4. Legislação posterior e complementar
4.1. Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019)
A Lei nº 13.964, sancionada em 24 de dezembro de 2019, conhecida como Pacote Anticrime, introduziu diversas alterações no ordenamento jurídico penal e processual penal brasileiro, visando ao fortalecimento da persecução penal, à celeridade dos processos e ao endurecimento das penas em casos de crimes de maior gravidade. Embora seu escopo inicial não tenha se voltado diretamente à violência de gênero, seus efeitos práticos impactam substancialmente a repressão ao feminicídio, sobretudo no tocante à execução penal e à proteção da vítima.
O art. 112, da Lei n. 7.210/84, que disciplina a progressão de regime, sofreu a maior alteração da Lei do Pacote anticrime, que tinha a sua redação da seguinte forma:
“Art. 112 – A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão.”
E atualmente, com a entrada em vigor do Pacote anticrime, em 23.01.2020, passou a ter a seguinte redação:
“Art. 112 - A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos.” (BRASIL, 2020)
Com a nova lei, novos requisitos objetivos foram fixados e que devem ser cumpridos, por se tratar de requisito objetivo, obrigatório. Em relação aos crimes hediondos com resultado morte, passaram a ter a exigência do cumprimento de 50% para progressão de regime, e em relação aos reincidentes específicos, com resultado morte, 70%. Ambos, vedado o livramento condicional. Nesse ponto houve um merecido agravamento da pena.
Em outro sentido, em detrimento do aumento do número de casos de homicídios de mulheres, bem como feminicídios, o pacote anticrime altera o Código de Processo Penal de forma que o agressor não se beneficie pelo Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), dando início ao processamento do agente.
Assim, nos termos do Art. 28-A, §2º, IV do Código de Processo Penal:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:
IV – nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
Dessa forma, evidencia-se que o verdadeiro propósito da alteração legislativa foi o enfrentamento rigoroso à criminalidade organizada, aos crimes violentos e àqueles que geram maior repulsa social, buscando respostas mais firmes e eficazes por parte do Estado.
Dito isso, embora o Pacote Anticrime não tenha sido criado com foco específico na violência contra a mulher, suas medidas repercutem diretamente no tratamento jurídico do feminicídio, ao influenciar a forma como o sistema penal trata os condenados por esse crime, contribuindo para a resposta punitiva mais rigorosa do Estado frente à gravidade da violência de gênero.
4.2. Lei nº 14.164/2021: Medidas para prevenção do feminicídio nas escolas
A Lei n° 14.164, publicada em 10 de junho de 2021, após dois anos de tramitação legislativa, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir conteúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica, e instituir a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher (BRASIL, 2021),constituindo importante avanço no tocante a mudança de paradigma no combate à violência contra a mulher.
Com a promulgação da Lei nº 14.164/2021, foram incorporados aos currículos da educação básica conteúdos voltados à promoção dos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher. Além disso, a legislação prevê a distribuição de materiais didáticos sobre o tema, devidamente adaptados a cada etapa de ensino (BRASIL, 2021).
Outro ponto relevante da referida norma é a criação da Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, a ser realizada, anualmente, durante o mês de março, em todas as instituições de ensino da educação básica. Tal iniciativa tem como principais objetivos:
I -contribuir para o conhecimento das disposições da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha);
II -impulsionar a reflexão crítica entre estudantes, profissionais da educação e comunidade escolar sobre a prevenção e o combate à violência contra a mulher;
III -integrar a comunidade escolar no desenvolvimento de estratégias para o enfrentamento das diversas formas de violência, notadamente contra a mulher;
IV -abordar os mecanismos de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, seus instrumentos protetivos e os meios para o registro de denúncias;
V -capacitar educadores e conscientizar a comunidade sobre violência nas relações afetivas;
VI -promovera igualdade entre homens e mulheres, de modo a prevenir e a coibir a violência contra a mulher; e
VII -promover a produção e a distribuição de materiais educativos relativos ao combate da violência contra a mulher nas instituições de ensino (BRASIL, 2021, http://www.planalto.gov.br).
Nesse contexto, a previsão legislativa apresenta-se como de grande relevância, ao buscar despertar, desde a infância, valores essenciais como o respeito à vida e à integridade física do outro, especialmente quando esse outro é a mulher. A educação, portanto, assume papel central na construção de uma nova cultura, fundamentada no respeito mútuo, na equidade de gênero e na rejeição de toda forma de discriminação.
