Capa da publicação Feminicídio no Brasil: da invisibilidade à lei específica
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A evolução do tratamento jurídico do feminicídio no Brasil.

Da invisibilidade à consolidação de uma legislação específica

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18/06/2025 às 18:34
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O feminicídio passou a ser crime autônomo com a Lei nº 14.994/2024. A mudança é eficaz no combate à violência de gênero ou apenas simbólica?

Resumo: Este Trabalho de Conclusão de Curso analisa a evolução do tratamento jurídico do feminicídio no Brasil, desde sua invisibilidade histórica até sua recente consolidação como crime autônomo com a promulgação da Lei nº 14.994/2024, conhecida como Pacote Antifeminicídio. A pesquisa examina o contexto histórico-cultural da violência de gênero, o avanço legislativo e os marcos normativos fundamentais, como a Constituição de 1988, a Convenção de Belém do Pará, a Lei Maria da Penha e a Lei nº 13.104/2015. A análise destaca a transformação jurídica que culminou na criação do artigo 121-A do Código Penal, conferindo maior autonomia normativa e gravidade à conduta do feminicídio. O trabalho também discute os limites do punitivismo como resposta à violência estrutural de gênero, propondo a reflexão sobre a efetividade das políticas públicas e a necessidade de abordagens integradas e preventivas no enfrentamento da violência contra a mulher.

Palavras-chave: Feminicídio. Lei nº 14.994/2024. Crime autônomo. Violência de gênero. Direito penal. Políticas públicas. Patriarcado.

Resumo: 1. Introdução. 2. Contexto histórico e cultural. 2.1. Origem dos termos “femicídio” x “feminicídio”. 2.2. Marco histórico. 2.3. Breve histórico sobre a sociedade patriarcal. 3. Avanços no Direito Penal e Direitos Humanos. 3.1. Constituição federal de 1988: reconhecimento à igualdade entre homens e mulheres. 3.2. Convenção de Belém do Pará. 3.3. Lei Maria da Penha. 3.4. Lei do Feminicídio. 4. Legislação posterior e complementar. 4.1. Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019). 4.2. Lei nº 14.164/2021: medidas para prevenção do feminicídio nas escolas. 4.3. Lei nº 14.857/2024: sigilo do nome da ofendida visando proteger a identidade da vítima. 5. Feminicídio como crime autônomo. 5.1. Lei nº 14.994/2024 – “Pacote Antifeminicídio”. 6. Conclusão.


1. Introdução

O presente trabalho pretende examinar a evolução jurídica do feminicídio, desde sua concepção, até sua consolidação como lei de relevância central no sistema jurídico-penal. Para compreender a lei (Lei 14.994/2024), é fundamental conhecer o contexto histórico que levou esse tipo de violência a ser o que é hoje, junto com isso leis pioneiras criadas na tentativa de combater, ou, pelo menos, reduzir estes crimes.

Para entender o crime de feminicídio conforme a nova legislação, é importante compreender o tema de forma geral e os motivos que levaram às mudanças recentes. Segundo Alice Bianchini, professora doutora em Direito Penal pela PUC/SP, no artigo “A Qualificadora do Feminicídio é de Natureza Objetiva ou Subjetiva?”, o feminicídio se define da seguinte forma:

“Para configurar feminicídio, bem se sabe, não basta que a vítima seja mulher. A morte tem que ocorrer por razões de condição de sexo feminino” que, por sua vez, foram elencadas no § 2º-A do art. 121 do Código Penal como sendo as seguintes: violência doméstica e familiar contra a mulher, menosprezo à condição de mulher e discriminação à condição de mulher”

(BIANCHINI, Alice. A Qualificadora do Feminicídio é de Natureza Objetiva ou Subjetiva? Revista de Direito Penal, São Paulo, v. 45, n. 3, p. 205, 2016.)

Historicamente, a violência contra a mulher esteve naturalizada e invisibilizada tanto na sociedade quanto nas estruturas jurídicas do Estado. Crimes letais cometidos contra mulheres, muitas vezes no contexto doméstico ou motivados por discriminação de gênero, eram enquadrados como homicídios comuns, desconsiderando as especificidades e a motivação estrutural que os caracterizam. Foi somente com o avanço dos debates feministas, a pressão de organismos internacionais de direitos humanos e a mobilização da sociedade civil que o Estado brasileiro começou a reconhecer e enfrentar, ainda que tardiamente, a gravidade do feminicídio como um fenômeno distinto e alarmante.

