o §1º-A

O Congresso Nacional decreta:

Artigo 1ºAcrescenta-se ao art. 9º da lei nº 14.711º, de 30 de outubro de 2023, seguinte §1º-A:

“Art. 9º .........................................................

§1º-A Poderá o devedor manifestar-se, de forma fundamentada, perante o cartório de registro de imóveis, nos termos do art. 396. da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Havendo fortes indícios de veracidade das alegações tecidas pelo devedor, poderá o oficial de registro de imóveis, a seu critério, remeter o feito para análise do juízo competente, a fim de que se manifeste sobre os fatos discutidos, aplicando-se, no que couber, os dispositivos atinentes ao procedimento presente nos artigos 198 e seguintes da lei nº 6.015, de 1973.”

Art. 2º O texto do parágrafos 1º, 2º e 11º do art. 9º da lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023, passam a vigorar com a seguinte redação.

“Art. 9º ............................................................

§ 1º Vencida e não paga a dívida hipotecária, no todo ou em parte, o devedor e, se for o caso, o terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos serão intimados pessoalmente, a requerimento do credor ou do seu cessionário, pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, para purgação da mora ou manifestação de eventuais razões impeditivas no prazo de 15 (quinze) dias, observado o disposto no art. 26. da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, no que couber.

§ 2º.Em caso de não purgação da mora no prazo estabelecido no § 1º deste artigo, ou do não acolhimento das razões apresentadas pelo devedor, nos termos do §1º-A, autoriza-se o início do procedimento de excussão extrajudicial da garantia hipotecária por meio de leilão público, e o fato será previamente averbado na matrícula do imóvel, a partir do pedido formulado pelo credor, nos 15 (quinze) dias seguintes ao término do prazo estabelecido para a purgação da mora.

...................................................................................

§ 11. Concluído o procedimento e havendo lance vencedor, os autos do leilão e a respectiva carta de arrematação serão remetidos ao oficial de registro de imóveis para a realização do registro do ato perante a matrícula do imóvel, nos termos do art. 167, I, item 26 da lei nº 6.015 de 1973.”

JUSTIFICATIVA

O presente projeto de lei objetiva oferecer uma proposta para aperfeiçoar o texto da lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Fala-se, especificamente, sobre o procedimento de execução extrajudicial da garantia hipotecária, presente no art. 9º e seus respectivos parágrafos.

Em primeiro lugar, deve-se observar a necessidade de se garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa no procedimento, vide inciso LV do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Conforme se depreende do atual texto dos dispositivos analisados, não é possibilitado ao devedor qualquer forma de se defender de maneira efetiva durante o procedimento, situação essa que deve ser corrigida. Busca-se introduzir uma pequena possibilidade de que o devedor comprove, ao menos, que não incorreu em mora por ação ou omissão que não lhe sejam imputáveis. Eventuais discussões sobre revisão contratual e demais temas deverão ser objeto de ação própria para o tema.

Segundo,o instrumento escolhido para efetivar a arrematação do bem dado em garantia não representa o meio adequado para tal finalidade. Deve-se relembrar que todos os títulos que consubstanciam um negócio jurídico possuem dois aspectos fundamentais: um material e outro formal. O título, sob o aspecto material, pode ser compreendido como o acordo de vontades que justifica o negócio jurídico escriturado. O título formal, por sua vez, pode ser visto como o suporte jurídico documental que acredita a existência do título material. Isso posto, deve-se considerar que a carta de arrematação, em verdade, é que deve ser o documento hábil a perfectibilizar a arrematação da garantia hipotecária, conclusão esta que pode ser obtidaatravés de uma interpretação lógico-sistemática do ordenamento jurídico.

Com base em todos os motivos narrados, entende-se que a proposta contribui para o aperfeiçoamento da legislação nacional. À vista do exposto, conta-se com o apoio dos nobres pares nessa iniciativa.

Sala de sessões, em ____ de ____________ de 2024

Paulo Eduardo Melo Cavalcante do Espírito Santo.


Conclusão

Conforme mencionado no início do trabalho, a teoria do fato jurídico deve ser adequadamente aplicada aos fatos cotidianos, sob o risco de se criar instrumentos jurídicos inadequados para reger as relações sociais entre os cidadãos. A vontade humana, fonte principal de todos os acontecimentos que regem o mundo atualmente, deve ser regulamentada com equilíbrio, permitindo-se espaços de livre atuação, mas também limites que permitam a preservação da dignidade de todos os seres humanos.

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Em razão do constante desenvolvimento das relações sociais, criaram-se muitos instrumentos para dar efetividade aos direito. Ressalta-se, entretanto, que não foram formuladas, de início, hipóteses plausíveis para saber quem será o responsável para tanto. Na ausência de demais atores, tem o Judiciário se ocupado de tal papel. Ocorre, todavia, que o mecanismo estatal não tem sido capaz de atender à excessiva carga de trabalho oriunda de uma grande judicialização de demandas que assombra o referido poder.

