1. Introdução
A Lei 14.365/2022 trouxe significativas mudanças aos Códigos de Processo Civil, Processo Penal e, sobretudo, ao Estatuto da Advocacia.
O Projeto de Lei nº 5284/2020, que atualizou diversos dispositivos do Estatuto da Advocacia, teve autoria do deputado federal Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG) e recebeu contribuições substantivas dos relatores, o deputado Lafayette de Andrada (REP-MG), na Câmara; e o senador Weverton Rocha (PDT–MA), no Senado; além de outros parlamentares, da Ordem dos Advogados do Brasil, juristas e demais atores do Sistema de Justiça.
O presidente Jair Bolsonaro, no entanto, vetou 12 pontos do texto, mormente os que limitavam a busca e apreensão em escritórios de advocacia, sob a justificativa de que as medidas poderiam atrapalhar as investigações e, consequentemente, o dever de apuração de ilícitos por parte do Estado.
O presente artigo, portanto, passa a comentar cada alteração legislativa ora introduzida pela nova Lei, visando indicar o seu impacto positivo, ou não, para o exercício da advocacia.
2. Do reforço ao munus público incumbido ao advogado no processo administrativo e legislativo (Art. 2º, § 2º - A e art. 2º - A);
As alterações são inauguradas com duas mudanças exemplares no art. 2º do Estatuto da Advocacia, determinando, respectivamente, que “no processo administrativo, o advogado contribui com a postulação de decisão favorável ao seu constituinte, e os seus atos constituem múnus público” (§ 2.º-A), bem como que “o advogado pode contribuir com o processo legislativo e com a elaboração de normas jurídicas, no âmbito dos Poderes da República”.
Por óbvio, as mudanças refletem e reforçam o caríssimo postulado da função social da advocacia tido no art. 133. da CF, no sentido de que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Não se pode ignorar que equivalente ressalva já se encontrava exposta no § 1º do mesmo dispositivo – “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social”, dentre outros do ordenamento. No entanto, fato é que a hermenêutica constitucional não é orgânica, sendo necessária a persecução por normas legais (lei interpretativa) para desvendar o autêntico propósito do ordenamento e possibilitar a efetividade dos princípios constitucionais ou, no caso, do pelo exercício da advocacia.
Nesse sentido, ao nosso ver, não há qualquer redundância legislativa no presente caso. Ao contrário, os acréscimos evidenciam a atenção dada pelo legislador aos notórios e crescentes descasos da administração pública e política, sobretudo com relação a burocratização exacerbada contra o administrado, que não raras vezes é vitimado por atos administrativos eminentemente ilegais, decaídos ou desarrazoáveis, em prol de meras “notas técnicas” e justificativas eleitoreiras, por exemplo.
A referida alteração, portanto, não deixa de ser bem-vinda, sendo certo que os novos dispositivos ajudarão o jus dicere dos remédios constitucionais e ações ordinárias para anularem atos ilegais de processos administrativos ou legislativos que, sempre indevidamente, venham a desprezar a essencialíssima atividade da advocacia.
Quiçá, as alterações também poderão chamar atenção dos administradores do executivo ou aos procedimentos de qualquer casa de leis, para a existência do postulado da autotutela administrativa que, em prática, tem sido tratada como ficção jurídica por tantos articuladores da nossa democracia.
3. Da desnecessidade de formalização de mandato ou contrato de honorários para a representação extraprocessual (Art. 5º, § 4º);
A Lei nº 14.365/2022 também formalizou, no art. 5º, § 4º do Estatuto da Advocacia, algo já bem sedimentado na prática jurídica, que é a possibilidade de se prestar serviços de consultoria ou assessoria jurídicas sem o respectivo mandato ou contrato de honorários advocatícios de forma escrita.
A alteração também afasta a exigência desmedida feita por alguns de se exigir a apresentação de mandato para se realizar acordo extrajudicial ou até mesmo iniciar tratativas com o advogado da ex adversa, além de respeitar o princípio da liberdade de formas, sendo certo que, conforme leciona Maria Helena Diniz, “a forma livre é qualquer meio de exteriorização da vontade nos negócios jurídicos, desde que não previsto em norma jurídica como obrigatório”1 – ex vi art. 654. e art. 657. do CC.