Com base em doutrinas, jurisprudências, legislações comparadas, estudos empíricos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, esta pesquisa busca demonstrar que o reconhecimento normativo do feminicídio é parte de um processo maior de transformação social e jurídica. A análise propõe-se a investigar não somente o conteúdo da nova lei, mas o caminho trilhado até sua promulgação, os desafios enfrentados para sua efetividade e as perspectivas futuras de enfrentamento à violência de gênero no Brasil.

O presente trabalho pretende contribuir para a reflexão crítica sobre o papel do Direito Penal na proteção dos direitos fundamentais das mulheres, enfatizando a importância da legislação como instrumento de transformação social. O enfrentamento do feminicídio exige uma abordagem multidisciplinar e integrada, que vá além da punição, alcançando também a prevenção, a educação e a desconstrução de padrões culturais que sustentam a desigualdade de gênero.


2. Contexto histórico e cultural

2.1. Origem dos termos “femicídio” x “feminicídio”

O termo “femicídio” foi utilizado por Diana Russell pela primeira vez durante o Tribunal Internacional sobre Crimes contra as Mulheres, realizado em 1976, em Bruxelas, para descrever o assassinato de mulheres motivado por ódio, desprezo ou sentimento de posse por parte dos agressores, geralmente em contextos marcados pela desigualdade de gênero.

Em uma de suas apresentações aos diversos casos de feminicídio ao tribunal, foi precedida de uma pequena introdução de Russell, que segue:

“Nós devemos entender que muitos homicídios são de fato femicídios. Devemos reconhecer a política sexual do assassinato. Da queima de bruxas no passado ao mais recente e difundido costume do infanticídio feminino em muitas sociedades, até a morte de mulheres por “honra”, nós entendemos que o femicídio está acontecendo há muito tempo. Mas, como envolve meras fêmeas, não existia nome para isso até que Carol Orlock inventou a palavra “femicídio” (RUSSELL & VEN, 1976, p. 104, tradução).

Na América Latina, os termos femicídio e feminicídio são usados para se referir à morte violenta de mulheres por questões de gênero. Esses termos têm origem na palavra inglesa femicide, popularizada em 1992 com a obra Femicide: The Politics of Woman Killing, organizada por Diana Russell e Jill Radford, que destacaram o feminicídio como um crime que reflete as estruturas patriarcais e a desigualdade de gênero. Russell define o femicídio como o extremo do terrorismo antifeminino, envolvendo abusos físicos e verbais, exploração sexual, assédio e outras formas de violência, como maternidade forçada e cirurgia estética. Assim, o conceito abrange qualquer morte feminina relacionada ao terrorismo sexista, como violência doméstica ou aborto clandestino. Para a autora, o termo femicide ajuda a esclarecer a natureza de gênero do crime, ao contrário de termos como homicídio, que são mais gerais.

A importância da nomeação do termo, foi retratada conforme o “Dossiê Feminicídio” da Agência Patrícia Galvão:

“Nomear o problema feminicídio é um passo fundamental para quebrar a invisibilidade do problema, desconstruir estereótipos discriminatórios e denunciar a permanência dos assassinatos de mulheres por razões de desigualdade de gênero e raça. Mas, além de nomear, é preciso conhecer sua dimensão e desnaturalizar práticas, enraizadas nas relações pessoais e nas instituições, que contribuem para a perpetuação de mortes anunciadas.” (Dossiê Feminicídio, 2016).

O conceito foi amplamente discutido e adaptado ao contexto da América Latina por autoras como a antropóloga mexicana Marcela Lagarde, que incorporou a dimensão sociopolítica ao termo, argumentando que:

“Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer. Mais ainda quando as autoridades não realizam com eficiência suas funções. Por isso o feminicídio é um crime de Estado” (LAGARDE, 2004, p. 6).

Essa adaptação teve grande impacto em países como México e Brasil, onde o feminicídio é visto como um fenômeno sistêmico, relacionado à marginalização das mulheres em contextos sociais e institucionais.

No Brasil, a introdução do feminicídio na legislação penal, por meio da Lei nº 13.104/2015, consolidou o conceito jurídico, reconhecendo o feminicídio como uma qualificadora do homicídio e enfatizando sua motivação de gênero. Contudo, o termo já vinha sendo debatido por juristas, sociólogos e movimentos feministas nacionais como um elemento indispensável para a compreensão e enfrentamento da violência extrema contra as mulheres.

