A ascensão dos pactos afetivos no Brasil moderno.

Amor se contrata?

Exibindo página 1 de 2
05/10/2025 às 09:11

Resumo:


  • O pacto convivencial é uma tendência irreversível do Direito de Família, valorizando a autonomia privada para definir arranjos afetivos.

  • A união estável é uma situação de fato, enquanto o pacto convivencial permite regular os efeitos dessa união, especialmente os patrimoniais.

  • O projeto de lei nº 494/2023 propõe tornar obrigatória a celebração do contrato de convivência por escritura pública, visando maior segurança jurídica.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O “pacto convivencial” funciona como um escudo legal, garantindo que o seu patrimônio e seus direitos estejam seguros, independentemente dos rumos da união estável.

Introdução

O pacto convivencial constitui a consolidação de uma tendência irreversível do Direito de Família: a valorização da autonomia privada para a formação dos arranjos afetivos, em que os próprios indivíduos definem as regras que regerão suas vidas em comum13.

O casal contemporâneo, ao optar por construir uma vida conjunta fora dos moldes tradicionais do casamento, busca segurança jurídica e clareza, mas depara-se com conceitos difusos e uma legislação em transição. Expressões como “união estável”, “namoro qualificado” e “contrato de namoro” geram insegurança e dúvidas. A união estável, por sua natureza fática, pode se configurar e gerar consequências patrimoniais significativas, muitas vezes à revelia da vontade dos envolvidos 5.

Diante desse cenário, o artigo propõe uma análise sistemática: inicialmente, esclarece os conceitos centrais que estruturam as relações afetivas no Brasil, diferenciando os instrumentos contratuais existentes; em seguida, examina o panorama legal e jurisprudencial atual, com destaque à proteção conferida pelos tribunais superiores; posteriormente, aprofunda-se nas transformações legislativas em curso, em especial a reforma do Código Civil que redesenha o futuro do pacto convivencial; por fim, conclui avaliando o papel desse instrumento no equilíbrio entre a liberdade contratual e o dever estatal de proteção à família.


1. Contratos Afetivos

Compreender a natureza e a finalidade de cada figura jurídica é essencial para navegar com segurança nas relações familiares. A confusão entre união estável, pacto convivencial e contrato de namoro pode gerar graves repercussões jurídicas e patrimoniais.

1.1. União Estável

A união estável constitui o ponto de partida da análise. Reconhecida pela Constituição Federal de 1988 como entidade familiar protegida pelo Estado (Art. 226, §3º), encontra sua definição no artigo 1.723 do Código Civil 5, que a caracteriza como “convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família” 6.

Trata-se de uma situação de fato, não de um ato contratual 7. Seus efeitos jurídicos decorrem do preenchimento de requisitos subjetivos, independentemente da existência de documento formal 8. Tais requisitos são:

  • Publicidade: a relação é reconhecida socialmente, com o casal se apresentando como entidade familiar;

  • Continuidade e durabilidade: a convivência é estável, sem rupturas que a descaracterizem — a lei, com prudência, não impõe prazo mínimo, deixando a análise ao caso concreto 9;

  • Objetivo de constituir família (affectio maritalis): elemento central e subjetivo, traduz-se na intenção mútua de vida em comum, partilha e assistência recíproca 8.

A coabitação, embora comum, não é requisito essencial. O Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 382, pacificou que a ausência de moradia conjunta não impede o reconhecimento da união estável 10.

Essa natureza fática, ainda que protetiva, gera incertezas. Muitos casais vivem em união estável sem percebê-lo e, ao término da relação ou com o falecimento de um dos companheiros, enfrentam consequências patrimoniais como a partilha de bens 5. Essa informalidade e a subjetividade do “intuito de constituir família” criam um vácuo de segurança jurídica, que impulsionou o surgimento do “contrato de namoro” — instrumento defensivo destinado a afastar a configuração da união estável e seus efeitos 11.

1.2. Pacto Convivencial

Enquanto a união estável é um fato, o pacto convivencial (ou contrato de convivência) é o meio jurídico que permite aos companheiros regular suas consequências. Previsto no artigo 1.725 do Código Civil, sua principal função é afastar o regime legal supletivo da comunhão parcial de bens 6.

