4. IMPACTOS ECONÔMICOS E JUSTIÇA FISCAL NA TRIBUTAÇÃO DE MEI E SIMPLES NACIONAL
4.1. Regressividade e capacidade contributiva
A tributação incidente sobre operações de crédito, especialmente quando majorada por ato do Poder Executivo, suscita relevante debate no que toca à observância do princípio da capacidade contributiva, inscrito no art. 145, § 1.º, da Constituição da República. Este postulado impõe que os tributos sejam graduados segundo a aptidão econômica do contribuinte, de modo a promover justiça fiscal e evitar que a carga tributária recaia, de forma desproporcional, sobre os segmentos mais vulneráveis da economia.
No caso do IOF, a estrutura da exação revela um traço intrinsecamente regressivo, pois a alíquota incide uniformemente sobre a base de cálculo das operações, sem considerar a dimensão relativa da renda ou patrimônio do tomador de crédito.35 Tal característica, que já impõe um ônus proporcionalmente maior aos agentes econômicos de menor porte, é acentuada quando a majoração atinge microempreendedores individuais e empresas optantes pelo Simples Nacional — categorias cuja dependência de crédito de curto prazo é notória e cujo acesso a linhas subsidiadas é frequentemente restrito.36
A regressividade se agrava pelo efeito econômico indireto que o aumento do IOF pode produzir. Ao encarecer o custo do capital, a medida induz a retração de investimentos, a redução de estoques e a contenção de contratações, afetando diretamente a competitividade desses agentes no mercado.37 Ademais, a majoração em cenário de alta rotatividade de caixa e margens reduzidas acentua o risco de descumprimento de obrigações fiscais e trabalhistas, repercutindo negativamente sobre a formalização e a sustentabilidade empresarial.38
À luz da doutrina, a incidência uniforme do IOF em operações essenciais para a sobrevivência e expansão de micro e pequenas empresas desafia o próprio núcleo da capacidade contributiva, na medida em que ignora as desigualdades materiais entre os contribuintes.39 Tal perspectiva encontra eco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, embora reconheça a função extrafiscal do IOF e a legalidade de sua alteração por decreto, tem enfatizado a necessidade de proporcionalidade e razoabilidade na calibragem das alíquotas.40
Portanto, o enfrentamento da regressividade do IOF, quando aplicado indistintamente a sujeitos passivos de diferentes portes econômicos, exige uma interpretação que concilie a função regulatória do tributo com os princípios estruturantes da ordem tributária, notadamente a capacidade contributiva e a justiça fiscal. Essa conciliação demanda não apenas controle jurisdicional, mas também atenção do legislador e do Executivo na formulação de políticas tributárias mais sensíveis às desigualdades econômicas concretas.41
4.2. Livre iniciativa, competitividade e seletividade
A Constituição da República, ao erigir a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica (art. 1.º, IV, e art. 170, caput), confere-lhe a condição de vetor hermenêutico para a interpretação e aplicação das normas tributárias. A intervenção fiscal, ainda que legítima e voltada a fins extrafiscais, não pode ser dissociada da obrigação de preservar um ambiente concorrencial equilibrado, sob pena de comprometer a própria dinâmica do mercado e o pluralismo de agentes econômicos.