Assim, o feminicídio ultrapassa a esfera meramente criminal, configurando-se como uma categoria teórica e política que permite uma análise crítica das desigualdades estruturais que sustentam a violência de gênero, além de orientar a formulação de políticas públicas voltadas à sua erradicação.

2.2. Marco Histórico

A tipificação legal do feminicídio nas legislações de diferentes países configura-se como um fenômeno relativamente recente. No entanto, relatos de mortes violentas de mulheres aparecem ao longo da história, inclusive em textos religiosos. Embora os conceitos de violência de gênero e feminicídio sejam modernos, já na Bíblia há registros que podem ser interpretados como manifestações dessa violência.

Um dos primeiros episódios conhecidos de tentativa de feminicídio encontra-se no Evangelho de João (8, 1-11), na passagem sobre a mulher adúltera. Segundo o relato bíblico, Escribas e Fariseus levaram uma mulher flagrada em adultério até Jesus, exigindo sua condenação ao apedrejamento, conforme previa a lei da época. Diante da multidão, Jesus interveio e disse: “Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Um a um, os acusadores se retiraram, deixando a mulher sozinha. Então, Jesus lhe perguntou: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?” Ao ouvir sua negativa, Ele respondeu: “Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante, não peques mais.”

O trecho destaca a histórica violência institucional contra as mulheres, revelando a seletividade punitiva que incidia exclusivamente sobre elas, mesmo quando a lei previa sanção para ambos os envolvidos em adultério. Tal seletividade reflete a perpetuação de uma cultura patriarcal que, ao longo do tempo, legitimou a violência de gênero sob o argumento da “defesa da honra” masculina. O feminicídio, nesse contexto, configura-se como resposta extrema à tentativa da mulher de romper com estruturas de dominação, afirmando sua autonomia. Assim, o crime não se apresenta de forma isolada, mas como expressão de um sistema social que tradicionalmente tratou a mulher como propriedade masculina, sujeita à sua autoridade e coerção.

2.3. Breve histórico sobre da sociedade patriarcal

A formação da sociedade brasileira, desde a colonização portuguesa, consolidou um modelo patriarcal de organização social, no qual a mulher era subordinada à autoridade masculina, seja na figura do pai ou do marido (LIRA; BARROS, 2015). Esse sistema de dominação, definido por Saffioti (2015) como a exploração das mulheres pelos homens, estruturou relações sociais e jurídicas baseadas na desigualdade de gênero. As mulheres foram historicamente tratadas como propriedade masculina, privadas de autonomia e reduzidas a funções sexuais, reprodutivas e domésticas (BALBINOTTI, 2018).

Mesmo em contextos economicamente favorecidos, a mulher era limitada ao ambiente doméstico, sendo o casamento e a maternidade considerados seu único caminho legítimo. Aqueles que divergiam dessa norma enfrentavam restrições sociais severas, inclusive o confinamento religioso (REZENDE, 2016). A dominação patriarcal extrapolava o âmbito privado e refletia-se também nas estruturas estatais e jurídicas, conferindo ao homem amplo controle sobre a mulher, inclusive no campo sexual (OLIVEIRA; COSTA; SOUSA, 2016).

Ainda que a Revolução Industrial tenha promovido o ingresso feminino no mercado de trabalho, essa inclusão ocorreu sob condições precárias e marcadas por desigualdade salarial, evidenciando a persistência da inferiorização da mulher. Ademais, discursos científicos – notadamente na psicologia e psicanálise – contribuíram para a legitimação dessa hierarquia, ao atribuírem à mulher uma condição psíquica deficitária em relação ao homem (LERNER, 2019). Tais perspectivas, hoje amplamente criticadas, revelam que a desigualdade de gênero é fruto de construções socioculturais, e não de diferenças biológicas.

Dessa forma, o patriarcado configura-se como uma estrutura de poder histórica que se sustenta tanto na ideologia quanto na violência, perpetuando a desigualdade entre homens e mulheres ao longo do tempo (SAFFIOTI, 2015).