4. Do respeito que deve ser dispensado ao advogado, de ofício e no exercício da profissão, por autoridades e servidores públicos (Art. 6º, p. único);
Houve o muito bem-vindo acréscimo, também, ao p. único do art. 6º do Estatuto da Advocacia que, além de aumentar os sujeitos públicos responsáveis pelas tratativas para com advogados, acrescentou que estes devem dispensar ao advogado “tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho, preservando e resguardando, de ofício, a imagem, a reputação e a integridade do advogado nos termos desta Lei” (grifo nosso).
Novamente, em homenagem a função social da advocacia, atentou-se o legislador aos vários desagravos realizados em desfavor de advogados e advogadas em todo o território nacional, à exemplo dos nove desagravos realizados pela OAB-GO apenas em 9 (nove) meses2, sem prejuízo da humilhação pública sofrida por vários causídicos durante a pandemia, com comentários depreciativos e com juízos de valor flagrados sendo proferidos por desembargadores, juízes e promotores.
5. Da atualização das prerrogativas previstas no art. 7º do Estatuto da Advocacia
Evidentemente, importantíssimas alterações foram trazidas ao art. 7º do Estatuto, referenciado não raras vezes como o principal dispositivo quanto as prerrogativas inerentes a profissão dos advogados, cumprindo sua subdivisão em tópicos para melhor compreensão.
5.1. Do uso da palavra em julgamentos administrativos (i. X)
A alteração sentida no i. X do art. 7º, ao nosso ver, deve ser vista com parcimônia e muita cautela, em que pese ter sido revista pela Ordem dos Advogados do Brasil em sua aprovação.
É bem verdade que o dispositivo em análise estendeu o direito da classe de fazer o uso da palavra, categoricamente, a qualquer tribunal “administrativo, órgão de deliberação coletiva da administração pública ou comissão parlamentar de inquérito”, harmonizando, junto com o novel art. 2º, a atuação do advogado no âmbito de todos os poderes, sobretudo o executivo.
Não se pode ignorar, contudo, que foi suprimido do texto original a prerrogativa de assim o fazer “para replicar acusação ou censura que lh forem feitas”, o que não se coaduna com as demais ordens de respeito e decoro que emanam do restante do Código, além de submeter o causídico, em tese, ao arbítrio do Judiciário ou o Presidente do ato para ver eventual ofensa corretamente censurada. Não sendo o bastante, também foi acrescida a determinação de que a interferência deve ser feita de modo “pontual”.
Especula-se que o legislador pretendia evitar a combatividade nociva entre os sujeitos do processo ou do ato administrativo com a nova redação legal. No entanto, é evidente que a alteração limita justamente as hipóteses em que a questão deveria ser levantada em defesa da classe, e não somente para ventilar sobre elementos do caso concreto, conforme agora se encontra em vigência – “para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, a documentos ou a afirmações que influam na decisão”.
5.2. Da ampliação considerável das hipóteses de sustentação oral (§ 2º - B)
Talvez a mais significativa alteração emane da considerável expansão das hipóteses que comportam sustentação oral por parte dos causídicos, agora podendo ser realizadas em qualquer recurso “interposto contra decisão monocrática de relator que julgar o mérito ou não conhecer dos seguintes recursos ou ações:
I - recurso de apelação;
II - recurso ordinário;
III - recurso especial;
IV - recurso extraordinário;
V - embargos de divergência;
VI - ação rescisória, mandado de segurança, reclamação, habeas corpus e outras ações de competência originária.
É notório que grande parte do acervo processual de todos os Tribunais do ordenamento contam, em algum momento, com despacho monocrático que nega seguimento a recursos endereçados aos Tribunais Superiores, tamanha a adoção do juízo provisório de admissibilidade recursal dentre as Cortes de nosso país – ex vi Súmula nº 568 do STJ3. A observação se faz sem prejuízo da prejudicialidade de alguns recursos em razão, por exemplo, de sua manifesta inadmissibilidade ou despreparo.
Tendo isso em mente, não restam dúvidas que o novo dispositivo soma a uma análise mais pormenorizada que se possa ter do processo ou da admissibilidade do recurso, em prol do causídico e do jurisdicionado. No entanto, não se pode deixar de apontar pelo desafio de implementá-lo em prática.
Evidentemente, a imperatividade do referido dispositivo desafia o Regimento Interno e a regra de julgamento de vários Tribunais, sendo ao menos esperada a interferência das Corte Superiores ou até mesmo do controle de constitucionalidade à ser exercido pelo STF quanto ao tema, sob o pretexto de se favorecer a celeridade processual e a reserva do possível.
