5. Efetividade e desafios na aplicação das leis nº 14.811/2024 e nº 15.211/2025
A promulgação das Leis nº 14.811/2024 e nº 15.211/2025 representa um avanço expressivo no campo da proteção infantojuvenil, sobretudo no enfrentamento da violência digital. Contudo, a efetividade dessas normas depende de fatores que ultrapassam o texto jurídico. O cumprimento de leis dessa natureza requer não apenas vontade política, mas também a articulação entre instituições, a capacitação de profissionais e a conscientização da sociedade sobre os novos direitos e deveres no ambiente virtual. Como afirma Barros (2024, p. 150), “a eficácia da lei está condicionada à sua materialização social; de nada adianta uma legislação avançada se seus operadores e destinatários não a compreendem ou não a aplicam de modo coerente”.
Um dos principais desafios na aplicação da Lei nº 14.811/2024 é a identificação e responsabilização dos agressores virtuais. A dinâmica das redes sociais e dos aplicativos de mensagens, marcada pelo anonimato e pela rápida disseminação de conteúdo, dificulta a coleta de provas e a punição efetiva. Segundo Pinheiro (2023, p. 94), “o caráter transnacional da internet cria obstáculos práticos para a aplicação da lei penal, exigindo cooperação entre plataformas digitais, autoridades judiciais e órgãos internacionais”. Assim, a efetividade da legislação depende de instrumentos técnicos adequados e de parcerias com empresas de tecnologia que possam colaborar na identificação de comportamentos ilícitos.
A aplicação das Leis nº 14.811/2024 e nº 15.211/2025 enfrenta desafios significativos relacionados à identificação de agressores, à coleta de provas e à articulação entre os diferentes órgãos públicos e plataformas digitais. Sem políticas públicas consistentes, capacitação de profissionais e campanhas de conscientização voltadas para famílias e escolas, a lei corre o risco de permanecer apenas no plano teórico. A proteção integral da infância no ambiente digital depende, portanto, da integração entre o direito, a tecnologia e a educação, de modo que a legislação se converta em prática efetiva e transformadora na vida das crianças e adolescentes.” (PINHEIRO, 2023, p. 94)
Além dos aspectos jurídicos e tecnológicos, há também o desafio cultural. Ainda é comum que práticas de bullying e cyberbullying sejam minimizadas como brincadeiras ou conflitos banais, o que dificulta o reconhecimento da gravidade do problema. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2023) enfatiza que “a mudança de paradigma exige uma abordagem pedagógica que envolva escolas, famílias e comunidades, promovendo valores de respeito, empatia e convivência pacífica”. Nesse sentido, políticas públicas voltadas à educação emocional e à cidadania digital tornam-se essenciais para que a legislação alcance resultados concretos.
A Lei nº 15.211/2025, ao instituir o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente, amplia a noção de proteção para o campo da governança digital e da segurança informacional. Ela impõe deveres às plataformas virtuais, como a obrigação de retirar conteúdos prejudiciais e de proteger dados pessoais de menores de idade. Ribeiro (2022, p. 64) observa que “a efetividade dessa lei depende da integração entre o Direito, a tecnologia e a ética digital, de modo que o ambiente virtual seja regulado sem comprometer a liberdade de expressão e o acesso à informação”. Assim, o Estado tem o papel de fiscalizar, mas também de educar para o uso consciente da tecnologia.
Outro aspecto relevante é a capacitação dos profissionais do sistema de justiça e da educação. A aplicação das novas leis exige preparo técnico e sensibilidade social para lidar com vítimas e agressores em contextos complexos. Como destaca Cristiny, Correia e Queiroz (2024, p. 8), “é fundamental que promotores, juízes, psicólogos e professores sejam formados em práticas restaurativas e de mediação de conflitos, evitando respostas puramente punitivas e priorizando a reconstrução de vínculos”. Essa abordagem humanizada reforça o caráter pedagógico da legislação e favorece a prevenção de reincidências.
Além disso, a integração entre políticas públicas é essencial para consolidar a eficácia das normas. O enfrentamento da violência digital não pode ocorrer de forma isolada. É preciso que os programas de proteção da infância dialoguem com políticas educacionais, de saúde mental e de inclusão social. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (BRASIL, 2024) defende que “a proteção infantojuvenil deve ser transversal e permanente, envolvendo ações articuladas entre Estado, escola, família e sociedade civil”. Essa perspectiva intersetorial é o que permite transformar a letra da lei em resultados tangíveis na vida das crianças e adolescentes.
Por fim, deve-se reconhecer que o acesso desigual à tecnologia e à informação ainda constitui um obstáculo para a efetividade das leis. Em muitas regiões do país, a falta de conectividade, de equipamentos e de formação digital limita a atuação dos órgãos de proteção e impede que vítimas denunciem situações de violência. Assim, o combate à exclusão digital deve ser entendido como parte integrante da política de proteção infantojuvenil, já que a vulnerabilidade tecnológica também é uma forma de exclusão social.
O conjunto desses fatores revela que a aplicação das Leis nº 14.811/2024 e nº 15.211/2025 exige mais do que um aparato normativo robusto; requer um compromisso ético e institucional com a infância e a juventude. A legislação fornece as bases, mas a efetividade depende de uma rede solidária de cooperação entre Estado, escolas, famílias e sociedade civil.