O pacto não cria a união estável, mas regula seus efeitos, sobretudo os patrimoniais 13. Ele materializa a autonomia da vontade, possibilitando ao casal personalizar regras financeiras e administrativas de sua vida em comum. Pode ser celebrado por instrumento particular ou escritura pública, antes ou durante a convivência 7.

Seu conteúdo é amplo e pode abranger, entre outros aspectos:

  • a escolha de regime de bens diverso do legal, como separação total, comunhão universal ou participação final nos aquestos 14;

  • a definição da data de início da união estável, determinante para a delimitação dos bens partilháveis 14;

  • regras sobre administração patrimonial e contribuição de cada parceiro nas despesas domésticas 2.

1.3. Pacto Antenupcial e Contrato de Namoro

Para completar o panorama, é necessário distinguir o pacto convivencial de outras figuras afins.

  • Pacto antenupcial: instrumento análogo, mas restrito a quem pretende se casar. Seu objetivo é idêntico — definir regime de bens —, diferindo apenas pela formalidade: deve ser celebrado por escritura pública e só produz efeitos após o casamento 14. A jurisprudência, entretanto, tem admitido sua aplicação a uniões estáveis em casos específicos 16.

  • Contrato de namoro: figura atípica, sem previsão legal, criada pela prática e pela doutrina 11. Seu propósito é o oposto do pacto convivencial: declarar que a relação é apenas um namoro, sem intenção de constituir família, buscando afastar os efeitos da união estável 11. Sua validade é controversa. Embora alguns tribunais o aceitem como indício, o entendimento predominante — especialmente no STJ — é o da primazia da realidade. Se os requisitos fáticos da união estável estiverem presentes, o contrato será ineficaz, pois a proteção constitucional à família não pode ser afastada por mera declaração formal 12.

A tensão entre a natureza fática da união estável e a natureza volitiva dos contratos permanece evidente. O Judiciário tem privilegiado o fato em detrimento da vontade expressa em contrato de namoro. Contudo, os projetos legislativos em tramitação indicam uma tendência de reforçar a autonomia da vontade, especialmente quanto à regulação da convivência por meio do pacto convivencial.

Para solidificar esses conceitos, o quadro a seguir oferece uma comparação direta.

Instrumento

Finalidade Principal

Momento de Celebração

Formalidade Exigida

Efeitos Jurídicos

Base Legal

Pacto Antenupcial

Regular o regime de bens do casamento.

Antes do casamento.

Escritura Pública (obrigatória).

Define regime de bens diverso do legal para casados.

Art. 1.653, CC

Pacto Convivencial (Atual)

Regular o regime de bens da união estável.

Antes ou durante a união estável.

Contrato escrito (particular ou público).

Define regime de bens diverso do legal para companheiros.

Art. 1.725, CC

Pacto Convivencial (Proposta PL 4/2025)

Regular o regime de bens da união estável.

Antes ou durante a união estável.

Escritura Pública (proposta de obrigatoriedade).

Idem, com maior segurança jurídica e publicidade.

Proposta de alteração do CC

Contrato de Namoro

Afastar a configuração da união estável.

Durante o namoro.

Contrato escrito (sem forma específica).

Declaratório, de eficácia controversa perante a realidade dos fatos.

Inexistente (criação da prática)


2. Situação Atual

O atual sistema de proteção jurídica aos conviventes compõe um mosaico formado pela conjugação entre a letra da lei e sua interpretação constante pelos tribunais superiores. A compreensão da interação entre esses dois polos — norma e jurisprudência — é fundamental para identificar os direitos e deveres que recaem sobre quem vive em união estável.

Na ausência de pacto convivencial, a lei estabelece como regime padrão o da comunhão parcial de bens 5. Em termos objetivos, todos os bens adquiridos onerosamente por qualquer dos companheiros durante a convivência pertencem a ambos, em partes iguais (50% para cada), independentemente de em nome de quem o bem esteja registrado 20.

Ficam excluídos da partilha os bens particulares, entre os quais se incluem:

  • aqueles que cada um possuía antes do início da união;

  • os recebidos por herança ou doação, ainda que durante a convivência.

Embora equitativo em muitos casos, esse regime pode não se adequar a todos os perfis. Casais em que um dos parceiros é empresário, detém patrimônio prévio substancial ou possui filhos de uniões anteriores tendem a adotar o pacto convivencial como instrumento de proteção, optando por regimes como o da separação total de bens, a fim de manter patrimônios independentes e incomunicáveis 9.