No caso do IOF incidente sobre operações de crédito, a majoração das alíquotas, quando aplicada de modo uniforme a contribuintes de portes econômicos distintos, repercute de forma desigual no plano da competitividade. Microempreendedores individuais e empresas do Simples Nacional, que operam com margens reduzidas e maior dependência de capital de giro, suportam custo proporcionalmente mais elevado do que grandes corporações com acesso a crédito de menor custo ou instrumentos de financiamento alternativos.42 Essa assimetria pode acentuar barreiras de entrada e reduzir a capacidade de expansão de agentes menores, distorcendo a livre concorrência.43
O princípio da seletividade, embora previsto expressamente para o IPI e o ICMS (arts. 153, § 3.º, I, e 155, § 2.º, III, CF), encontra aplicação indireta e teleológica também no IOF, na medida em que se vincula à busca de justiça fiscal e de racionalidade econômica.44 A adoção de alíquotas diferenciadas ou a concessão de regimes mitigados para operações essenciais de segmentos mais vulneráveis poderia constituir medida apta a compatibilizar a função regulatória do tributo com a proteção à livre iniciativa e à competitividade.45
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nas ações de controle concentrado que examinaram o Decreto n.º 12.499/2025 (ADCs 96 e 97; ADIs 7.827 e 7.839), reconheceu a legitimidade da alteração de alíquotas por decreto, mas ressaltou que a calibragem do IOF deve respeitar critérios de proporcionalidade e razoabilidade, de modo a não produzir efeitos anticompetitivos ou discriminatórios.46 Essa orientação reforça a compreensão de que a intervenção extrafiscal, quando desatenta às peculiaridades setoriais, pode colidir com os objetivos constitucionais da ordem econômica, previstos no art. 170, IV, e no art. 170, parágrafo único, da CF.
Portanto, a análise da majoração do IOF sob a ótica da livre iniciativa e da competitividade exige abordagem que transcenda a mera verificação de legalidade formal, incorporando juízo de compatibilidade material com a função social da tributação e com a necessidade de manter condições equitativas de disputa no mercado.47
4.3. Proporcionalidade e vedação ao confisco
A proporcionalidade, enquanto princípio estruturante do sistema constitucional tributário, opera como critério de aferição da legitimidade material dos tributos, exigindo que a intensidade da carga fiscal guarde coerência com a finalidade perseguida pela norma instituidora ou majoradora.48 Tal postulado, que se desdobra nas dimensões da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, atua como limite ao poder de tributar, especialmente em hipóteses nas quais a função extrafiscal do imposto é invocada para justificar aumentos abruptos de alíquota.49
No tocante ao IOF incidente sobre operações de crédito, a sua natureza extrafiscal confere ao Poder Executivo a prerrogativa de ajuste célere das alíquotas, dispensada a observância das anterioridades anual e nonagesimal. Contudo, essa flexibilidade não afasta a obrigação de calibrar a exação de forma proporcional, evitando que o ônus econômico imposto ao contribuinte ultrapasse o que é necessário à consecução dos fins regulatórios declarados.50
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Decreto n.º 12.499/2025 nas ADCs 96 e 97 e nas ADIs 7.827 e 7.839, assentou que a majoração do IOF, embora formalmente legítima, deve ser materialmente compatível com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, sob pena de configurar desvio de finalidade e de comprometer direitos fundamentais como a livre iniciativa e a própria segurança jurídica.51 Em decisão liminar, o Ministro Alexandre de Moraes afastou a incidência do imposto sobre operações de “risco sacado” justamente por entender que, além de não haver previsão legal suficiente, o impacto econômico decorrente dessa tributação se revelaria desproporcional.52
A vedação ao confisco, prevista no art. 150, IV, da Constituição, projeta-se como limite quantitativo à tributação, impedindo que o montante exigido seja de tal ordem que inviabilize ou torne excessivamente onerosa a atividade econômica. No caso de microempreendedores individuais e optantes pelo Simples Nacional, a elevação das alíquotas do IOF, sem qualquer mitigação específica, pode aproximar-se de um efeito confiscatório indireto, não pela absorção absoluta de renda, mas pela erosão significativa das margens de operação e pela restrição ao acesso ao crédito.53
Assim, a análise conjunta da proporcionalidade e da vedação ao confisco no âmbito do IOF impõe que a atuação do Executivo, mesmo amparada por competência constitucional e pela função extrafiscal, seja balizada por parâmetros objetivos de razoabilidade econômica, de modo a não converter um instrumento regulatório legítimo em fator de asfixia financeira e de comprometimento da justiça fiscal.54
5. ESTRATÉGIAS JURÍDICAS E INSTITUCIONAIS DE MITIGAÇÃO
5.1. Planejamento tributário-financeiro e gestão contratual
O aumento das alíquotas do IOF incidente sobre operações de crédito — especialmente quando afeta microempreendedores individuais e empresas optantes pelo Simples Nacional — impõe, como reação imediata e estratégica, a adoção de medidas de planejamento tributário-financeiro. Este planejamento, longe de se reduzir a um expediente meramente defensivo, deve ser compreendido como instrumento de racionalização econômica e de preservação da competitividade empresarial, articulando-se com a gestão contratual e com a leitura atenta das possibilidades jurídicas de mitigação da carga tributária.55
No plano operacional, o primeiro passo consiste na recomposição do Custo Efetivo Total (CET) das operações de crédito, incorporando de forma transparente o impacto decorrente da majoração do IOF.56 Essa análise não se limita a um cálculo aritmético, mas exige interpretação das cláusulas contratuais à luz da função econômica da operação e dos princípios de boa-fé objetiva e equilíbrio contratual. A renegociação de condições, quando viável, deve ter por fundamento não apenas a onerosidade excessiva superveniente, mas também a pertinência econômica da adequação, com vistas à manutenção da viabilidade do contrato.