3. Avanços no Direito Penal e Direitos Humanos

3.1. Constituição Federal de 1988: reconhecimento a igualdade entre homens e mulheres

A Constituição Federal de 1988 representa um marco jurídico fundamental no processo de redemocratização do Brasil, consolidando os direitos humanos como pilares do ordenamento jurídico nacional. No que se refere à defesa dos direitos das mulheres, destaca-se a intensa mobilização ocorrida no período que antecedeu sua promulgação, com o objetivo de garantir avanços no âmbito constitucional. Esse movimento resultou na elaboração da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, documento que reuniu as principais demandas femininas após um amplo debate nacional.

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Graças à atuação estratégica e bem organizada dos grupos envolvidos no processo constituinte, a maior parte dessas reivindicações foi incorporada ao texto da Constituição de 1988, assegurando importantes direitos para as mulheres. Como observa Leila Linhares Barsted:

“O movimento feminista brasileiro foi um ator fundamental nesse processo de mudança legislativa e social, denunciando desigualdades, propondo políticas públicas, atuando junto ao Poder Legislativo e, também, na interpretação da lei. Desde meados da década de 70, o movimento feminista brasileiro tem lutado em defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres, dos ideais de Direitos Humanos, defendendo a eliminação de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas práticas sociais. De fato, a ação organizada do movimento de mulheres, no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, ensejou a conquista de inúmeros novos direitos e obrigações correlatas do Estado, tais como o reconhecimento da igualdade na família, o repúdio à violência doméstica, a igualdade entre filhos, o reconhecimento de direitos reprodutivos, etc.” (BARSTED, 2001, p. 35)

Como resultado das lutas e reivindicações, em 1985, durante o processo de redemocratização do Brasil, o presidente José Sarney criou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). A relevância desse órgão pode ser observada na fala de Jaqueline Pintaguy de Romani (2014, p. 1):

“Sua criação em 1985 (Lei 7.353/85) representa a luta das mulheres brasileiras na afirmação de sua igualdade social como fator fundamental para um verdadeiro processo de democratização de nossas instituições políticas, após 21 anos de ditadura militar. O CNDM teve um papel fundamental na garantia dos direitos da mulher na Constituição de 1988.” (Pintaguy, 2014, p. 1)

Para assegurar a representatividade feminina na Assembleia Constituinte, surgiu um movimento de grande relevância conhecido como “lobby do batom”. Essa campanha nacional, liderada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, teve como objetivo garantir que a Constituição, elaborada a partir de 1986, incorporasse os direitos defendidos pelo movimento feminista no Brasil.

O êxito do movimento de mulheres, no que tange aos avanços constitucionais, é claramente evidenciado por dispositivos da Constituição Federal que asseguram direitos e garantias fundamentais, a exemplo do artigo 5º, inciso I, que estabelece:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

Esse avanço é também visível no artigo 226, § 8º, que reconhece a importância da proteção à família e reforça o compromisso do Estado com a promoção da igualdade e dos direitos das mulheres no âmbito familiar e social, que segue:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Conclui-se que, no âmbito jurídico, resta assegurada a plena igualdade entre os gêneros no exercício dos direitos políticos, sendo vedada qualquer discriminação contra a mulher.

3.2. Convenção de Belém do Pará

Aprovada em 6 de junho de 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará tornou-se um marco na proteção dos direitos humanos das mulheres. O tratado reafirma e amplia os princípios da Declaração e do Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos, ao reconhecer a violência de gênero como violação dos direitos fundamentais. Sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro, pelo Decreto nº 1.973/1996, reforçou o compromisso do país no enfrentamento da violência contra a mulher no contexto interamericano.

A Convenção define a violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”. Essa concepção amplia a compreensão do fenômeno, evidenciando que a violência de gênero transcende o ambiente doméstico e se manifesta em diversas esferas sociais, abrangendo o feminicídio, o assédio sexual, a violência doméstica e a institucional – todas relacionadas à desigualdade de gênero e às relações de poder historicamente desiguais.

Ainda em 1994, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) criou a Relatoria Especial dos Direitos da Mulher, com o objetivo de assegurar a proteção efetiva dos direitos das mulheres nos Estados-membros (EGHRARI, 2007). Essa iniciativa partiu do reconhecimento de que, embora haja garantias constitucionais de igualdade de gênero, persistem práticas discriminatórias e estruturas jurídicas que mantêm desigualdades.

Ademais, a Convenção de Belém do Pará fortaleceu o uso do mecanismo de denúncias individuais perante a CIDH como uma importante estratégia de proteção internacional dos direitos das mulheres (PIOVESAN, 2012), sendo uma das principais bases jurídicas adotadas pela Comissão no emblemático caso Maria da Penha.

