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O caso Raposa/Serra do Sol no STF e suas repercussões para a soberania nacional

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30/12/2008 às 00:00
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3. Fundamentos jurídicos da ilegalidade da Demarcação da Reserva

Como foi dito acima, seja no Judiciário ou no Legislativo, os argumentos são semelhantes. Os fundamentos contrários à demarcação, objeto da Portaria 534, podem ser resumidos nos seguintes:

  • a) Portaria não é o meio capaz de instituir a demarcação. O princípio da legalidade predispõe que qualquer limitação a direito deve ser feita através de lei formal. Então, em princípio, já se pode identificar uma inconstitucionalidade procedimental quanto ao meio; qualquer limitação a direitos individuais, deve ser feita através de lei. A limitação ao direito de permanência da população não-indígena só poderia ser positivada em lei formal, nunca através de um ato administrativo, como foi a Portaria.

  • b) Segunda crítica feita à Portaria, diz respeito ao laudo antropológico que serviu de base para o estudo que estabeleceu a demarcação. De acordo com a perícia realizada, por determinação do Juiz Federal dr. Girão, o laudo foi fraudado.

Um grupo de 27 profissionais, entre técnicos e índios, nomeados pela FUNAI, foi encarregado de realizar o levantamento fundiário da Reserva, no período de 1991 a 1994. Como conseqüência destes estudos, a Reserva passou por sucessivas ampliações até alcançar o montante de 1,7 milhões de hectares.

Seguem, abaixo, alguns pontos do Laudo Antropológico rechaçados pela opinião pública, bem como atacados nas ações judiciais e nas medidas tomadas no âmbito do Legislativo; o Laudo traz os seguintes questionamentos:

  • Participação CIR (Conselho Indígena de Roraima) e CIMI (Conselho Indigenista Missionário): a participação do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) foi decisiva na elaboração do Laudo. Restou provado que a análise da situação fundiária da Raposa Serra do Sol foi baseada em estudos realizados pelo próprio CIR, com a subscrição do advogado Felisberto Assunção Damaceno, membro do CIMI. Assevera-se que a elaboração do parecer jurídico e das peças centrais do Laudo pelo CIR e pelo CIMI comprometem a imparcialidade do Laudo.

  • Miscigenação: o laudo ignora a miscigenação do índio com o não-índio; não descreve com verdade a população assentada na área, que é, de fato, miscigenada. A região experimentou desde o Século XVII um processo histórico de interação cultural, e reforça a falha do Laudo em tentar comprovar o atendimento aos requisitos do art. 231 da Constituição.

  • Atividades Sócio-econômicas: o Laudo apresenta um item denominado "Atividades Sócio-econômicas", onde não referencia à delimitação das áreas utilizadas pelos índios para suas atividades. A região possui grande extensão territorial, com propriedades rurais estabelecidas há séculos, antes mesmo à existência do Território de Roraima; desconsidera, ademais, a existência de áreas urbanas e rurais destinadas a atividades agrícolas e pastoris 15.

  • Proposta de Demarcação de Área Indígena: não existe nenhum documento fundamentado, apenas 3 páginas que contém uma reprodução cronológica do processo de reconhecimento, sem maiores definições.

  • Parecer Jurídico: o parecer jurídico apenas contemplou a legislação indígena, deixando de lado a questão da Reserva legal e deixando de enfrentar alegada inconstitucionalidade formal e material da regulamentação através de uma Portaria. A premissa adotada no parecer jurídico foi aquela em que: "as posses primárias são as indígenas, e os índios os primeiros ocupantes"; esta premissa leva à conclusão de que todas as terras brasileiras seriam, por direito, indígenas. Segundo Konrad Hesse: "a constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se levar em conta essa realidade". Como ensinado por Canotilho, as normas constitucionais são harmônicas entre si, de tal forma que uma norma não se sobrepõe à outra, todavia, tem a sua vigência e aplicação delimitadas pelas demais. Com efeito, a tutela constitucional positivada no art. 231 da CRFB não exclui outros direitos garantidos pela Constituição.

Em suma, o Laudo Antropológico corrobora com a demarcação de 1.678.800 milhões de hectares, sem se respaldar em fatos que lhe possam dar credibilidade. A opinião pública, o Legislativo, através de projetos de decretos-legislativos, e o Judiciário, através das ações ajuizadas, vêm questionando se o processo administrativo foi instruído com informações confiáveis, que tenham suporte na realidade social e econômica da área demarcada.

