Capa da publicação Feminicídio no Brasil: da invisibilidade à lei específica
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A evolução do tratamento jurídico do feminicídio no Brasil.

Da invisibilidade à consolidação de uma legislação específica

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18/06/2025 às 18:34
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5. Feminicídio como crime autônomo

5.1. Lei nº 14.994/2024 – “Pacote Antifeminicídio”

A promulgação da Lei nº 14.994/2024, conhecida como "Pacote Antifeminicídio", representa um marco no enfrentamento jurídico da violência de gênero no Brasil. A principal inovação consiste na autonomização do feminicídio como tipo penal específico, agora inserido no art. 121-A do Código Penal, rompendo com sua antiga natureza de qualificadora do homicídio (art. 121, §2º, VI, revogado). Com isso, a legislação reforça a gravidade da conduta ao prever pena de reclusão de 20 a 40 anos, superior à anterior (12 a 30 anos).

Além da reconfiguração estrutural, o diploma normativo introduziu causas de aumento de pena, que ampliam a proteção a mulheres em condições de vulnerabilidade como gestantes, idosas, pessoas com deficiência e vítimas que sejam mães ou responsáveis por crianças ou adolescentes bem como em situações de reincidência, violação de medidas protetivas ou exposição da vítima a traumas físicos ou virtuais diante de familiares.

Outro ponto de destaque foi a inclusão expressa do feminicídio no rol dos crimes hediondos (art. 1º, I-B, da Lei nº 8.072/1990), conferindo-lhe tratamento penal mais severo, com restrições a benefícios legais e reforçando sua natureza pluriofensiva, pois tutela não apenas a vida, mas também a dignidade da mulher e a igualdade de gênero.

A nova legislação, embora utilize a expressão “condição do sexo feminino”, abre espaço para interpretação ampliativa, considerando a identidade de gênero, o que aproxima o texto legal da concepção doutrinária de feminicídio desenvolvida por estudiosas como Diana Russell e Jill Radford. Essa abordagem abarca todas as formas de violência letal motivadas pela percepção social do feminino, abrangendo mulheres cisgênero, transgênero e outras expressões de gênero femininas.

Por fim, a tramitação e aprovação da Lei nº 14.994/2024 evidenciam a articulação entre a pressão social e a atuação legislativa, culminando em uma resposta do Estado à chamada “epidemia de feminicídios” no país. Trata-se, portanto, de avanço normativo relevante, que exige contínua fiscalização de sua efetividade e aplicação pelas instituições responsáveis pela persecução penal.

A lei prevê a obrigatoriedade de julgamento em prazo mais curto, buscando evitar a impunidade e a revitimização da mulher e de seus familiares. Essa medida está alinhada aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da razoável duração do processo, conforme previsto no artigo 5º, incisos III e LXXVIII, da Constituição Federal(Brasil, 1988).

A introdução de medidas legislativas voltadas ao combate do feminicídio gerou um intenso debate na doutrina jurídica brasileira, levantando questões sobre as fronteiras e as potencialidades da intervenção penal na violência de gênero. Diversos estudiosos ressaltam o predomínio de uma abordagem punitiva, o que exige uma reflexão crítica sobre sua eficácia na promoção de transformações sociais significativas. Gomes (2000) evidencia o contraste entre dois modelos penais: o clássico, focado na punição com fins preventivos, e o moderno, que busca a ressocialização do infrator por meio de intervenções respeitosas aos direitos humanos.

Nesse sentido, o Pacote Antifeminicídio pode ser interpretado como expressão do punitivismo penal de emergência, pois aposta no agravamento de penas como resposta imediata à violência de gênero. Embora represente um avanço simbólico, tal abordagem não enfrenta as causas estruturais do problema, tampouco garante, por si só, a redução da reincidência, como propõe a criminologia moderna.

“A pena ou qualquer outra resposta estatal ao delito, destarte, acaba assumindo um determinado papel. No modelo clássico, a pena (ou castigo) ou é vista com finalidade preventiva puramente dissuasória (que está presente, em maior ou menor intensidade, na teoria preventiva geral negativa ou positiva, assim como na teoria preventiva especial negativa). Já no modelo oposto (Criminologia Moderna), à pena se assinala um papel muito mais dinâmico, que é o ressocializador, visando a não reincidência, seja pela viada intervenção excepcional no criminoso (tratamento com respeito aos direitos humanos), seja pelas vias alternativas à direta intervenção penal”(Gomes, 2000, p. 40)

Segundo Prado (2024), a crença de que o aumento das penas possui efeito dissuasório sobre potenciais agressores revela-se ineficaz, especialmente nos crimes relacionados à violência doméstica e familiar, nos quais os fatores emocionais predominam sobre qualquer cálculo racional acerca das consequências jurídicas. Essa perspectiva crítica se articula ao conceito de eficácia simbólica do Direito Penal, abordado por juristas como Zaffaroni (1991 apud Péres, 2001), segundo o qual diversas normas penais cumprem mais uma função simbólica ou política, como resposta à pressão social do que exercem impacto real na redução dos índices de criminalidade.

