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Lei Maria da Penha: mais uma marca do neoconstitucionalismo

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09/04/2009 às 00:00
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5. UMA REFLEXÃO SISTEMÁTICA

A CRFB/1988 e alguns tratados internacionais vigentes, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica –, sob a regência do neoconstitucionalismo, têm sido influência direta e cada vez mais eficaz para as garantias dos direitos fundamentais, inclusive na influência de elaboração de novas leis.

Tais repercussões não poderiam deixar de alcançar a família – estrutura basilar de toda sociedade –, mormente no que tange à mulher, parte essencial para o seu equilíbrio e saudável manutenção.

Nas palavras do professor José Afonso da Silva:

A família é afirmada como a base da sociedade e tem especial proteção do Estado, mediante assistência na pessoa de cada um dos que a integram e criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. [16]

A lei Maria da Penha (L. 11.340/2006) foi gerada em momento histórico de consolidada presença e forte influência do neoconstitucionalismo. Tendo como bojo axiológico a concretização dos direitos e garantias fundamentais – exercida pela efetiva limitação do poder estatal, pela força normativa da constituição (e de seus princípios), e pela expansão da jurisdição constitucional –, esse movimento político-jurídico evidencia a dignidade da pessoa humana como interesse primário e imediato da sociedade.

O resguardo desses princípios revela-se de essencial existência, precipuamente, no seio familiar, base de toda sociedade. Nesse sentido, a Ministra Jane Silva, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em seu voto de relatora no HC 96.992-DF, no que tange à Lei Maria da Penha, comenta:

[…] A intensão do legislador ao criar a nova figura típica, na realidade uma nova modalidade de lesão corporal leve qualificada, tendo em vista o novo montante de pena estabelecido, foi atingir os variados e, infelizmente, numerosos casos de lesões corporais praticados no recanto do lar, local em que deveria imperar a paz e convivência harmoniosa entre seus membros e, jamais, a agressão desenfreada que muitas vezes se apresenta, pondo em risco a estrutura familiar, base da sociedade. [...] [17]

A Lei Maria da Penha nasce com as características da "mãe" que a gerou, qual seja, a ordem jurídica posta, marcada pela neoconstitucionalização do direito. Como já explicitado, a ação penal correspondente ao crime de lesão corporal leve e culposa, com o advento da Lei 9.099/95, passou a ser condicionada à representação da vítima. Ou seja, prevalecia o interesse individual. Mesmo que a sociedade considerasse repugnante esse crime, praticado contra a mulher em âmbito doméstico, nada o Estado podia fazer sem o consentimento (representação) da ofendida, visto que não tinha legitimidade para iniciar tal procedimento (condição de procedibilidade).

Então, a necessidade de representação da vítima, à luz do neoconstitucionalismo, configurou-se como uma barreira procedimental para a concretização de um direito fundamental, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Destaca-se que a guarda desse princípio é de interesse de todos, pois sua garantia, seja em âmbito individual ou coletivo, visa a assegurar um convívio hígido e harmônico na sociedade. Impedir o Estado de agir, condicionando-o através da "representação", enseja impunidade e insegurança jurídica, visto que as mulheres vítimas de agressões no âmbito doméstico têm medo de denunciar. E, com isso, a sociedade não presencia o jus puniendi como forma de coibir a proliferação desse crime.

Há, portanto, uma mudança na ordem de interesses. O que era de interesse essencialmente particular e individual, passa a ser geral e coletivo, principalmente para fazer valer os princípios constitucionais, que deixaram de ser apenas diretrizes, adquirindo, dessarte, força normativa.

Corroborando com esse entendimento, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo Gallotti, em seu voto no HC 96.992-DF, discorre:

[...]E sob um enfoque sociológico, é inegável reconhecer que grande parte das mulheres vítimas de violência doméstica, especialmente aquelas de classes econômicas menos favorecidas, quando levam seus casos ao conhecimento das chamadas "autoridades", acabam por ser coagidas a se retratar, sofrendo intimidação de todos os tipos por parte dos infratores, inclusive físicas, morais, psicológicas, financeiras etc. Casos há, por certo, em que as mulheres retratam-se por livre e espontânea vontade, dada a reconciliação da família. Mas no confronto entre os dois cenários, deve prevalecer o que melhor atenda ao interesse social, isto é, que efetivamente contribua para a preservação da integridade física da mulher, historicamente vítima de violência doméstica e tida como elo mais fraco na relação conjugal e familiar. Esse, aliás, o motivo que levou à criação da legislação de proteção, considerada uma importante conquista dos direitos humanos das mulheres, amparada no art. 226, § 8, da Constituição Federal, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e em outros tratados internacionais.

O princípio da intervenção mínima deve ser observado em situações de normalidade. Situações extremas exigem medidas rigorosas e maior intervenção estatal. Se o quadro fático é de alto índice de violência contra a mulher no âmbito familiar, sem que ela, sozinha, consiga enfrentá-la, cabe ao Estado desenvolver políticas que visem a garantir os seus direitos, o que certamente se teve em vista com a edição do diploma em exame. O argumento de que não se deve retirar da mulher o poder de decisão sobre a situação de violência em sua família, com todo o respeito aos que pensam de modo diverso, termina por não solucionar o grave problema, mantendo a possibilidade de serem vítimas de inaceitável coação na busca de impunidade, circunstância que acaba por estimular a reiteração criminosa. Se for possível restabelecer a paz no âmbito familiar, melhor, e que isso realmente se concretize. Mas o agressor deve estar consciente de que responderá a um processo criminal e será punido se reconhecida sua culpabilidade. [18]

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A segurança jurídica é fundamental para manter a higidez do Estado Democrático de Direito. Ela se caracteriza pela celeridade e previsibilidade, ou seja, os indivíduos que fazem parte da sociedade precisam de uma pronta reação estatal como forma de coibir a criminalidade, e, uma previsível punição, para que todos saibam as conseqüências dos erros por si praticados. Aquele que pratica violência contra a mulher em âmbito doméstico e fica impune sente-se na liberdade de manter suas práticas repugnantes de agressões. E aqueles que são potenciais agressores, não veem diante de si barreira punitiva que os impeçam de dar vazão a essas atrocidades.


