4 PROBLEMÁTICA ATUAL DOS DIREITOS TERRITORIAIS DOS ÍNDIOS
Para os índios, a questão da terra é um ponto central dos seus direitos, uma vez que sua sobrevivência física e cultural depende, precipuamente, da garantia e manutenção de seus territórios. Logo, não há como se conferir direitos aos índios, se não lhes forem asseguradas a posse permanente e a riqueza das terras por eles ocupadas, pois a disputa dessas terras e de sua riqueza constitui o cerne da questão indígena no Brasil hoje.
A importância galgada pelo tema no ordenamento jurídico é de tal vulto, que disposições acerca das terras indígenas estão presentes, inclusive, no título da Constituição Federal de 1988, que trata da ordem econômica e financeira, quando, no artigo 176, § 1°, o constituinte dispôs que a pesquisa e a lavra de recursos minerais, quando realizada em território indígena, dependerão de condições específicas estabelecidas pela União.
Atualmente, as terras dos índios são áreas federais de domínio exclusivo da União. Por força de disposição constitucional, os direitos das populações indígenas sobre elas são imprescritíveis. As referidas terras são também inalienáveis, pois não podem ser alienadas a qualquer título, e indisponíveis, porque não podem ser destinadas a finalidades alheias à cultura indígena. [07]
Observe-se que a inalienabilidade e a imprescritibilidade referentes aos territórios dos índios, vinculam tanto a União quanto as próprias comunidades indígenas. Visando pôr fim à especulação de grandes grupos econômicos sobre as terras dos silvícolas, foi estabelecido que nem mesmo os próprios índios podem celebrar qualquer espécie de negócio jurídico que tenha por objeto disposição ou alienação dos direitos sobre as suas terras (CF/88 art. 231, § 6°).
Outra característica bastante peculiar das terras indígenas é que, sobre elas, inexiste direito de retenção por particulares. O STF já pacificou a matéria, determinando que o instituto oriundo do direito civil, não se aplica às contendas entre particulares e indígenas, acerca das terras destes últimos. Nem mesmo a caracterização da boa-fé, quando da realização de benfeitorias, constitui argumento válido quando julgadas lides que versem sobre tais direitos. [08]
A vinculação do índio ao seu território também estreitou sobremaneira as hipóteses de remoção temporária (obviamente, não há possibilidade de remoção definitiva) de indígenas, sendo possível somente em casos de epidemia ou catástrofe que provoque ameaça à sobrevivência da população em comento, em função do princípio constitucional da irremovibilidade dos índios de suas terras (CF/88, art. 231, § 5°). Ainda, em tal caso, essencial faz-se a aprovação do Congresso Nacional. Também mediante deliberação do Congresso Nacional, e em casos de risco à soberania nacional, os índios podem ser movidos de suas terras, devendo ser imediatamente realocados em seus territórios, tão logo cessem os riscos.
4.2 Exploração das riquezas naturais das terras indígenas
No que tange à exploração das terras indígenas e das riquezas nelas existentes, duas são as nuances atualmente vivenciadas: a existência da exploração clandestina e a exploração efetuada pelos próprios índios, ou mediante autorização destes. Sobre a primeira situação, existem alegações de que a não-destinação de recursos pelo governo aos índios constitui o cerne da exploração clandestina. Argumenta-se que, uma vez sem recursos para custear suas necessidades mais prementes, os indígenas acabariam coagidos a admitir a exploração vegetal e mineral em suas terras, em troca de recursos para solucionar seus problemas básicos de saúde, sanitários, etc.
Em relação à segunda situação, verifica-se uma problemática lastreada na questão da inalienabilidade e indisponibilidade das referidas terras. O conceito de terras indígenas englobou também toda a sorte de riquezas naturais presentes nos referidos territórios. Logo, conclui-se que, uma vez inalienáveis e indisponíveis as terras dos índios, também o são as riquezas minerais e todo o patrimônio ecológico vinculado a elas.