2.1. A Palavra dos Tribunais

O Superior Tribunal de Justiça exerce papel decisivo na delimitação dos contornos jurídicos do pacto convivencial, funcionando como bússola interpretativa para operadores do Direito e para os próprios conviventes. Suas decisões revelam um duplo movimento: de um lado, a valorização da autonomia da vontade; de outro, a preservação da entidade familiar contra tentativas de descaracterização.

No julgamento do REsp 1.459.597/SC, o STJ reconheceu a validade de contrato de convivência celebrado por instrumento particular que instituiu regime semelhante ao da comunhão universal. A Corte entendeu que o artigo 1.725 do Código Civil exige apenas a forma “escrita”, não impondo a solenidade da escritura pública. A decisão valorizou a manifestação de vontade e a boa-fé das partes, priorizando o conteúdo sobre a formalidade 21.

Em outro precedente paradigmático (REsp 2.064.895), o STJ admitiu que um pacto antenupcial, ainda que elaborado com vistas ao casamento não realizado, pudesse regular os efeitos patrimoniais de uma união estável. O tribunal entendeu que o documento refletia de modo inequívoco a intenção dos conviventes de adotar o regime da separação total de bens, devendo essa vontade ser respeitada desde o início da convivência 16.

O STF, por sua vez, produziu uma das decisões mais impactantes ao julgar o Recurso Extraordinário 878.694, declarando a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que previa regras sucessórias menos favoráveis aos companheiros em relação aos cônjuges. A Corte determinou a aplicação das mesmas regras do artigo 1.829 do Código Civil, conferindo ao companheiro a condição de herdeiro necessário 18. Essa equiparação ampliou a relevância do planejamento sucessório nas uniões estáveis: mesmo sob regime de separação total, o companheiro sobrevivente passou a concorrer na herança de bens particulares, ao lado de filhos e pais, tornando o pacto convivencial — aliado a testamentos — uma ferramenta essencial de organização patrimonial.

Apesar de reconhecer a autonomia privada, o STJ mantém firme o princípio da primazia da realidade. Diante de “contratos de namoro” que colidam com uma realidade fática de união estável, o tribunal desconsidera o instrumento, sustentando que a proteção à família é mandamento constitucional e não pode ser afastada por mero acordo que, muitas vezes, busca fraudar a lei 17. Nesse contexto, o STJ consagrou a expressão “namoro qualificado” para descrever relações intensas e duradouras que, embora revelem projetos de vida em comum, ainda não configuram união estável por faltar-lhes o elemento atual de constituição familiar 22.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

2.2. O que se Pode (e não se Pode) Definir no Pacto

A liberdade contratual dos conviventes é ampla, desde que respeitados os limites legais. O pacto convivencial pode abranger:

  • a escolha de qualquer regime de bens previsto em lei, ou até mesmo a criação de regimes híbridos, combinando elementos de diferentes modelos;

  • a forma de administração do patrimônio, indicando a responsabilidade de cada parte sobre determinados bens;

  • a distribuição das despesas domésticas, de maneira proporcional aos rendimentos ou de forma igualitária 15.

Contudo, essa autonomia encontra fronteiras intransponíveis. O pacto não pode conter cláusulas que violem normas de ordem pública, a dignidade da pessoa humana ou os deveres fundamentais da união estável, como lealdade, respeito e assistência mútua, previstos no artigo 1.724 do Código Civil 2.

Um dos debates mais complexos diz respeito às chamadas “cláusulas existenciais”, de natureza não patrimonial. Questiona-se, por exemplo, a validade de estipulações que prevejam multa por infidelidade ou a divisão de tarefas domésticas. A doutrina é divergente: Maria Berenice Dias defende a validade dessas cláusulas como expressão legítima da autonomia privada, enquanto Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald sustentam que configuram indevida “monetização do afeto”, desvirtuando a essência da relação familiar 23. A jurisprudência ainda é incipiente, mas tende a avaliar caso a caso, observando se a estipulação ofende a dignidade de algum dos parceiros.


3. Congresso Nacional e Projetos de Lei

O Direito de Família reflete a sociedade que o produz e, por isso, encontra-se em constante transformação. Atualmente, o Congresso Nacional debate propostas que prometem alterar de modo significativo a forma como os pactos convivenciais são celebrados e registrados, sinalizando um futuro de maior formalismo e segurança jurídica.