6. CONCLUSÃO

Não resta dúvida que a Lei Maria da Penha é mais uma marca do neoconstitucionalismo. Nesse sentido, não só algumas manifestações do legislativo, mas também decisões reiteradas do Poder Judiciário, principalmente do Superior Tribunal de Justiça, vêm revelando a consolidação desse movimento no Brasil.

O direito precisa continuar evoluindo nessa senda, qual seja, atender as necessidades da sociedade contemporânea. Todos os poderes, juntamente com o povo, têm responsabilidade e participação nesse processo. Não há mais falar somente em teorias e dispositivos meramente formais. O direito precisa alcançar a população no seu cotidiano, independentemente de classe social, promovendo harmonia entre seus indivíduos e protegendo os que realmente carecem de tutela.

O princípio da dignidade da pessoa humana e os demais direitos fundamentais, inerentes a todos os seres humanos, precisam sair, cada vez mais, dos textos legais e, como normas eficazes, alcançar toda a sociedade. A situação ainda não é plenamente satisfatória, mas grandes avanços já são perceptíveis.

Nesse contexto, o neoconstitucionalismo revela-se como agente de transformação de interesses. Ou seja, o que era considerado de interesse preponderantemente particular, passa a ser observado como interesse geral, posto que a guarda dos princípios constitucionais, inclusive nos casos individuais e concretos, é de interesse de todos. Quem protege ou se interessa pela proteção do direito do próximo, em última análise, protege a si mesmo. Não há mais que se admitir afronta ao Estado Democrático de Direito.

Corretamente agiu o legislador ao adentrar no âmbito das relações familiares no que tange à violência doméstica contra a mulher. Acertou, também, o Judiciário, ao interpretar a norma priorizando a dignidade da vítima. A humanidade consolidou-se através da família. É nela que se deve buscar a solução para curar a sociedade. Restruturando-se a base, tudo mais poderá ser restaurado.


7. REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em: 28 fev. 2009.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1970.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6.ed..São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 7. ed.. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001.

? Sites Internet

http://en.wikipedia.org/wiki/Konrad_Hesse

http://jus.com.br

http://jus.com.br/artigos/2449

http://pt.wikipedia.org/wiki/Rudolf_von_Ihering

http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u321373.shtml

http://www.lfg.com.br

http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_139/r139-05.pdf

http://www.stf.jus.br

http://www.stj.jus.br


Notas

  1. HC 106.805-MS, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 3/2/2009. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ - n. 0382, período de 2 a 6 de fevereiro de 2009.
  2. Karl Loewenstein, Teoría de la constitución, p. 155.
  3. Rudolf von Ihering (Aurich, Frísia, 22 de agosto de 1818 – Gotinga, 17 de setembro de 1892) foi um jurista alemão. Ocupa ao lado de Friedrich Karl von Savigny lugar ímpar na história do direito alemão, e cuja obra influenciou diversas outras em todo o mundo ocidental. Redigiu o livro "O Espírito do Direito Romano nas Diversas Fases de sua Evolução" (1852/1865), revelando o direito no costume, que, posteriormente, se consagra na lei escrita. Obra cuja maior parte fora escrita em Giessen (1852) e que, quando concluída, teve decisiva influência no Direito Privado de todos os países da Europa. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rudolf_von_Ihering, acessado em 8 de março de 2009.
  4. Pedro Lenza, Direito Constitucional Esquematizado, p. 6.
  5. Konrad Hesse (29 de janeiro de 1919 – 15 de março de 2005) foi um jurista alemão e, de 1975 a 1987, juiz da Corte Constitucional Federal da Alemanha. A sua obra (1949) foi o marco para o reconhecimento da força normativa da constituição, que antes era vista apenas como um documento essencialmente político. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Konrad_Hesse, acessado em 8 de março de 2009.
  6. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, p.2. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em: 28 fev. 2009.
  7. RHC 19.406-MG, Rel. originário Min. José Delgado, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux (RISTJ, art. 52, IV, b), julgado em 5/2/2009. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ - n. 0382, período de 2 a 6 de fevereiro de 2009.
  8. Fernando da Costa Tourinho Filho, Manual de Processo Penal, p. 80.
  9. Guilherme de Souza Nucci, Código de Processo Penal Comentado, p. 114.
  10. Fernando da Costa Tourinho Filho, Manual..., cit., p. 85.
  11. Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, p. 111.
  12. Condição imposta pela lei para que o processo tenha início.
  13. Art. 129, §§ 9o e 10º, do Código Penal Brasileiro.
  14. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ - n. 0382, período de 2 a 6 de fevereiro de 2009.
  15. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ n. 0363, de 11 a 15 de agosto de 2008.
  16. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 819.
  17. HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 12/8/2008.
  18. HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 12/8/2008.
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Sobre o autor
Gabriel de Oliveira Gibara

Advogado. Articulista. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador – UCSal. Ex-estagiário concursado do Ministério Público Federal na Bahia. Ex-estagiário da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia. Ex-diretor da O.N.G. Casa da criança, em Simões Filho – Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIBARA, Gabriel Oliveira. Lei Maria da Penha: mais uma marca do neoconstitucionalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2108, 9 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12611. Acesso em: 2 mai. 2024.

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