“A decisão fundamentou-se na violação, pelo Estado, dos deveres assumidos em virtude da ratificação da CADH e da Convenção do Belém do Pará, que consagram parâmetros protetivos mínimos concernentes à proteção dos direitos humanos.” (PIOVESAN, 2012, p. 18).

Por fim, é importante destacar que, antes mesmo do caso Maria da Penha, tanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos já possuíam entendimentos normativos sobre a proteção dos direitos das mulheres, reafirmando a necessidade de uma abordagem mais rigorosa no combate à violência de gênero no continente americano.

3.3. Lei Maria da Penha

A criação da Lei nº 11.340/2006, atendeu aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção de Belém do Pará, da Organização dos Estados Americanos (OEA), ratificada em 1994, e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da Organização das Nações Unidas (ONU), no que se refere à Constituição Federal, especificamente ao inciso VIII do artigo 84:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;

Entrou em vigor desde 22 de setembro de 2006, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) criada no Brasil para combater e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Seu nome homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica que sofreu anos de agressões por parte do marido e sobreviveu a duas tentativas de feminicídio.

Na primeira vez com arma de fogo, o que lhe causou uma paraplegia irreversível, já na segunda vez por eletrocussão e afogamento. No entanto, o marido da vítima só foi punido 19 anos após a ocorrência dos crimes, cumprindo apenas dois anos em regime fechado.

No que tange a referida temática, discorre Dias (2010, p.16):

“[…] A repercussão foi de tal ordem que o Centro pela justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino- Americano e do Caribe para a defesa dos direitos da mulher – CLADEM formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Apesar de, por quatro vezes, a comissão ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu nenhuma resposta. O Brasil foi condenado internacionalmente, em 2001. O relatório n. 54 da OEA, além de impor o pagamento de indenização no valor de 20 mil dólares, em favor de Maria da Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão frente a violência doméstica, recomendando a adoção de várias medidas, entre elas “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”. A indenização, no valor de 60 Mil reais, foi paga a Maria da Penha, em julho de 2008, pelo governo do Estado do Ceará, em uma solenidade pública, com pedido de desculpas.”

Os países signatários passaram a ser submetidos a um monitoramento contínuo. Além disso, por fazer parte do sistema interamericano, a convenção está vinculada à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que exerce função jurisdicional com força jurídica vinculante e obrigatória.

Sobre o tema, Silva (2011, p. 1), salienta que:

“A Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, foi resultado de tratados internacionais, firmados pelo Brasil, com o propósito de não apenas proteger á mulher, vítima de violência doméstica e familiar, mas também prevenir futuras agressões e punir devidos agressores. Foram duas as convenções firmadas pelo Brasil: Convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW), conhecida como Lei Internacional dos Direitos da mulher e a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, conhecida como Convenção do Belém do Pará.”

A Lei Maria da Penha estabelece:

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

É válido destacar que a Lei 11.340 (Lei Maria da Penha) tipifica em seu contexto, os cinco tipos de violência doméstica praticada contra as mulheres: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Essas formas de violência recebem a proteção da Lei Maria da Penha quando se configuram como violência doméstica ou familiar, entendida como:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. (BRASIL,2006)

Apesar da demora do Estado em promulgar uma legislação específica para a proteção das mulheres, a Lei Maria da Penha representou um marco com inúmeros avanços. Primeiramente, sua publicação contribuiu para uma maior conscientização da população sobre a gravidade da violência doméstica, evidenciando que seu enfrentamento exija o envolvimento de toda a sociedade e não poderia mais ser tratado como um problema restrito ao casal, como ocorria anteriormente.

Em relação ao tema Côrrea, (2010, s/p), explica que:

“A Lei Maria da Penha marca o início de um novo tempo, pois essa norma jurídica transformou os casos envolvendo mulheres vítimas de violência, uma vez que antes eram tratados pelo direito penal como irrelevantes, pois se enquadravam em crimes de menor potencial ofensivo. Para a mesma autora, esse marco caracteriza uma mudança de um tempo onde as mulheres eram oprimidas por toda a ordem de violência para, a partir dessa lei, recuperar sua dignidade, por meio da conquista do respeito e consideração pelos operadores jurídicos.”