A gestão contratual, nesse cenário, deve priorizar estratégias como: (a) redução dos prazos das operações de crédito, para minimizar a base de cálculo diária do IOF; (b) substituição de garantias mais onerosas por alternativas menos gravosas; e (c) antecipação de amortizações, de modo a reduzir a exposição tributária cumulativa.57
Paralelamente, deve-se avaliar a utilização de linhas de crédito subsidiadas ou incentivadas — a exemplo do Pronampe e de programas de fomento regionais — que, por sua estrutura ou por benefícios específicos, apresentem menor incidência do IOF ou taxas de juros compensatórias mais vantajosas.58 Essa escolha, para ser eficiente, deve considerar o custo total da operação, incluindo encargos financeiros, tributos incidentes e eventuais custos de garantia.
A doutrina destaca que o planejamento tributário-financeiro é também um exercício de governança empresarial, na medida em que articula análise normativa, prudência econômica e técnica negocial.59 Tal atuação preventiva reduz a vulnerabilidade da empresa a oscilações tributárias e reforça sua capacidade de resposta em cenários de instabilidade normativa — como o que se verificou com a edição e posterior suspensão parcial do Decreto n.º 12.499/2025.60
Assim, o planejamento e a gestão contratual assumem papel central na mitigação dos efeitos da majoração do IOF, funcionando como instrumentos de equilíbrio entre o cumprimento das obrigações fiscais e a preservação da saúde financeira da empresa, sempre sob o prisma da legalidade e da eficiência econômica.61
5.2. Atuação legislativa e controle político
O exercício da competência tributária pela União, notadamente no que se refere ao IOF, não se desenvolve em um vácuo político-institucional. A despeito da autorização constitucional para que o Poder Executivo altere alíquotas por meio de decreto, a conformação dessa prerrogativa está sujeita a mecanismos de controle político e legislativo, cujo fundamento repousa na harmonia e no sistema de freios e contrapesos delineado pela Constituição.62
O Congresso Nacional, nos termos do art. 49, V, da Carta Magna, dispõe da competência para sustar atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Essa prerrogativa, embora raramente exercida com êxito em matéria tributária, adquire relevo em hipóteses como a do Decreto n.º 12.499/2025, cuja majoração do IOF foi alvo de tentativa de sustação por meio de Projeto de Decreto Legislativo, sob o argumento de desvio de finalidade e prevalência de objetivo arrecadatório sobre a função extrafiscal.63
A reação legislativa, contudo, foi neutralizada por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu os efeitos do referido PDL, reconhecendo que, prima facie, o ato presidencial se enquadrava nos limites da delegação conferida pelo art. 153, § 1.º, da Constituição.64 Tal episódio revela a tensão inerente ao controle político em matéria tributária: de um lado, a necessidade de preservar a agilidade da atuação extrafiscal; de outro, a legitimidade do Parlamento para coibir excessos e assegurar a vinculação do ato à sua finalidade regulatória.65
Nesse contexto, a atuação legislativa não se restringe ao controle repressivo de atos do Executivo. A função propositiva do Parlamento é igualmente relevante, cabendo-lhe formular políticas que mitiguem impactos regressivos e assegurem tratamento diferenciado a micro e pequenas empresas, em conformidade com os arts. 146, III, “d”, e 170, IX, da Constituição. Isso pode se traduzir em projetos de lei que estabeleçam alíquotas reduzidas, isenções parciais ou regimes especiais, compatibilizando a função extrafiscal do IOF com a proteção à livre iniciativa e à justiça fiscal.66