Em virtude deste fato, cada vez mais buscou-se auxílio do notariado brasileiro. A importância destes juristas deve ser reconhecida, visto que, por exemplo, atuam diariamente na formalização jurídica da vontade das partes, realizam aconselhamentos jurídicos, certificam fatos e preservam documentos. Criaram-se, portanto, dispositivos como o decreto-lei nº 70/1966 e a lei nº 14.711/2023.

Por todos os motivos expostos, foram analisados os argumentos que defendem tanto a constitucionalidade quanto a inconstitucionalidade do procedimento de execução extrajudicial da garantia hipotecária.

Deve-se observar, neste ponto, o principal equívoco no procedimento estudado. Fala-se na impossibilidade de que o devedor hipotecário exerça de maneira efetiva o contraditório e a ampla defesa durante a excussão do bem em âmbito “administrativo”. Esta defesa, veja, não deve ser semelhante às possibilidades oferecidas pelo Poder Judiciário, haja vista as diferenças notáveis entre as duas esferas, sendo a do referido poder mais habilitada a ofertar maiores possibilidades para tutelar o direito das partes. A fórmula do devido processo legal não é mecânica, dado que ela se adequa às características das demandas sociais que marcam uma sociedade, sobretudo através do constante julgamento de inúmeras demandas pelo Judiciário, poder este que desenvolve importante papel na interpretação cotidiana do direito. Contudo, inegável se mostra que não há defesa mínima passível de ser suscitada no procedimento, dado que ao devedor somente é possibilitado o pagamento da obrigação. Entende-se como cabível a hipótese de que seja garantido, ao menos, a possibilidade de que o devedor comprove os motivos de sua mora, nos termos do art. 393. do Código Civil de 2002, já que todo o procedimento se origina do não adimplemento da obrigação assumida. Repisa-se, a ampla defesa e o contraditório devem ser garantidos tanto em procedimentos de natureza administrativa quanto judicial. Não se pode sustentar que o mero cumprimento de uma obrigação contratual seja capaz de afastar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Deve ser garantido ao devedor a possibilidade de comprovar os motivos de sua mora perante um jurista dotado de fé pública, tal como o notário. A disponibilização de uma tutela repressiva, no presente caso, se mostra excessivamente onerosa ao devedor, que nada poderá fazer para reaver o bem, uma vez perpetuada a arrematação, mas tão somente perseguir a possibilidade de uma indenização por perdas e danos. A primeira correção na proposta de lei sugerida foi realizada com base em tais fatos.

Superados tais tópicos, adentrou-se na análise das peculiaridades da ata notarial. Relembra-se que sua natureza, no ordenamento jurídico brasileiro, é eminentemente narrativa, visto que através dela certifica o notário a existência dos fatos por si relatados de maneira imparcial, garantindo-se segurança jurídica através da função realizada. Por falta de ampla produção legislativa, poucas foram as hipóteses em que o objeto do referido documento notarial foi expandido. Tal escassez de produção normativa pôde ser observada pelos breves apontamentos das diferentes espécies de ata notarial que vigem no direito espanhol.

A ata notarial de arrematação, embora seja de fato inovação legislativa na matéria discutida, foi concebida erroneamente. Através de uma equivocada concepção da natureza do instrumento, que é destinado a narrar atos jurídicos stricto sensu, ou até mesmo negócios jurídicos, desde que não dependam estes da ata notarial para gerar efeitos jurídicos, criou-se uma possibilidade que não condiz com a realidade brasileira. Conforme elencado no tópico em questão, determinados negócios exigem a coexistência de um título formal para que o direito material, objeto do pacto entre as partes, possa existir. Analisando-se tanto o texto dos dispositivos do Código de Processo Civil de 1973, quanto de 2015, chegou-se a conclusão de que o legislador estabeleceu, ainda que de maneira indireta, a carta de arrematação como título formal apto a perfectibilizar a existência da arrematação realizada pelo leiloeiro. Por não haver maiores especificidades quanto ao objeto da nova ata em espécie, entende-se como insustentável juridicamente o dispositivo do §11º do art. 9º da lei nº 14.711/2023, visto que a ata notarial de arrematação não é capaz de figurar como título apto a transmitir a propriedade do devedor ao arrematante.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTO, Paulo Eduardo Melo Cavalcante Espírito. Procedimento de execução extrajudicial da garantia hipotecária.: Da constitucionalidade do procedimento à inovação da ata notarial de arrematação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7967, 24 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113653. Acesso em: 5 dez. 2025.

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