Tal lei é considerada pela organização das nações unidas (ONU), a terceira melhor Lei do mundo de enfrentamento à violência contra a mulher. Como descreve Nascimento (2013, p. 1):

“Reconhecida pela ONU como uma das três melhores legislações de proteção ás mulheres do mundo, segundo relatório bianual do UNIFEM (fundo de desenvolvimento das Nações Unidas para a mulher) publicado no ano de 2009, a Lei Maria da Penha, segundo sua ementa, “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, sob a forma de políticas públicas e atuação específica do judiciário, com a intenção de proteger e assistir as suas vítimas.”

A mencionada lei trouxe um grande avanço no combate aos crimes contra as mulheres. Além de estabelecer medidas protetivas para garantir que o agressor não se aproxime da mulher e dos filhos, ela também possibilitou a decretação da prisão preventiva do agressor, conforme disposto em seu artigo 20:

Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

A respeito do assunto, salienta Dias (2007, p. 18):

“É indispensável assegurar à autoridade policial que, constatada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, aplique provisoriamente, até deliberação judicial, algumas das medidas protetivas de urgência, intimando desde logo o agressor.”

Outro grande avanço foi a Lei 13.641/2018, que incluiu uma seção (IV) ao Capítulo II do Título IV da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Nessa nova seção, foi criado o artigo 24-A, que tipifica o descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência, cuja pena é de detenção de 3 meses a 2 anos. (BRASIL, 2006).

A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, representou um avanço fundamental no combate à violência doméstica e familiar no Brasil. Ao conferir maior visibilidade à violência contra a mulher, a norma estabeleceu mecanismos legais eficazes de proteção e prevenção, em conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo país. Também contribuiu para a criação de um sistema jurídico mais atento às particularidades desses casos, reconhecendo sua gravidade e a necessidade de uma resposta estatal rigorosa. Apesar dos desafios persistentes, a lei é considerada uma das mais avançadas do mundo nessa área, sendo reconhecida por organismos como a ONU. Nesse sentido, constitui um marco na promoção dos direitos humanos e na luta pela erradicação da violência de gênero no Brasil.

3.4. Lei do Feminicídio

Em 2013, foi instaurada no Brasil uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) com a finalidade de apurar o número de mortes violentas de mulheres. Apesar da vigência da Lei Maria da Penha, observou-se que os casos de violência não diminuíram, mas tornaram-se mais visíveis, uma vez que as mulheres passaram a procurar o apoio do Poder Público. A CPMI identificou que a maioria dos assassinatos era cometida de forma cruel, geralmente pelos próprios parceiros das vítimas. Os dados apresentados foram alarmantes: uma mulher é morta a cada duas horas no país, em contextos de violência doméstica ou em razão do desrespeito à sua condição de mulher.

Diante desse cenário, e com o objetivo de implementar uma política criminal eficaz no combate à violência contra a mulher, surgiu o movimento legislativo no qual foi proposto, perante o Senado Federal, o Projeto de Lei nº 292, visando a “alterar o Código Penal, para inserir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio” (BRASIL, 2013). Esse processo resultou na criação da Lei nº 13.104/2015, que alterou o artigo 121 do Código Penal para incluir o feminicídio como uma qualificadora do crime de homicídio. O feminicídio passou a ser compreendido como o homicídio de uma mulher cometido em razão do seu sexo, ou seja, uma morte motivada por ódio, desprezo ou discriminação à condição feminina. Essa mudança visou dar maior visibilidade ao problema, permitindo que os autores desse tipo de crime recebam penas mais severas. A lei assim prevê:

Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

Homicídio simples

Art. 121. (...) Homicídio qualificado

§ 2º (...)

Feminicídio

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: (...)

§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I -violência doméstica e familiar; II -menosprezo ou discriminação à condição de mulher (...)

Aumento de pena

§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

II -contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;

III -na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR)

Art.2°º O art.1° da Lei n°8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração:

“Art. 1º(...)