No caso do feminicídio, cuja dinâmica é atravessada por laços afetivos complexos, situações de dependência econômica e emocional, e medo constante, a simples majoração da pena mostra-se insuficiente como instrumento de contenção. A resposta estatal centrada unicamente no rigor punitivo desconsidera as múltiplas vulnerabilidades das vítimas e a estrutura relacional em que esses crimes ocorrem. Como destaca Zaffaroni (1991, p. 223), de forma contundente e crítica:

“Sabemos que a execução penal não ressocializa nem cumpre nenhuma das funções ‘re’ que se tem inventado (‘re’-socialização, personalização, individualização, educação, inserção, etc.), que tudo é mentira e que pretender ensinar um homem a viver em sociedade com seu encarceramento é, como diz Carlos Elbert, algo tão absurdo como pretender treinar alguém a jogar futebol dentro de um elevador.”

Dessa forma, a eficácia da legislação penal no combate ao feminicídio não deve ser avaliada apenas por sua severidade, mas, sobretudo, por sua capacidade de articular prevenção, proteção e transformação social, em conjunto com políticas públicas estruturadas e ações educativas contínuas.

A violência contra a mulher configura-se como um fenômeno multidimensional, cujas raízes estruturais ultrapassam o campo jurídico, exigindo, portanto, uma resposta integrada e intersetorial. Para que haja efetividade no enfrentamento dessa problemática, é indispensável a atuação articulada de diferentes áreas como a segurança pública, saúde, educação, assistência social e o sistema de justiça funcionando em rede e com ações coordenadas que contemplem a prevenção, a proteção das vítimas, a responsabilização dos agressores e a reparação dos danos causados. Trata-se de uma demanda que vai além da repressão penal, requerendo políticas públicas sustentadas e sensíveis às especificidades de gênero, capazes de transformar o cenário de violência de maneira profunda e duradoura (Barsted, 2008 apud Oliveira et al., 2020) .

Conclui-se que a participação ativa da sociedade civil fortalece a formulação de políticas públicas e pode reduzir desigualdades, especialmente em contextos de violência. Quando planejada e contínua, essa atuação permite que demandas sociais influenciem diretamente as decisões governamentais, promovendo maior inclusão e eficiência (Gohn, 2003 apud Barche; Luiz; Pagliari, 2021).


6. Conclusão

A análise desenvolvida ao longo deste trabalho permitiu compreender e analisar a evolução do tratamento jurídico do feminicídio no Brasil, partindo de sua longa trajetória de invisibilidade institucional até sua consolidação como um crime autônomo por meio da Lei nº 14.994/2024. Ao longo do estudo, foi possível perceber que o reconhecimento do feminicídio enquanto fenômeno jurídico, político e social reflete não apenas uma mudança legislativa, mas a emergência de um novo paradigma de enfrentamento à violência de gênero, sustentado por pressões sociais, movimentos feministas e compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.

A criação do art. 121-A do Código Penal representou um avanço normativo importante, ao destacar a especificidade da violência letal contra mulheres motivada por razões de gênero. No entanto, o simples endurecimento das penas, embora tenha valor simbólico e político, revela-se limitado se não vier acompanhado de políticas públicas eficazes, ações educativas e respostas institucionais integradas, capazes de atuar na prevenção e erradicação das raízes culturais e estruturais da desigualdade de gênero.

A criminalização do feminicídio, portanto, deve ser compreendida como parte de um processo mais amplo de transformação social, no qual a legislação penal é apenas um dos instrumentos disponíveis. A escola, a mídia, o sistema de saúde, a assistência social e o próprio Judiciário têm papéis fundamentais na construção de uma cultura de respeito, equidade e proteção à vida das mulheres. Nesse sentido, o tratamento jurídico do feminicídio não deve ser apenas punitivo, mas também preventivo, educativo e reparador.

Conclui-se, assim, que embora o Brasil tenha avançado significativamente na normatização da violência de gênero, o desafio permanece em garantir a efetividade dessas leis e a atuação comprometida dos diversos setores estatais e da sociedade civil. O combate ao feminicídio exige um compromisso contínuo com os direitos humanos, a igualdade de gênero e a superação das estruturas patriarcais que historicamente naturalizaram a violência contra as mulheres.


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Abstract: This Course Completion Work analyzes the evolution of the legal treatment of feminicide in Brazil, from its historical invisibility to its recent consolidation as an autonomous crime with the promulgation of Law nº 14,994/2024, known as the Anti-feminicide Package. The research examines the historical-cultural context of gender-based violence, legislative progress and fundamental normative frameworks, such as the 1988 Constitution, the Convention of Belém do Pará, the Maria da Penha Law and Law nº 13,104/2015. The analysis highlights the legal transformation that culminated in the creation of article 121-A of the Penal Code, granting greater normative autonomy and severity to the conduct of feminicide. The work also discusses the limits of punitivism as a response to structural gender-based violence, proposing reflection on the effectiveness of public policies and the need for integrated and preventive approaches to combating violence against women.

Keywords: Femicide. Law No. 14,994/2024. Autonomous crime. Gender violence. Criminal law. Public policies. Patriarchy.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Barbara Luiza Oliveira. A evolução do tratamento jurídico do feminicídio no Brasil.: Da invisibilidade à consolidação de uma legislação específica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8022, 18 jun. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114373. Acesso em: 5 dez. 2025.

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