5.3. Da cadeia de custódia de materiais apreendidos e seu sigilo (§ 6º - D e E)
Também houve considerável atualização dentre os parágrafos do art. 6º do diploma, que regem sobre a investigação e apreensão de documentos em razão da “prática de crime por parte de advogado”.
As novas determinações garantem cadeia de custódia com relação aos materiais apreendidos, cujos quais, pela natureza e volume, não se distinguem dos que seriam objeto da investigação de per si, “assegurada a presença do representante da OAB”, justamente para se resguardar o sigilo das referidas informações (§ 6º - D).
Em seguida, aduz o dispositivo que a inobservância do procedimento narrado dará ensejo, por parte do representante, à elaboração de “relatório do fato ocorrido, com a inclusão dos nomes dos servidores, dará conhecimento à autoridade judiciária e o encaminhará à OAB para a elaboração de notícia-crime”. Curiosamente, também foi o excerto que obteve mais vetos pelo chefe do executivo, sob a justificativa de que prejudicaria as investigações.
Por óbvio, procurou conciliar o legislador o poder de polícia do Estado e o direito à proteção de dados pessoais, reforçado pela nova Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados), mais que adequada para o cenário moderno de fluxo desenfreado de informação dos dias atuais.
5.4. Da colaboração premiada e da vedação expressa de realizá-la em desfavor de quem tenha sido seu cliente (§ 6º - I)
Deve ser vista de forma natural a nova normativa referente a impossibilidade do advogado de delatar o seu causídico, pouco importando o término do mandato. Conforme declinou Luís Inácio Adams em artigo publicado no ConJur4, “ainda que não houvesse expressa proibição de Advogado delatar seus clientes, sistemática interpretação legal revelava a impossibilidade de fazê-lo”.
O Código de Ética e Disciplina da OAB, em seus arts. 21, 35, 36, 37 e 38, cuida de assegurar e velar pelo sigilo profissional e, não obstante, o próprio Estatuto alterado guarda em seu art. 7º, XIX e art. 34, VIII e IX, o direito do advogado de não depor sobre fato que esteja sobre o manto profissional, sob pena de se caracterizar infração disciplinar.
Não sendo o bastante, a conduta já estava tipificada no art. 154. e art. 355, ambos do Código Penal, relativos, respectivamente, aos crimes de “violação de segredo profissional” e de “patrocínio infiel”, inclusive com nova disposição trazida no § 14 da nova Lei. Invariavelmente, a conduta chegou a ser normalmente praticada no âmbito da lava-jato5 e do GAECO/GO6, tendo sido recepcionada brevemente por certos Tribunais de Justiça antes de ser revertidas frente às Cortes Superiores.
Nesse sentido, a alteração veio extirpar de vez do ordenamento o referido comportamento, notoriamente contrário à ética e a moralidade inerentes ao exercício da advocacia.
5.5. Da competência privativa do CFOAB para decidir sobre a prestação efetiva de serviços e dos honorários advocatícios referentes ao serviço jurídico realizado por advogado (§ 14, § 15 e § 16)
A nova Lei também fez abranger os artigos que versam sobre a atividade privativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), para decidir sobre o exercício da atividade advocatícia em geral, bem como sobre os honorários advocatícios da classe, sendo nula, “em qualquer esfera de responsabilização, o ato praticado com violação da competência privativa do Conselho Federal da OAB” (§ 16).
O destaque do novo dispositivo se faz com a ressalva de que “o poder de punir disciplinarmente os inscritos na OAB compete exclusivamente ao Conselho Seccional em cuja base territorial tenha ocorrido a infração”, nos termos do art. 70. do mesmo Estatuto, reservando-se a atividade do CFOAB à classe como um todo.
6. Do aumento de pena quanto ao delito de violação de direito ou prerrogativa de advogado (art. 7º-B)
Também houve importante aumento de pena quanto ao delito de “violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei”, aumentada de 3 (três) meses a 1 (um) ano, para de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
O ampliado rigor do delito evidentemente aumenta a salvaguarda às prerrogativas do Estatuto, sobretudo por perder o infrator o direito ao sursis processual previsto no art. 89. na Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), por reservar a benesse apenas aos delitos com pena mínima cominada que não ultrapasse 1 (um) ano.
7. Das situações excepcionais que impossibilitem as atividades presenciais do estagiário (art. 9º, § 5º e 6º)
A nova Lei também inovou quanto a atividade do estagiário que se confrontar com a impossibilidade de trabalhar presencialmente, “em caso de pandemia ou em outras situações excepcionais, declaradas pelo poder público”, disciplinando que a atividade poderá ser realizada em regime de teletrabalho ou qualquer meio telemático, sem que configure vínculo de emprego, ressalvando que os gastos com a referida atividade deverão constar no convênio de estágio e do termo de estágio.