Se a terra é, em termos práticos, a própria razão de ser dos silvícolas, a proteção ao patrimônio territorial deles, incluindo suas riquezas ecológicas, deve ser a mais ampla possível. Todavia, são cada vez mais comuns os casos em que os índios exploram por si mesmos as riquezas de suas terras e as vendem, ou realizam contratos para que terceiros explorem essas riquezas, contratos estes nulos, em função do § 6°, do artigo 231 da nossa Carta Constitucional. Urge, daí, a necessidade de uma política governamental eficiente contra tal cenário, uma política que atue tanto no plano repressivo a esse comércio ilegal, quanto no assistencial, provendo os povos pré-colombianos de recursos suficientes para suprir as suas necessidades básicas enquanto população.
Outro fator que não pode ser desconsiderado em tal discussão é o disposto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que imputa a todos os nacionais o dever de preservar o meio ambiente, independentemente de questões raciais ou étnicas.
5 O INDIGENATO
Embora o indigenato tenha sido previsto já nas leis portuguesas elaboradas para disciplinar questões concernentes ao Brasil Colônia, durante grande parte do império e do período correspondente à república anterior a 1988, não havia, na legislação, referência a tal instituto, ou seja, ao direito originário indígena sobre os territórios tradicionalmente ocupados por eles. [09]
Não é necessário maiores aprofundamentos historiográficos para concluir-se que a relação do índio com a terra é de "domínio imediato", "congênito", logo, originário. Partindo-se dessa ótica, pode-se afirmar que o indigenato não é um fenômeno passível de qualquer legitimação, ao contrário da ocupação aqui feita pelos povos estrangeiros, esta sim, ao menos teoricamente dependente de requisitos que a legitimassem.
Todavia, os fatos trazidos pela história apresentam um resultado fático bem diverso. O indígena, usurpado das terras que naturalmente lhe pertenciam, assumiu a condição de expropriado, dependente da benevolência do Estado para ter de volta os territórios que outrora lhe pertenciam pela mais legítima forma de aquisição: o indigenato.
Nosso ordenamento jurídico somente abrigou definitivamente o referido instituto, quando do advento da Constituição Federal de 1988. Foram reconhecidos cabalmente os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupavam, reafirmando o indigenato, vale consignar, direito congênito dos índios, independente de título ou reconhecimento formal, sobre as terras que ocupam ou ocuparam.
José Afonso da Silva [10] tece os seguintes comentários acerca do instituto sob exame: "Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas."
O indigenato origina-se no fato histórico de terem sido os habitantes pré-colombianos do Brasil os primeiros ocupantes dessas terras. Não há vinculação entre a existência do referido instituto com a situação de fragilidade e desproteção em que se encontram. Como de outra forma não poderia ser, os direitos territoriais originários dos silvícolas são preexistentes e superiores a qualquer outro que por ventura se alegue e, portanto, oponíveis erga omnes. [11]
Ressalte-se que o processo de demarcação das terras indígenas em si, não possui condão constitutivo, uma vez que é a presença do índio e a sua vinculação às terras que lhe conferem o caráter constitutivo de seus direitos*. O referido processo visa, todavia, tão somente à delimitação espacial dos referidos territórios, com o intuito de possibilitar o exercício das prerrogativas constitucionais conferidas aos índios, e opor-se a terceiros que, por ventura, aleguem direitos constituídos sobre suas terras.
6 DA POSSE INDÍGENA E SUA CONCEITUAÇÃO CONSTITUCIONAL DIFERENCIADA DO DIREITO CIVIL
A posse dos índios sobre as terras que originariamente lhes pertencem não pode ser observada sob o prisma do direito civil, sob pena de serem constatadas incoerências e aparentes conflitos doutrinários e conceituais.