Portanto, o controle político-legislativo sobre a majoração do IOF se manifesta em duas vertentes: (a) fiscalizatória, para sustar atos normativos que extrapolem a delegação constitucional; e (b) propositiva, para moldar o sistema tributário de modo a atender às diretrizes constitucionais de seletividade, capacidade contributiva e tratamento favorecido aos pequenos negócios. Ambas constituem expressões concretas da função de equilíbrio institucional e de salvaguarda dos direitos fundamentais dos contribuintes.67
5.3. Controle judicial e teses constitucionais aplicáveis
O controle judicial sobre a majoração do IOF constitui instrumento essencial para assegurar que a prerrogativa constitucional conferida ao Poder Executivo seja exercida dentro dos limites formais e materiais fixados pela Constituição. Embora o art. 153, § 1.º, da Carta Magna autorize a alteração de alíquotas por decreto, essa faculdade não se reveste de caráter absoluto, submetendo-se aos princípios constitucionais tributários e à função extrafiscal que legitima sua mitigação da legalidade estrita.
Nesse cenário, a atuação jurisdicional pode assumir duas vias principais: (a) o controle concentrado de constitucionalidade, mediante ações como as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), e (b) o controle difuso, por meio de mandados de segurança individuais ou coletivos e ações ordinárias, nas quais se discute a aplicação concreta da norma.68
As ações de controle concentrado que examinaram o Decreto n.º 12.499/2025 (ADCs 96 e 97; ADIs 7.827 e 7.839) ilustram a função do Supremo Tribunal Federal como guardião do equilíbrio entre competência normativa e proteção de direitos fundamentais. Nesses casos, a Corte reconheceu a constitucionalidade formal da majoração, mas impôs limites materiais, como a exclusão das operações de “risco sacado” e a modulação de efeitos para resguardar a segurança jurídica.69
Do ponto de vista argumentativo, destacam-se algumas teses constitucionais que têm sido mobilizadas para questionar aumentos de IOF. Primeiro, desvio de finalidade, caracterizado quando a majoração é utilizada com propósito meramente arrecadatório, desconectado da função extrafiscal, afrontando o art. 153, § 1.º, da CF.70 Segundo, violação à proporcionalidade e razoabilidade, hipótese em que o impacto econômico da majoração excede o necessário para atingir o objetivo regulatório, produzindo efeitos regressivos incompatíveis com os arts. 145, § 1.º, e 150, IV, da CF.71 Terceiro, ofensa à capacidade contributiva, quando a incidência uniforme sobre diferentes portes econômicos resulta em carga excessiva para micro e pequenas empresas, contrariando a diretriz de tratamento diferenciado prevista no art. 170, IX, da CF.72 Quinto, insegurança jurídica e proteção da confiança, especialmente relevante em situações de alternância normativa, como no caso da suspensão e posterior restabelecimento do Decreto, sem prévia previsibilidade.73
O controle judicial, seja no âmbito concentrado, seja no difuso, não se limita a aferir a conformidade formal do ato normativo. Cabe-lhe também verificar a sua compatibilidade material com os princípios constitucionais e com a teleologia do IOF como instrumento regulatório. Nesse sentido, a jurisprudência recente reforça que a função extrafiscal não é escudo para arbitrariedades, devendo a calibragem do imposto ser passível de revisão judicial sempre que desbordar dos parâmetros constitucionais.74