A própria Constituição Federal reforça essa diretriz ao estabelecer, nos artigos 6º e 205, que a educação é o primeiro dos direitos sociais, devendo ser promovida como meio de pleno desenvolvimento da pessoa e de preparo para o exercício da cidadania. Tais preceitos estão em consonância com os objetivos da Lei nº 14.164/2021, que prioriza a proteção dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, assegurando-lhes as melhores condições para a sua efetiva concretização (DIOTTO; COSTA, 2022).
No âmbito da educação formal, os estudos de gênero configuram-se como instrumentos de análise abrangentes, que envolvem desde as políticas escolares até as relações estabelecidas no cotidiano entre docentes e discentes. A forma como professoras e professores interpretam e interagem com seus alunos e alunas revela muito sobre os padrões sociais que são reproduzidos ou desconstruídos dentro da escola. Ao introduzir questões de gênero na prática pedagógica, amplia-se o alcance da reflexão crítica, transcendendo os limites físicos da instituição escolar e alcançando a sociedade como um todo (TORTATO; CARVALHO, 2016).
A Lei nº 14.164/2021 promove um avanço significativo ao incluir temas urgentes, como a violência de gênero, no ambiente escolar. Essa inserção aproxima o conteúdo pedagógico da realidade dos alunos, permitindo a compreensão das causas e consequências dessa violência e incentivando o engajamento da comunidade escolar em sua prevenção. A educação, nesse contexto, torna-se uma base sólida para a transformação social, justificando a urgência de seu estímulo e reflexão (DIOTTO; COSTA, 2022).
Nos últimos anos, projetos de lei relacionados à abordagem de gênero nas escolas chegaram ao Supremo Tribunal Federal. No Brasil, o tema gera intensas divergências, especialmente entre grupos conservadores, que, influenciados por fundamentos religiosos, defendem que essa discussão não pertence ao ambiente escolar. Com base nesse entendimento, há propostas legislativas que visam proibir o tema nos currículos, exigindo do STF posicionamentos sobre a constitucionalidade dessas iniciativas. Pode-se citar como exemplo A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 460, de relatoria do Ministro Luiz Fux ,julgada em 29 de junho de 2020:
Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Artigo 2º, parágrafo único, da Lei 6.496/2015 do município de Cascavel -PR. Vedação de “políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. Usurpação da competência privativa da união para legislar sobre diretrizes e bases da educação. A proibição genérica de determinado conteúdo, supostamente doutrinador ou proselitista, desvaloriza o professor, gera perseguições no ambiente escolar, compromete o pluralismo de ideias, esfria o debate democrático e prestigia perspectivas hegemônicas por vezes secretárias. a construção de uma sociedade solidária, livre e justa perpassa a criação de um ambiente de tolerância, a valorização da diversidade e a convivência com diferentes visões de mundo .precedentes arguição conhecida e julgado procedente o pedido. [...] (BRASIL,2020a, https://jurisprudencia.stf.jus.br).
A decisão do STF em um primeiro momento aborda a inconstitucionalidade do projeto de lei, uma vez que ao pretender vedar a abordagem de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo gênero ou orientação sexual no ambiente escolar, viola competência da União. Assim segue o texto da ADPF 460:
[...] 1.A competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (artigo 22, XXIV, da Constituição Federal) impede que leis estaduais, distritais e municipais estabeleçam princípios e regras gerais sobre ensino e educação, cabendo-lhes somente editar regras e condições específicas para a adequação da lei nacional à realidade local (artigos 24, §§ 1º e 2º, e 30, I e II, CRFB)[...](BRASIL, 2020a, https://jurisprudencia.stf.jus.br).
No segundo ponto de sua fundamentação, o Supremo Tribunal Federal destacou que a proibição da abordagem dos temas “gênero” e “orientação sexual” configura violação ao princípio da liberdade de ensinar, intrinsecamente ligado à liberdade no campo da educação. Ao vedar a discussão desses conteúdos no ambiente escolar, comprometem-se tanto a autonomia pedagógica quanto o pluralismo de ideias, ambos assegurados pela Constituição Federal como fundamentos do ensino no país.