O principal desses conflitos é a questão da proteção à propriedade privada contraposta aos direitos territoriais dos silvícolas. Se, de um lado o ordenamento garante a proteção à propriedade e à posse particular, como forma de garantir o patrimônio dos cidadãos, por outro, faz-se necessário entender essa prerrogativa sob o prisma Constitucional de que tal garantia apresenta-se como proteção de forma geral. Assim sendo, sempre que outras razões mostrarem-se mais relevantes ao interesse público e à justiça social, essa prerrogativa será excepcionada. Exemplo claro de tal afirmativa são os casos das desapropriações por interesse público e das requisições administrativas.
Para o Direito Civil, a posse é uma relação material com a "res", na medida em que seu titular guarda e age como senhor do bem. Nessa posse há uma vinculação ao conceito de propriedade, posto que se busca proteger uma relação de fato que aparenta todos os traços de uma relação de domínio.
Já a posse indígena é preliminar a qualquer outra relação. Não pode ter sua proteção subordinada à existência de uma aparência com a propriedade ou confundida meramente com a posse civil ou ocupação geral que decorre de transferência entre terceiros. Mister considerar-se o indigenato, ainda, como cerne original de tais direitos, para que se possa alcançar uma interpretação condizente com a intenção do legislador constituinte*.
A posse indígena possui natureza mais ampla e flexível que a prevista no direito civil. O conceito tradicional de habitação deve ser adaptado ao modo de vida dessas populações, à natureza e ao modo de vida com características nômades. Sob essa ótica, a posse dos índios passa a se vincular não com a idéia de habitação, como costuma-se entender sob o prisma do direito civil, mas em consonância com os seus costumes e as necessidades de sua subsistência, levando em consideração a importância da caça e da pesca em suas vidas. [12] Logo, a posse dos silvícolas sobre suas terras, estabelecida na Constituição, está diretamente ligada aos seus costumes e hábitos, à sua vinculação com a terra que ocupam, às agressões sofridas no passado, bem como à dizimação vivida no presente.
A posse, no que se refere ao âmbito dos direitos indígenas, deve ser encarada de forma mais flexível, sem a exigência do rigorismo na verificação de requisitos civis para se conferir proteção à permanência desses povos em suas terras.
Analisando-se a relação do índio com o seu território, chega-se à conclusão de que esse vínculo é mais que econômico, perfaz-se, isto sim, numa interação ecológica da qual depende para subsistir. Logo, conclui-se que a retirada de um índio do seu habitat é mais traumática que o desalojamento de um não-índio de sua terra.
Vislumbra-se uma aparente colisão entre, de um lado, o direito dos índios à vida, à dignidade da pessoa humana e à diversidade cultural, e, do outro, o direito de posse clássica ou propriedade dos titulares da área. Tal conflito encontra solução mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, para que prevaleça o interesse que apresente maior consonância com os objetivos e fundamentos do Estado, previstos na atual Constituição Federal. Neste caso específico, destaquem-se a redução das desigualdades sociais e a garantia da justiça distributiva.
Analisando-se, então, o caso concreto, mediante o sopesamento entre os interesses particulares e a relação do índio com a terra, conclui-se que esta é mais importante que a correlação econômica que o particular tem com a sua propriedade. Assim, a preservação do interesse indígena soa mais condizente com a Constituição Federal que o mero privilégio ao patrimônio particular e, portanto, via de regra, deve haver a sua prevalência.
Necessário ressaltar que sempre que um particular for desintrusado de terras indígenas, não terá por perdido seu patrimônio. Destarte, este civil será devidamente indenizado pelas benfeitorias de boa-fé presentes naquela terra, por aplicação do Artigo 1.219, da Lei 10.406/2002. As decisões dos tribunais pátrios são pacíficas no sentido de que a União deve indenizar os particulares em tal situação. [13] Por fim, o real alcance do conceito da posse indígena tem o afã de salvaguardar a subsistência física e cultural desses povos, dada a dependência vital entre estes e seus territórios.