I -homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, 2º I, II, III, IV, V e VI);(...) ” (NR)

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

Dados apontados na Justificativa do PL 292/2013:

“No Brasil, entre 2000 e 2010, 43,7 mil mulheres foram assassinadas, cerca de 41% delas mortas em suas próprias casas, muitas pelos companheiros ou ex-companheiros, com quem mantinham ou haviam mantido relações íntimas de afeto e confiança. Entre 1980 e 2010, dobrou o índice de assassinatos no país, passando de 2.3 assassinatos por 100 mil mulheres para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres. Esse número coloca o Brasil na sétima colocação mundial em assassinatos de mulheres, figurando, assim, dentro dos países mais violentos do mundo nesse aspecto.” (BRASIL, 2013 p 2)

A proposta do Projeto de Lei foi baseada na necessidade de diferenciar a penalização do homicídio quando cometido contra a mulher, considerando que essa morte carrega um significado que vai além do caso isolado. Trata-se de um ato com forte carga simbólica, demonstrando poder e controle, ao transmitir às mulheres as possíveis consequências de sua resistência às normas impostas. Dessa forma, o feminicídio representaria a forma extrema de dominação masculina, reafirmando a ideia de posse sobre a mulher, reduzindo-a à condição de objeto e aniquilando sua identidade. (BRASIL, 2013)

A aprovação da lei no Brasil representa um marco na reformulação da legislação voltada ao enfrentamento das desigualdades de gênero. Observa-se uma transição de um ordenamento historicamente discriminatório contra as mulheres para a promulgação de normas que não apenas reconhecem tais desigualdades, mas também buscam combatê-las por meio de medidas afirmativas. (FRASER, 2009).

Após aprovação da Lei, o Brasil se tornou o 16º país da América Latina a incorporar a alteração em sua legislação. Toledo (2016) contextualiza a aprovação dessas leis na América Latina:

“Enquanto em diversos outros continentes não se tem similar iniciativa pela atuação dos movimentos feministas latino-americanos somada à aprovação de tratados interamericanos relacionados à violência de gênero, tudo, por óbvio, como resposta ao progressivo aumento de índices de violência contra as mulheres observáveis na realidade fática.”

De acordo com as “Diretrizes para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres”, os feminicídios podem ser analisados considerando o contexto em que ocorrem, as circunstâncias envolvidas e as formas de violência empregadas:

[...] os contextos envolvem o ambiente privado e se referem à violência doméstica e familiar, conforme definida na Lei 11.340/2006, mas não se restringem a esses espaços podendo ocorrer também nos espaços públicos, inclusive em áreas dominadas pelo crime organizado (narcotráfico, quadrilhas ou máfias). As circunstâncias incluem a violência nas relações familiares, mas também aquelas situações de maior vulnerabilidade como a exploração sexual, o tráfico de mulheres e a presença do crime organizado. As formas de violência geralmente envolvem a imposição de um sofrimento adicional para as vítimas, tais como a violência sexual, o cárcere privado, o emprego de tortura, o uso de meio cruel ou degradante, a mutilação ou desfiguração das partes do corpo associada à feminilidade e ao feminino (rosto, seios, ventre, órgãos sexuais). (BRASIL, 2016, p. 15)

Segundo Bourdieu (1996), a conscientização sobre as desigualdades é essencial para dar início ao processo de transformação. A perpetuação das relações de poder e dominação entre os sexos depende, portanto, da reprodução automática e acrítica dos papéis socialmente impostos:

[...] para que a dominação simbólica funcione, é preciso que os dominados tenham incorporado as estruturas segundo as quais os dominantes os percebem, que a submissão não seja um ato da consciência, suscetível de ser compreendido dentro de uma lógica das limitações ou dentro da lógica do consentimento, alternativa ‘cartesiana’ que só existe quando a gente se situa dentro da lógica da consciência. (BORDIEU, 1996, p. 36).

Ainda de acordo com Toledo Patsilí (2016), a aprovação de uma lei penal que endurece as penas para crimes que violam os direitos humanos costuma receber apoio tanto de representantes políticos de esquerda quanto de direita, ao contrário de outras pautas feministas. Além disso, a criação de uma norma que reconhece a violação de direitos, utilizando a estrutura estatal já existente, implica um custo reduzido ou inexistente para sua implementação, ao mesmo tempo em que gera um alto capital político, beneficiando a imagem do Estado. Nesse sentido, argumenta-se que a positivação da qualificação do feminicídio desonera o Estado, pois representa uma resposta legislativa às mortes de mulheres. (TOLEDO, 2016)

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Barbara Luiza Oliveira. A evolução do tratamento jurídico do feminicídio no Brasil.: Da invisibilidade à consolidação de uma legislação específica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8022, 18 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114373. Acesso em: 5 dez. 2025.

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