Após se analisar o conteúdo do Laudo, não é necessário ser um perito para observar que o Laudo é uma fraude. Uma leitura nem tão atenta nos permite verificar que a presença da sociedade nacional, através dos não-índios, naquela região é inquestionável e que o processo histórico da interação entre etnias, raças e culturas é uma realidade irrefutável. Foram desconsiderados os aglomerados urbanos, cidades, vilas, posses e fazendas centenárias lá existentes; ademais, a presença das atividades agropastoris comprova a presença do não-índio. É visível na região demarcada uma intensa miscigenação, através da qual se torna difícil identificar os índios dos não-índios.

Dessa forma, a demarcação da área de acordo com as orientações da Funai não tem apoio na realidade social da região, fazendo-se necessária uma revisão da área demarcada.

3.1 Divulgação do Laudo fraudulento

A mídia escrita e televisiva denunciou as fraudes contidas no Laudo Antropológico. Em matéria especial sobre a Reserva Raposa Serra do Sol, exibida no Jornal da Globo, as nulidades e fraudes do laudo antropológico que serviu de base para a demarcação de terras em Roraima foram revelados. Segundo a matéria noticiada, restou provado que o nome de Maíldes Fabrício Lemos, que aparece na equipe da Funai como técnico agrícola, na verdade era apenas um motorista da equipe. Outra falha mostrada foi que o economista responsável pelo levantamento era o professor da USP, José Juliano Carvalho, que em carta ao Jornal da Globo, declarou que não participou do grupo de trabalho e que nunca sequer foi a Roraima 16.

3.2 Comprovação Judicial da fraude no Laudo Antropológico

Em 2004, o Juiz Federal Helder Girão determinou uma perícia no Laudo Antropológico da Funai que segundo o juiz:

O grupo de peritos concluiu que esse laudo antropológico não tinha sido realizado e que na realidade ele não passa de uma montagem de várias peças antropológicas e jurídicas feitas através do recurso do recortar e colar. A justiça federal em Roraima considerou, levou a sério esse laudo da perícia que aponta a nulidade, uma falsidade do laudo antropológico da Funai. E eu espero, eu tenho quase absoluta certeza que o Supremo Tribunal Federal vai prestar atenção nessa afirmação e vai dar a esse laudo da Funai o devido lugar 17

Apesar de a perícia realizada em Juízo ter chegado à conclusão pela fraude do Laudo, o então Procurador Geral da República fez um parecer no qual ele afirma que o processo de demarcação foi "fundado em consistente laudo antropológico" 18. Cumpre deixar assentado que o entendimento do PGR é contrário à perícia judicial e não se fundamenta sobre nenhuma base pericial; trata-se apenas de opinião do PGR. Ele criticou a qualidade da perícia feita no laudo por ordem do Juiz Federal dr. Helder Girão e disse que todos os questionamentos feitos contra a demarcação "são genéricos". Disse o PGR que: "Uma perícia tão pobre em termos de conteúdo técnico não pode ser brandida nesta Corte para desfazer a conclusão fruto de um processo de constatação de uma realidade fática que a Constituição Federal quer pReservar" 19.


4. Decisão do STF pela legalidade da Portaria 534

Enfim, em dezembro de 2008, o STF define o caso decidindo pela legalidade da Portaria 534, portanto, pela manutenção da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol. O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ação popular nº 3388, na qual se contestava a demarcação em forma contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, já tem uma decisão: a favor da demarcação.

Os ministros acataram o parecer do Ministério Público Federal e decidiram que o procedimento administrativo (Laudo Antropológico) que precedeu a demarcação respeitou as exigências legais e não há razão para se anular a Portaria 534/2005, do Ministério da Justiça, que instituiu a Reserva.

Podem-se resumir os fundamentos dos votos dos oito ministros que definiram o caso da seguinte forma. Em princípio, todos os ministros afirmaram que a Constituição estabelece que é direito originário dos índios a posse das terras que ocupam, independente da demarcação, que é apenas o ato declaratório; reconheceram que o laudo antropológico elaborado pela Funai demonstrou a ocupação permanente da área pelas cinco etnias que ali vivem. Por isso consideraram nulos todos os títulos de propriedade dos não-índios que ocupam a Reserva, conforme prevê o art. 231, § 6º, da Constituição. A população não-indígena será removida da área assim que o julgamento for formalmente concluído 20.

Desta forma, o STF, enfim, decide pela demarcação de forma contínua, mas impõe algumas restrições, colocadas pelo ministro Menezes Direito em seu voto-vista 21. O ministro Menezes Direito estabeleceu 18 itens a serem observados não apenas na demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, mas também em futuras demarcações. Dentre estes 18 itens, destacam-se o reconhecimento do usufruto dos índios condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional, devendo-se permitir a instalação de bases militares na Reserva e a intervenções das Forças Armadas e da Polícia Federal quando necessário, podendo haver também a instalação pela União de equipamentos públicos, redes de comunicação, construção de estradas, vias de transporte e construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e de educação.

O usufruto dos índios do Parque Roraima fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência para caça, pesca e extrativismo vegetal nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade 22. O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios à unidade de conservação deve ser admitido nos horários e condições estipulados pela administração do parque. O ingresso, trânsito e permanência de não-índios no restante da área da terra indígena será permitido, observando-se as condições estabelecidas pela Funai, e sem a cobrança de tarifas por parte das comunidades indígenas. Também não poderá ser cobrada tarifa pela utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público 23.

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Ainda há mais uma restrição: as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento e fica proibida a caça, pesca, coleta de frutas, atividade agropecuária e extrativa por não-índios. Também não poderá ser cobrado imposto sobre as terras e renda indígena. Por fim, estipulou-se que não poderá haver ampliação da terra indígena já demarcada e que os direitos dos índios sobre as terras são imprescritíveis sendo estas inalienáveis e indisponíveis.


5. A demarcação do ponto de vista da geopolítica

Com a decisão de mérito do STF, a demarcação da Reserva é uma realidade intransponível. Discute-se, a partir daí, as repercussões para a segurança nacional.

Como já foi mencionado no início deste trabalho, a demarcação além de contínua e demasiadamente extensa também se localiza na extremidade do Estado de Roraima, fazendo fronteira com a Venezuela e a Guiana. Independentemente da continuidade, sua localização, por si só, seria empecilho para a demarcação. Com relação à preocupação com a fragilidade geopolítica da Reserva, o Procurador Geral da República Antonio Fernando se manifestou dizendo que "as preocupações com a segurança nacional, amplamente propaladas por quem é contra a demarcação da Reserva em área contínua, não têm nenhuma consistência" 24. O PGR, Antonio Fernando, afirmou ainda que essa visão está: "em descompasso com a história da definição dos limites territoriais no Brasil, que contou sempre com a contribuição dos indígenas." 25.

No julgamento, os ministros descartaram a tese de violação ao pacto federativo pela extensão da Reserva, que ocupa cerca de 7% da área do Estado de Roraima, sob a alegação de que a área já pertencia à União antes mesmo da transformação do Território de Roraima em Estado-membro.

Em suma, o STF não vê problemas na localização da Reserva; todavia, a opinião do STF não encontra amparo nas teorias geopolíticas, estas, sim, advertindo sobre os problemas que o Brasil pode ter exclusivamente em razão da localização da Reserva.

Existe hoje no mundo uma onda de movimentos separacionistas e em todos eles a geopolítica é determinante para seu sucesso. A demarcação da Reserva não está alocada em um tipo de ilha dentro do Estado de Roraima; ao contrário está localizada na extremidade do Estado de Roraima, fato que é considerado um perigo para a integridade do território brasileiro.

No caso da Reserva Raposa Serra do Sol não se deu relevância às considerações geopolíticas. Vale lembrar que quando a hidroelétrica Itaipu foi criada, muito se discutiu sobre os impactos econômicos, ambientais, sociais etc. da construção, mas, sobretudo se estudou os impactos geopolíticos. As contribuições da construção de Itaipu foram analisadas também do ponto de vista da geopolítica, mormente no âmbito acadêmico da Escola Superior de Guerra.

Vale mencionar um trabalho publicado na Revista de Assuntos Militares de Problemas Brasileiros , cujo título é "As implicações geopolíticas de Itaipu", onde o autor diz sobre Itaipu que: "Contribuirá, portanto, decisivamente, para a concretização do que o General Golberi do Couto e Silva, em seu livro "Geopolítica do Brasil", esboçou como uma das características dominantes de uma geopolítica de cooperação continental." 26.

A geopolítica, esquecida pelos ministros do STF, como expressão, foi empregada pela primeira vez em uma conferência universitária realizada em 1899 por Rudolph Kjellen. Em seu livro, O Estado como forma de vida , publicado em 1916, Kjellen define geopolítica como: "ciência que estuda o Estado como organismo geográfico, isto é, como fenômeno localizado em certo espaço da Terra." 27. De acordo com a doutrina alemã, a geopolítica é:

(...) ciência que trata da dependência dos acontecimentos políticos em relação ao solo. Baseia-se nos amplos fundamentos da Geografia, em particular da geografia política a qual é doutrina dos organismos políticos espaciais e de sua estrutura (...) A geopolítica visa a fornecer os instrumentos para ação política e ser um guia da ação política (...) A Geopolítica pretende e deve tornar-se a consciência geográfica do Estado. 28.

Uma análise do ponto de vista da geopolítica não pode ser esquecida em uma estratégia de definição territorial, como ocorreu com a demarcação da Reserva. A propósito, o General Meira Mattos em seu livro, A Geopolítica e as Projeções do Poder , que como o próprio nome sugere, desenvolveu um estudo sobre a correlação entre a localização territorial e os fluxos de poder internacional. A definição de geopolítica trazida pelo autor é simples e objetiva: "Os conceitos geopolíticos e o poder têm sido inseparáveis através da história. A geopolítica é a aplicação da política aos espaços geográficos." 29. De acordo com estas concepções, a demarcação de uma Reserva na localização de fronteira é um atentado à integridade física do território brasileiro 30.

Com uma visão pragmática das relações internacionais, Meira Mattos diz que "Política é realismo, já disseram Bismarck, De Gaulle e o Prof. Morgenthau, entre muitos outros." 31. A realpolitiker defendida por Meira Mattos foi esquecida pelo governo brasileiro no caso Raposa Serra do Sol. É ilustrativo trazer as explicações de Meira Mattos acerca da Realpolitiker ao estabelecer a diferença entre um estadista e um estadista político (ou simplesmente um político). Diz Meira Mattos que: "(...) o estadista pensa devotadamente nos interesses do povo e do país, enquanto o político pensa em interesses menores ou nos seus próprios." 32.

Cabe refletir se o Presidente da República agiu como político ou como estadista ao homologar a Portaria 534. O papel do STF talvez não seja o de inferir se a demarcação da Reserva coloca em perigo a soberania nacional; mas, simplesmente, de analisar os pressupostos de legalidade e constitucionalidade. Ainda assim, o STF passou por cima das flagrantes ilegalidades do Laudo, manifestando-se favorável à Portaria 534.

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Sobre a autora
Mariangela Ariosi

Sou tabeliã e registradora no interior do estado de São Paulo. Carioca, fiz meus estudos no RJ; mestrado em Direito na UERJ. Cursei o doutorado em Direito na USP, sem concluir a Tese, interrompido pois estava estudando para vários concursos, todos na área de cartório. Cursei algumas Pós na área cartorária e atualmente me preparo para retornar e concluir o doutorado. Também , fui professora de Direito durante quase 20 anos em algumas universidades do RJ como UCAM, São José, Castelo Branco e UNIRIO, dentre outras. Atualmente continuo estudando e escrevendo sobre temas afetos às atividades cartorárias. Estou a sua disposição para conversarmos sobre esses temas e trocar informações.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARIOSI, Mariangela. O caso Raposa/Serra do Sol no STF e suas repercussões para a soberania nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2008, 30 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12149. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Este artigo foi escrito a partir de palestra ministrada durante o VIII Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, ocorrido na Universidade da Força Aérea – UNIFA -, Base Aérea do Campo dos Afonsos – RJ, no dia 7 de novembro de 2008. Este Encontro contou com a participação dos alunos de direito da UCAM, campus Padre Miguel, Méier e Sulacap, bem como com a participação dos alunos da SUESC, universidades onde ministro a disciplina Direito Internacional Público e Privado.

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