Em última análise, o verdadeiro desafio está em transformar a proteção jurídica em proteção vivida, aquela que se manifesta na escuta ativa, na prevenção das violências e na construção de ambientes seguros e acolhedores. A efetividade dessas leis será alcançada quando a tecnologia, em vez de ser instrumento de exclusão e agressão, se converter em ferramenta de inclusão, empatia e cidadania. Cabe à sociedade brasileira, portanto, o papel de garantir que cada direito reconhecido na norma se concretize no cotidiano de suas crianças e adolescentes.
6. Considerações finais
A análise das Leis nº 14.811/2024 e nº 15.211/2025 permite concluir que o ordenamento jurídico brasileiro tem avançado de maneira significativa no enfrentamento das múltiplas formas de violência que atingem crianças e adolescentes, sobretudo no ambiente digital. Essas normas representam um passo decisivo na adaptação do Direito às novas realidades sociais, marcadas pela presença constante da tecnologia e pelas complexas relações estabelecidas em redes virtuais. Ao reconhecer que o espaço digital não é neutro e pode se tornar palco de agressões e violações, o legislador brasileiro reafirma o compromisso constitucional de garantir proteção integral à infância e à juventude, ampliando a tutela jurídica para além dos limites físicos tradicionais.
A tipificação de condutas como o bullying e o cyberbullying, bem como a previsão de mecanismos específicos para responsabilização de agressores e prevenção de novos casos, demonstram que tais práticas não podem mais ser tratadas como simples conflitos interpessoais. Elas constituem verdadeiras ofensas à dignidade humana e comprometem o desenvolvimento emocional, psicológico e social de crianças e adolescentes. A legislação, ao reconhecer essa gravidade, traz não apenas uma resposta punitiva, mas também uma sinalização ética e educativa de que o respeito deve ser um valor inegociável nas interações, tanto presenciais quanto virtuais.
No entanto, a promulgação das leis, por si só, não é suficiente para assegurar a efetividade da proteção integral. Nenhum avanço legislativo se sustenta sem a implementação de políticas públicas consistentes, capazes de transformar o texto jurídico em prática social. A aplicação dessas normas deve vir acompanhada de programas preventivos nas escolas, capacitação de profissionais da educação e da justiça, além de campanhas de conscientização que envolvam famílias e comunidades. É essencial que se fortaleça uma cultura de prevenção, diálogo e acolhimento, que substitua a lógica da punição isolada pela construção de ambientes mais seguros e empáticos.
A atuação do Estado deve estar articulada com a responsabilidade compartilhada da sociedade e das instituições educacionais. Famílias, professores e gestores públicos precisam compreender que a proteção da infância e da adolescência ultrapassa o campo jurídico: é uma tarefa coletiva, que exige sensibilidade, empatia e compromisso ético. O combate à violência digital não se limita à repressão dos atos, mas se estende à formação de valores que promovam o uso consciente e responsável da tecnologia.
Assim, a legislação analisada assume um duplo papel: é, ao mesmo tempo, um instrumento punitivo e pedagógico. Punitivo porque estabelece sanções e reconhece juridicamente a gravidade das agressões virtuais; pedagógico porque carrega em seu conteúdo a intenção de provocar reflexão social e promover a cultura de paz. Ao regulamentar o comportamento no ambiente digital, o Direito contribui para redefinir as fronteiras da convivência, estimulando práticas de respeito e solidariedade.
O verdadeiro alcance dessas normas dependerá, portanto, da articulação entre os diferentes atores sociais. A proteção integral das crianças e adolescentes será efetiva quando houver comprometimento real de famílias, escolas, sociedade civil e Estado na defesa intransigente dos direitos infantojuvenis. Mais do que garantir punições, é preciso garantir oportunidades de diálogo, educação e reconstrução de vínculos.
Conclui-se que as Leis nº 14.811/2024 e nº 15.211/2025 representam não apenas avanços jurídicos, mas também marcos civilizatórios na forma como o Brasil enxerga sua juventude. Elas reafirmam que proteger é educar, e educar é prevenir. O caminho para uma sociedade mais justa e segura passa pela consciência de que cada gesto de cuidado e respeito com as crianças e adolescentes é um investimento no futuro coletivo. A consolidação dessa cultura de proteção não depende apenas de normas, mas do compromisso humano e permanente de transformar o ideal de proteção integral em realidade concreta.
Referências
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Laws 14.811/2024 and 15.211/2025 as Means of Implementing the Protection of Children and Adolescents in the Digital Environment
Abstract: This study addresses the evolution of legal protection for children and adolescents in Brazil, focusing on the recent Laws No. 14.811/2024 and No. 15.211/2025, which expand state protection in the digital environment. It is delimited to a historical and normative analysis of child and adolescent protection, considering legislative progress and the challenges posed by connectivity and digital violence. The main issue is whether these laws ensure effective protection against new forms of aggression. The objectives are to investigate the historical trajectory of legal protection, identify legislative advances, and assess the application of these norms. This research is justified by the urgency to understand the law’s response to social and technological transformations. It concludes that, although significant advances, the effectiveness of these laws depends on integrated public policies, rights education, and the joint participation of the state, family, and society.
Keywords: bullying, comprehensive protection, cyberbullying, digital rights, legislation, children and adolescents.