2.A vedação da abordagem dos temas de “gênero” e de “orientação sexual” no âmbito escolar viola os princípios da liberdade, enquanto pressuposto para a cidadania; da liberdade de ensinar e aprender; da valorização dos profissionais da educação escolar; da gestão democrática do ensino; do padrão de qualidade social do ensino; da livre manifestação do pensamento; e da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (artigos 1º, II e V; 5º, IV e IX; e 206, II, V, VI e VII, da Constituição Federal). [...](BRASIL, 2020a, https://jurisprudencia.stf.jus.br).
A decisão afirma que a pretensão de neutralidade ideológica ou política buscada pelo legislador municipal, ao vedar a abordagem dos temas mencionados, limita a participação social decorrente dos ensinamentos plurais proporcionados no ambiente escolar, revelando-se, assim, não apenas inconstitucional, mas também incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro (BRASIL, 2020).
Por fim, não se supera uma cultura por meio de sua simples negação ou eliminação. Ao contrário, é necessário desconstruí-la por meio da construção de uma nova base cultural, que reconheça a singularidade da experiência feminina e valorize o papel da mulher na sociedade. A escola exerce função essencial nesse processo de transformação, mas essa responsabilidade não é exclusiva da instituição educacional, trata-se de um dever compartilhado por toda a coletividade.
A prevenção da violência contra a mulher, mais do que uma exigência de ordem ética, constitui uma obrigação jurídica firmada em convenções e tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Assim, promover uma educação que problematize e analise criticamente os papéis de gênero socialmente construídos tornou-se uma prioridade urgente para romper, de forma eficaz, o ciclo contínuo da violência (VIZA, 2017).
4.3. Lei nº 14.857/2024: Sigilo do nome da ofendida, visando proteger a identidade da vítima.
Foi sancionada a Lei nº 14.857, de 21 de maio de 2024, que estabelece o sigilo do nome da vítima nos processos relacionados a crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Originada a partir do Projeto de Lei nº 1.822/2019, essa nova norma promove alterações na Lei Maria da Penha, com o objetivo de ampliar a proteção à vítima, assegurando a preservação de sua integridade física, psíquica e emocional.
Art. 1º Esta Lei tem como objetivo determinar o sigilo do nome da ofendida nos processos em que se apuram crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Art. 2º O Capítulo I do Título IV da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), passa a vigorar acrescido do seguinte art. 17-A: “Art. 17-A. O nome da ofendida ficará sob sigilo nos processos em que se apuram crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Parágrafo único. O sigilo referido no caput deste artigo não abrange o nome do autor do fato, tampouco os demais dados do processo”.(Brasil, 2006).
Antes da mudança legislativa, cabia ao juiz decidir sobre o sigilo da identidade da vítima, salvo em casos específicos já previstos em lei. Com a nova regra, esse sigilo passa a ser garantido automaticamente, sem que haja necessidade de um pedido formal por parte da vítima ou de análise judicial. Dessa maneira, mesmo que informações sobre o agressor e o processo permaneçam disponíveis, a identidade da vítima é protegida de forma direta e imediata.
Essa alteração tem como principal finalidade proteger mulheres em situação de violência doméstica, evitando que sofram ainda mais com a exposição pública e a revitimização. A divulgação da identidade pode gerar constrangimentos sociais e grande sofrimento, principalmente em tempos de ampla circulação de informações nas redes sociais e na internet. O sigilo automático oferece, portanto, mais segurança e privacidade, permitindo que a vítima busque justiça com menos medo e mais dignidade.
Trata-se de uma conquista importante, resultado da luta constante das mulheres brasileiras. A violência vivida por elas não se encerra no ato criminoso. Muitas vezes, ela se prolonga nos julgamentos feitos por vizinhos, familiares ou colegas de trabalho, influenciados por uma cultura ainda marcada por visões machistas. Além disso, é comum que o atendimento em delegacias não especializadas seja frio e despreparado, o que agrava ainda mais a dor da vítima em um momento já delicado. A revitimização também aparece na forma como a mídia lida com esses casos, muitas vezes de forma sensacionalista, desrespeitando a ética jornalística e a dignidade das vítimas. Com os mecanismos modernos de busca, informações impactantes e muitas vezes traumáticas podem permanecer circulando indefinidamente, perpetuando o sofrimento.
Por isso, qualquer conteúdo relacionado à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher deve ser tratado com responsabilidade e sensibilidade. Garantir um tratamento processual mais humano é essencial para assegurar justiça e respeito às vítimas, além de contribuir para a superação do trauma e a construção de um ambiente social mais acolhedor e igualitário.