O Projeto de Lei nº 494/2023, de autoria do Deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), representa um marco dessa tendência 19. A proposta pretende modificar o Código Civil para tornar obrigatória a celebração do contrato de convivência por escritura pública, seguida de seu registro em cartório 19.

A justificativa é clara: conferir maior segurança jurídica não apenas aos conviventes, mas também a terceiros 19. Na sistemática atual, um contrato particular de convivência que adote, por exemplo, o regime de separação total de bens, não possui publicidade. Assim, um credor pode não ter ciência sobre qual patrimônio responde por dívidas contraídas por um dos companheiros. A exigência de escritura pública e registro resolveria essa lacuna de informação, tornando o regime patrimonial oponível a terceiros 24.

O projeto ainda propõe estender à união estável as mesmas regras de separação obrigatória de bens já aplicáveis ao casamento, como nos casos em que um dos conviventes possui mais de setenta anos 19. Busca-se, com isso, uniformizar a tutela jurídica das duas entidades familiares, garantindo coerência e previsibilidade.

A transformação mais abrangente, contudo, encontra-se no Projeto de Lei nº 4/2025, que propõe uma reforma ampla do Código Civil brasileiro 25. Fruto do trabalho de uma comissão de juristas, o projeto busca adequar a legislação civil às novas realidades sociais, tecnológicas e familiares do século XXI 26. No campo do Direito de Família, as mudanças propostas são expressivas.

O texto consolida o termo “pacto convivencial” e, alinhando-se à proposta do PL 494/2023, torna obrigatória a escritura pública para sua celebração. A medida equipara, em solenidade e segurança, o pacto convivencial ao pacto antenupcial, eliminando a flexibilidade da forma particular antes admitida pelo STJ 25. Essa alteração confirma a trajetória legislativa em curso: transformar a união estável de uma mera situação de fato em um negócio jurídico familiar com formalidades próprias, aproximando-a do casamento.

Em movimento inverso de desburocratização, a reforma propõe que a mudança do regime de bens durante a união estável (ou casamento) possa ocorrer sem necessidade de autorização judicial. Bastará que os conviventes firmem nova escritura pública, desde que não haja prejuízo a terceiros 25.

O projeto reforça a contratualização das relações familiares, prevendo expressamente o “pacto conjugal ou convivencial” em diversos dispositivos. Isso consolida a possibilidade de os casais regularem, por meio contratual, não apenas o regime de bens, mas também outras questões patrimoniais e existenciais da vida em comum 27.

Em consonância com a evolução jurisprudencial e com as decisões do STF nas ADIs 4277 e ADPF 132, o texto substitui expressões como “homem e mulher” por “pessoas” ao tratar do casamento e da união estável. A mudança reafirma a isonomia e a segurança jurídica das famílias homoafetivas 15.

As propostas legislativas — especialmente a reforma do Código Civil — representam avanço notável em termos de segurança jurídica. A exigência de escritura pública e registro garantirá publicidade ao regime de bens escolhido pelo casal, prevenindo litígios e assegurando transparência nas relações com terceiros 19.

Entretanto, esse reforço formalista impõe um desafio de acessibilidade. A obrigatoriedade de lavratura em cartório, com custos de emolumentos e eventual necessidade de assessoria jurídica, pode constituir barreira econômica para casais de baixa renda ou com menor acesso à informação. Há o risco de que um instrumento criado para ampliar a autonomia da vontade acabe, na prática, restringindo-a. Casais que hoje poderiam formalizar sua relação por simples contrato particular podem se ver desestimulados pela burocracia, permanecendo sob o regime legal da comunhão parcial — muitas vezes contra sua real intenção.

O grande desafio do legislador será, portanto, equilibrar segurança e acessibilidade, garantindo que o fortalecimento da formalidade não comprometa a universalidade do acesso aos instrumentos de planejamento familiar.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Daniela Pinheiros

Com formação em Direito pela Universidade Paulista (UNIP) e em Psicanálise, ofereço uma abordagem integrada que visa promover tanto a justiça quanto a saúde mental. Meu trabalho consiste em orientar para a proteção e defesa de direitos, contribuindo para uma sociedade mais justa, além de auxiliar no processo de autoconhecimento e na construção de relações mais saudáveis. A união dessas duas áreas me permite analisar cada caso a partir sob uma perspectiva completa, que considera tanto os aspectos legais quanto as dimensões subjetivas de cada cliente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos