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A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e suas inovações no âmbito do direito das mulheres vítimas de violência doméstica

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22/03/2009 às 00:00
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3 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DA LEI 11.340/06

A Constituição Federal de 1988 [19] instituiu como um dos princípios fundamentais do Estado a "dignidade da pessoa humana". A importância da dignidade da pessoa humana já emana da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, das Nações Unidas [20], pela qual: "Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo [...]", bem como da Convenção Americana dos Direitos Humanos Pacto de San José de Costa Rica. Trata-se a dignidade da pessoa humana de uma referência constitucional unificadora dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, isto é, daqueles direitos que servem de fundamento e fim da atividade pública. Destarte, pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana é o valor supremo da Constituição.

Importa ainda a este estudo o princípio da igualdade, no qual prescreve o caput do art. 5º da nossa Constituição Federal de 1988 [21]: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade, [...]". Dentro da garantia de que todos são iguais, sem distinção alguma, proibindo, inclusive, diferença salarial, diferença de critérios de admissão por motivo de sexo, dispositivos que deixam clara a posição de combate à discriminação.

Assim, na lição de Silva [22], a igualdade constitui o signo da democracia e é reforçada em outras normas, como no inciso I do art. 5º, que assegura a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações.

Tanto a Constituição Federal de 1988 como as outras Constituições tratam de forma expressa tão somente a igualdade perante a lei, no sentido de que as normas devem ser elaboradas e aplicadas indistintamente a todos os indivíduos. É a denominada isonomia formal. Entretanto, tal isonomia não leva em conta a existência de grupos ditos minoritários ou hipossuficientes, que necessitam de uma proteção especial para que alcancem a igualdade não apenas normativa, mas baseada em ideais de justiça (isonomia material).

Moraes [23] afirma que o que a lei veda, são as diferenciações arbitrárias e as discriminações absurdas. Tal elemento discriminador só será válido se estiver a serviço de alguma finalidade acolhida pelo Direito, como por exemplo, na busca da igualdade de condições sociais.

As ações afirmativas são medidas imprescindíveis no Estado Democrático de Direito para fazer mais curta à espera de milhões de pessoas que almejam sentir-se parte da sociedade, fruindo da igualdade de pontos de partida. Só uma ação positiva que seja suficientemente proporcional e que não produza dano desproporcional a terceiros será constitucional e poderá implantar-se com êxito na sociedade atual.

Nesse contexto, a Lei Maria da Penha é um exemplo de ação afirmativa. Em favor da mulher vítima de violência doméstica, a desafiar a igualdade formal de gênero, na busca de restabelecer entre eles a igualdade material. Implementada no Brasil para a tutela do gênero feminino, justificável pela situação de vulnerabilidade e hiposuficiência em que se encontram as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar.

Alguns operadores do direito têm questionado a sua constitucionalidade, tanto em seu conjunto, como em alguns de seus artigos, ao fundamento de que suas disposições violam a "isonomia" prevista no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988 que estabelece que: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...] [24]".

O Desembargador mineiro Fernando Starling, ao relatar conflito negativo de jurisdição a respeito desta lei, nos autos do Processo 1.0000.07.458339-4/000(1), manifestou-se especificamente sobre essa questão, com muita propriedade afastando a inconstitucionalidade da lei, com resguardo na mais moderna hermenêutica jurídica constitucional e nas apropriadas lições de Alexandre de Moraes [25]:

[...] Lado outro, constato que os dispositivos legais retromencionados não são inconstitucionais. O artigo 98, I, da Constituição Federal dispõe que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados especiais para julgar e executar as infrações penais de menor potencial ofensivo. Todavia, o artigo 22, I, do mesmo Codex estabelece que compete privativamente à União legislar sobre direito penal e processual penal. Desse modo, é possível que uma lei ordinária federal, in casu, a Lei nº 11.340/2006, determine a criação de juizados especializados para conhecer e julgar as causas decorrentes da violência doméstica e familiar, instituindo mecanismos para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.

Vale ressaltar, ainda, que a ‘Lei Maria da Penha’ se harmoniza com o princípio da igualdade, descrito no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, uma vez que trata desigualmente os desiguais. Não se pode olvidar a fragilidade da mulher perante o homem, no que toca a sua estrutura física, colocando-a em situação de desvantagem em casos de agressões. Portanto, a violência perpetrada contra a mulher merece ser abordada com mais rigor, principalmente porque representa um grave problema social, exigindo-se uma melhor proteção do Estado e maior reprovação da conduta do agressor no ambiente familiar e doméstico.

A respeito do tratamento isonômico entre homens e mulheres, regulamentado no artigo 5º, I, da Constituição Federal, a oportuna doutrina Moraes:

‘A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis. Conseqüentemente, além de tratamentos diferenciados entre homens e mulheres previstos pela própria Constituição (arts. 7º, XVIII e XIX; 40, § 1º; 143, §§ 1º e 2º; 201, § 7º), poderá a legislação infraconstitucional pretender atenuar os desníveis de tratamento em razão do sexo’ (Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 34).

É possível haver divergências sobre a constitucionalidade da lei se a mesma incidisse sobre qualquer caso de violência contra a mulher, e não apenas a doméstica. A Lei Maria da Penha visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em qualquer ação ou omissão baseada no gênero. Seria errôneo, por exemplo, aplicar a Lei Maria da Penha no caso de uma mulher que foi agredida na rua por um desconhecido (homem), uma vez que esta Lei deve ser aplicada dentro do vínculo familiar. Este caso, não se trata de infrações penais que se enquadrem no conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher. Trata-se de crime de menor potencial ofensivo, sob os auspícios do Juizado Especial Criminal (termo circunstanciado, transações civil e penal, representação, etc).

A Lei visa à proteção das mulheres em relação aos membros da sua comunidade familiar, formada por vínculos de parentesco natural (pai, mãe, filha etc), civil (marido, sogra, padrasto ou outros), por afinidade (primo ou tio do marido, por exemplo) ou afetividade (amigo que mora na mesma casa).

Isto é, assegura maior proteção frente àqueles indivíduos que deveriam proporcionar à vítima (mulher) um mínimo de amor, respeito e dignidade, valores que devem estar presentes em qualquer entidade familiar ou de proximidade.

Ademais, no âmbito doméstico e familiar, dentre os casos de violência doméstica, é quase absoluto se tratar de violência cometida contra mulheres e crianças. É raro alguém presenciar ou noticiar um caso de violência doméstica em que a vítima era o companheiro/marido e a mulher, a agressora.

Muito se tem discutido acerca de eventual inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, em razão de ter como foco apenas a mulher vítima de violência doméstica.

Os que sustentam a sua inconstitucionalidade alegam que a Lei criou a desigualdade na entidade familiar, atribuindo à mulher um tratamento diferenciado, promovendo a sua proteção de forma especial em detrimento do homem, também, vítima de violência doméstica. Sobre esse argumento, Maria Berenice Dias [26] aborda bem os argumentos utilizados pelos defensores de sua inconstitucionalidade:

A alegação é que, no mesmo contexto fático, a agressão levada a efeito contra uma pessoa de um sexo ou de outro pode gerar conseqüências diversas, a partir do exemplo: na mesma oportunidade, o genitor ocasiona, no âmbito doméstico, lesões leves em um filho e uma filha. Além de haver dois juízos competentes, as ações seguiriam procedimentos distintos. A agressão contra o menino, encontra-se sob a égide do Juizado especial, fazendo jus o agressor a todos os benefícios por o delito ser considerado de pequeno potencial ofensivo. Já a agressão contra a filha constituiria delito doméstico no âmbito da Lei Maria da Penha. Assim, parece que a agressão contra alguém do sexo masculino é menos grave do que a cometida contra uma pessoa do sexo feminino.

Damásio de Jesus [27] complementa:

Em se tratando de violência doméstica contra a mulher, portanto, não se aplicariam os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95. Daí a sugestão para que se troque a expressão "violência doméstica ou familiar contra a mulher" por "violência doméstica ou familiar contra a pessoa", respeitando assim o princípio da igualdade.

Um outro argumento sobre a inconstitucionalidade da lei é que se um pai, por exemplo, em uma mesma situação, agride a esposa e o filho, causando lesões corporais leves em ambos, o tratamento dado ao agressor seria mais severo em relação à esposa (amparada pela Lei Maria da Penha).

E em relação ao filho, a persecução penal seguiria o procedimento da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais). Porém, não é assim que acontece, estando uma das vítimas protegidas pela Lei 11.340/06, a competência é deslocada para o âmbito do Juizado de Violência Doméstica contra a Mulher [28].

Pelo exposto, a Lei Maria da Penha não é inconstitucional. Muito pelo contrário, ela necessita ser aplicada em todos os seus termos, pois só assim será dado um passo significativo na luta contra a violência doméstica no Brasil.

Deve-se ainda, cobrar dos Estados à criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar ou de Varas especializadas, a fim de oferecer atendimento humanizado às vítimas e tratamento aos agressores, rompendo, assim, com o nefasto ciclo da violência.

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O próximo capítulo irá tratar das principais inovações advindas com a promulgação da Lei 11.340/06, que trouxe instrumentos importantes perante o problema da violência doméstica contra a mulher.


4 AS PRINCIPAIS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI MARIA DA PENHA

Sobre os grandes avanços da nova lei, Maria Berenice Dias [29], ao dispor sobre o assunto, faz um apanhado das principais modificações no procedimento. Segundo a autora:

Os avanços da nova lei são muito significativos. Devolvida à autoridade policial a prerrogativa investigatória, cabe-lhe instalar o inquérito. A vítima estará sempre acompanhada de advogado (art. 27), tanto na fase policial como na judicial, sendo-lhe garantido o acesso aos serviços da Defensoria Pública e da assistência Judiciária Gratuita (art. 28). Não pode ser ela portadora da notificação ou da intimação do agressor (art. 21, § único). (Grifo nosso)

E continua, ao dissertar, especialmente, sobre as novas medidas de proteção contra as mulheres, antes inexistentes. Veja:

Também deve a vítima ser pessoalmente cientificada, quando o agressor for preso ou liberado da prisão, sem prejuízo da intimação de seu procurador constituído ou defensor (art. 21). Mas, deve o juiz adotar medidas que façam cessar a violência, por exemplo: determinar o afastamento do agressor do lar; impedi-lo que se aproxime da casa; vedar o seu contato com a família (art. 22). Também tem o dever de encaminhar a mulher e os filhos a abrigos seguros, garantindo-lhe a mantença do vínculo de emprego (art. 9º, II). Além disso, pode decretar a separação de corpos, fixar alimentos, bem como adotar medidas outras como suspender procuração outorgada ao agressor a anular a venda de bens comuns (art. 24). A Lei proíbe a aplicação de pena pecuniária, multa ou a entrega de cesta básica (art. 17) e permite a prisão preventiva do ofensor (art. 20). O último dispositivo da Lei é dos mais salutares, ao permitir que o juiz determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação (art. 45). (Grifos nossos)

Diante o exposto, reconhece-se que o esforço da lei é propiciar uma mudança de comportamento naquele que pratica o crime, fazendo-o entender o caráter criminoso do seu agir. A adoção destes mecanismos de proteção que colocam a mulher a salvo do seu agressor, é também um mecanismo de que dispôs a lei para dar uma maior efetividade à nova legislação de proteção da mulher, a então Lei Maria da Penha.

Merece ainda destaque o artigo 5º da lei 11.340/06, que apresenta, pela primeira vez no Brasil, uma conceituação jurídica para o problema da violência doméstica e familiar, ao considerar como tal, qualquer ação ou conduta que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico e dano moral ou patrimonial (inovações da lei) quando praticadas no âmbito das relações domésticas ou familiares. É que anteriormente à lei Maria da Penha, apenas a sociologia e a psicologia tinham conceitos sobre o que enfim poderia ser considerado violência contra a mulher; de forma, que hoje, pós lei Maria da Penha, essa nova conceituação ampliou as formas de violação dos direitos humanos das mulheres.

Sobre essa nova conceituação, pertinente o comentário de Stela Valéria Cavalcanti [30]:

Esta inclusão constitui um grande avanço para a proteção dos direitos das mulheres, em face da ampliação da definição de violência doméstica contra a mulher contida em seu texto, bem como pelo reconhecimento explícito da violência doméstica como violação dos direitos humanos. Anteriormente à edição da lei "Maria da Penha" só era considerada violência doméstica a lesão corporal que ocasionasse dano físico ou à saúde da mulher. Após a entrada em vigor desta nova lei qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher é considerada violência doméstica.

Não obstante o grande avanço, Marcelo Lessa alerta sobre o papel dos juízes e operadores do direito quando da interpretação de tais dispositivos legais, que não obstante inovadores, são vagos e abertos, podendo ocasionar uma banalização do instituto. Veja o que diz o autor [31]:

Caberá ao Juiz, diante do caso concreto, podar eventuais excessos interpretativos, de modo a não permitir, por exemplo, que se queira aplicar a Lei ao marido que simplesmente não cumpra regularmente com suas obrigações sexuais para com sua esposa, rejeitando, se for o caso, por atipicidade material, eventual queixa que, neste sentido, por absurdo, imagine tal comportamento como capaz de configurar crime de injúria. A definição conceitual do que seja violência doméstica e familiar contra a mulher e a prudência que se espera dos operadores do Direito, em especial Juízes e Promotores, no mister de restringir sua incidência diante de normas tão abertas, é vital em se levando em conta que qualquer crime previsto no Código Penal ou em Leis Especiais, que tutelem as integridades física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da mulher, podem, em tese, estar sujeitos às prescrições da Lei "Maria da Penha". Neste sentido, são alvos de preocupação específica os crimes que, pela pena, conformar-se-iam na definição de infração penal de menor potencial ofensivo, por conta, principalmente, no caso de atraírem a aplicação desta Lei, do afastamento da incidência dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, das limitações à aplicação de determinadas penas restritivas de direitos e da previsão excepcional de prisão preventiva. (Grifos nossos).

Outro aspecto a ser destacado acerca da nova Lei é a questão da "renúncia" à representação, de que trata o art. 16 [32], in verbis:

Art. 16: Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Em primeiro lugar, como alerta Marcelo Lessa [33], cumpre lembrar que o dispositivo em comento não está endereçado à lesão corporal fruto de violência doméstica e familiar contra a mulher porque, como já dito acima, neste caso, por força do art. 41 da Lei "Maria da Penha", que afastou a incidência da Lei nº 9.099/95 em casos tais, a ação penal voltou a ser pública incondicionada. Resta, portanto, cogitar do dispositivo para outros crimes, como a ameaça, estupro e atentado violento ao pudor com vítima pobre, etc, se praticados no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Portanto, não é possível ao juiz ou ao promotor de justiça recusar a renúncia da vítima. Na falta de autorização dela, não pode o promotor denunciar e nem o juiz aceitar o início do processo criminal, por ausência de condição de procedibilidade para o exercício da ação penal (art. 43, III, CPP).

De fato, no sistema processual criminal brasileiro, a representação é faculdade exclusiva da vítima, somente ela pode autorizar o Estado a agir. Sem seu consentimento, não haverá processo, uma vez que o Estado não pode agir por ela. Se assim fosse, qual o sentido de exigir autorização das vítimas para o processamento de algumas infrações penais?

A discriminação legal das ações penais é coerente com esse sistema, uma vez que a regra é a atuação obrigatória do Ministério Público, independentemente de autorização de eventuais vítimas. Num Estado Democrático de Direito, a garantia dos direitos humanos e a repressão à criminalidade é encargo estatal, quando presente o interesse público em ver devidamente apurada uma infração penal, que certamente não afeta somente a pessoa vitimada, mas toda a comunidade, interessada em que não se deixe impune o autor.

A exigência da representação é reservada a excepcionalíssimas infrações - geralmente de pouca gravidade ou em que o dano ao bem jurídico depende de constatação subjetiva, cuja repercussão processual (e pública) deva atender à conveniência exclusiva da vítima. É o caso dos crimes cometidos com a palavra, como os de ameaça ou aqueles contra a honra, em que algumas vítimas podem sentir-se ameaçadas ou humilhadas.

Em segundo lugar, cumpre destacar a completa ausência de técnica legislativa, como revela a leitura do art. 16 da Lei que utilizou de forma errônea o termo "renúncia", quando o correto seria o instituto da "retratação", uma vez que, tecnicamente, se dando a renúncia antes do exercício do direito de representação, não se poderia renunciar a ela antes do recebimento da denúncia se esta pressupõe que a representação tivesse sido oferecida para deflagrar a ação penal.

Do contrário, a se considerar como sendo mesmo renúncia o instituto versado no art. 16, estar-se-ia a criar uma espécie de "representação compulsória", como bem definiu Marcelo Lessa, na obra supramencionada, uma vez que, ocorrido o crime, se a vítima não manifestasse o desejo de exercer o direito de representação, o Delegado seria obrigado a endereçar o expediente ao Juiz, para que fosse designada audiência especial com a finalidade de colher sua renúncia expressa, o que iria contrariar, com obviedade, o espírito da ação penal de iniciativa pública condicionada, que é deixar a vítima livre para decidir se quer ou não representar.

Enfim, o que a Lei quis dizer é que a representação é retratável somente em juízo e até o recebimento da denúncia, com o intuito de evitar que a vítima fosse de algum modo pressionada, na Delegacia de Polícia ou em outras instâncias (serviços sociais, família, trabalho), a retirar a "queixa" contra o agressor, como ocorria, constantemente, antes da vigência desta lei.

Diante o exposto, pode-se afirmar que as inovações trazidas pela Lei 11.340 foram:

No processo judicial: o juiz poderá conceder, no prazo de 48h medidas protetivas de urgência (suspensão do porte de armas do agressor, afastamento do agressor do lar, distanciamento da vítima dentre outras), dependendo da situação; o juiz do juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher terá competência para apreciar o crime e os casos que envolverem questões de família (pensão, separação, guarda de filhos, etc.); o Ministério Público apresentará denúncia ao juiz e poderá propor penas de 3 meses a 3 anos de detenção, cabendo ao juiz a decisão e a sentença final.

Na questão da autoridade policial: possui um capítulo específico para o atendimento pela autoridade policial para os casos de violência doméstica contra a mulher; permite à autoridade policial prender o agressor em flagrante sempre que houver qualquer das formas de violência doméstica contra a mulher; registra o boletim de ocorrência e instaura o inquérito policial (composto pelos depoimentos da vítima, do agressor, das testemunhas e de provas documentais e periciais); remete o inquérito policial ao Ministério Público; pode requerer ao juiz, em 48h, que sejam concedidas diversas medidas protetivas de urgência para a mulher em situação de violência; solicita ao juiz a decretação da prisão preventiva com base na nova lei que altera o Código de Processo Penal.

A Lei, antes e agora: não existia lei específica sobre a violência doméstica contra a mulher; hoje, tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher; não tratava das relações de pessoas do mesmo sexo; agora, determina que a violência doméstica contra a mulher independe de orientação sexual; aplicava-se a lei dos juizados especiais criminais (lei 9.099/95) para os casos de violência doméstica, estes juizados julgam os crimes com pena de até dois anos (menor potencial ofensivo); após a lei, retirou dos juizados especiais criminais (Lei nº 9.099/95) a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher; permitia a aplicação de penas pecuniárias como as de cestas básicas e multa. Agora, proíbe a aplicação destas penas; a mulher podia desistir da denúncia na delegacia. Agora, a mulher somente poderá renunciar perante o juiz; a lei não utilizava a prisão em flagrante do agressor. Após o advento da lei, possibilita a prisão em flagrante; não previa a prisão preventiva para crimes de violência doméstica, com a nova lei que alterou o código de processo penal, passou a possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher; a mulher vítima de violência doméstica, em geral, ia desacompanhada de advogado ou defensor público nas audiências, após a nova lei, a mulher deverá estar acompanhada de advogado ou defensor em todos os atos processuais; a pena para crime de violência doméstica era de 6 meses a 1 ano, após a promulgação da lei, a pena do crime de violência doméstica passou a ser de 3 meses a 3 anos; a violência doméstica contra mulher portadora de deficiência não aumentava a pena, agora, se a violência doméstica for cometida contra mulher portadora de deficiência, a pena será aumentada em 1/3.

Diante, pois, dessas inovações e da análise minuciosa dos artigos da lei, percebe-se que a Lei Maria da Penha é uma lei que possui não só o cunho repressivo como também educativo, pois traz em seu texto várias medidas de proteção, assistência às vítimas, diretrizes de atuação dos órgãos da polícia judiciária, do próprio judiciário e propostas de implementação de políticas públicas, cuja finalidade maior é promover ampla proteção e salvaguardar os direitos humanos das vítimas, por meio de uma maior atenção do Estado.

A Lei apresenta uma estrutura adequada e específica para atender a complexidade do fenômeno da violência doméstica, representando um marco indelével na história de proteção legal conferida às mulheres.

Antes do advento da Lei Maria da Penha, somente a lesão corporal recebia uma pena mais severa quando praticada em decorrência de relações domésticas (CP, art. 129, § 9º). As demais formas de violência perpetradas em decorrência das relações familiares geravam no máximo um agravamento de pena (CP, art. 61, II, letra "f").

A partir da vigência da nova lei, a violência doméstica não guarda correspondência com qualquer tipo penal. Primeiro é identificado o agir que configura violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica (art. 5º, incisos I, II e III): no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas em lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.

Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações que descreve (art. 7º) quando levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas (art. 5º). Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso configuram crimes que desencadeiam uma ação penal.

De qualquer modo, mesmo não havendo crime, mas tomando conhecimento a autoridade policial da prática de violência doméstica, deverá tomar as providências determinadas na lei (art. 11): garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deverá a polícia proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e remeter a juízo expediente quando a vítima solicitar alguma medida protetiva (art. 12).

Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da delegacia de tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.

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Sobre a autora
Christiane Silva Guerra

Bacharelanda em Direito na Faculdade Novafapi, em Teresina (PI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Christiane Silva. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e suas inovações no âmbito do direito das mulheres vítimas de violência doméstica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2090, 22 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12451. Acesso em: 8 nov. 2024.

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