8. Da competência do CFOAB para definir os parâmetros sobre a relação jurídica entre advogados, advogados associados, sociedade de advogados, ou escritório de advogados – desvinculação da Consolidação das Leis de Trabalho – espaço compartilhado de trabalho (art. 15, § 10, 11 e 12);
Quanto a sociedade de advogados, foi sedimentada a competência do CFOAB para acompanhar, fiscalizar e definir os parâmetros sobre a “relação jurídica mantida entre advogados e sociedades de advogados ou entre escritório de advogados sócios e advogado associado, inclusive no que se refere ao cumprimento dos requisitos norteadores da associação sem vínculo empregatício autorizada expressamente neste artigo”.
A Lei traz importante novidade no sentido de que “não será admitida a averbação do contrato de associação que contenha, em conjunto, os elementos caracterizadores de relação de emprego previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)”, procurando dissociar completamente a profissão liberal da advocacia tutelada pelo Estatuto dos empregos em geral.
Quanto à sede, filial ou local de trabalho, o diploma disciplina que esta poderá ser compartilhada entre outros escritórios de advocacia e até mesmo empresas (§ 12), “desde que respeitadas as hipóteses de sigilo previstas nesta Lei e no Código de Ética e Disciplina”, sendo certo que o legislador anteviu o crescente movimento de coworking entre escritórios e empresas de todo o território nacional.
9. Da possibilidade de associação múltipla pelo advogado sem vínculo empregatício (art. 17-A e 17-B);
Outra alteração importantíssima trazida pela nova Lei foi a possibilidade de associação dada ao advogado com “uma ou mais sociedades de advogados ou sociedades unipessoais de advocacia”, sem que caracterizasse, novamente, o vínculo de emprego celetista (art. 17-A), o que contribui sobremaneira com a independência financeira e intelectual da profissão.
A normativa já havia sido autorizada regimentalmente pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no Provimento nº 169/2015, alcançando apenas agora a alçada de norma legal pela nova Lei.
Com o advento do dispositivo, todo advogado poderá prestar serviços e, inclusive, participar dos resultados das sociedades que esteja registrado, desde que pactue contrato próprio “que poderá ser de caráter geral ou restringir-se a determinada causa ou trabalho e que deverá ser registrado no Conselho Seccional da OAB em cuja base territorial tiver sede a sociedade de advogados que dele tomar parte” (art. 17-B).
O novo dispositivo também delimita os requisitos mínimos do aludido contrato de associação (Art. 17-B, p. único) que, além da devida qualificação e duração, envolve a “especificação e delimitação do serviço a ser prestado”, a “forma de repartição dos riscos e das receitas entre as partes, vedada a atribuição da totalidade dos riscos ou das receitas exclusivamente a uma delas” (grifo nosso).
10. Do advogado empregado – novas disposições sobre regime e jornada de trabalho (art. 18. e art. 20);
Naturalmente, ao passo que o novo diploma restringe a caracterização do vínculo de emprego entre advogados e suas associações, também amplia o regramento em relação ao advogado empregado (celetista), em relação aos regimes de trabalho e, principalmente, a jornada de trabalho.
O art. 18, § 2º agora discrimina os três regimes de trabalho a serem escolhidos pelo empregador – exclusivamente presencial, não presencial ou misto –, cabendo as partes pactuarem, por acordo individual simples, a alteração de um regime para o outro. Essa atualização evidencia novamente o intuito do legislador de modernizar o Estatuto, para regrar as relações de emprego e prestação de serviços em um mundo cada vez mais digital, à exemplo do trabalho do estagiário (art. 9º, § 5º).
Quanto ao advogado empregado, também constou categoricamente na nova Lei a indicação da jornada de trabalho (art. 20), sendo que esta “não poderá exceder a duração diária de 8 (oito) horas contínuas e a de 40 (quarenta) horas semanais”. A despeito da jornada ter dobrado com relação a norma revogada – 4 (quatro) horas continuas e 20 (vinte) horas semanas –, não está mais prevista a perspectiva de alteração desta por “acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva”.
Cumpre esclarecer que não houve alteração quanto a previsão de remuneração, permanecendo esta como sendo aquela fixada “em sentença normativa, salvo se ajustado em acordo ou convenção coletiva de trabalho” (art. 19).