6. A AVERBAÇÃO MANIFESTAMENTE INDEVIDA
O § 4º do art. 615-A prevê que no caso de averbação manifestamente indevida, o exeqüente deverá indenizar a parte contrária, nos termos do § 2º do art. 18 do Código de Processo Civil, processando-se o incidente em autos apartados.
Com isso, o legislador pretendeu compelir o credor a utilizar o instituto com cautela, uma vez que tal averbação, além de facultativa ao credor, ocorre antes de qualquer despacho inicial do juízo da execução, sem que se tenha estabelecido o contraditório. Exige-se, portanto, comedimento, razoabilidade e boa-fé do credor, sob pena da imposição de uma sanção (leia-se: indenização), que será apurada nos termos do art. 18, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil.
Observa-se, porém, que a averbação manifestamente indevida não configura, propriamente, ato de litigância de má-fé, tendo em vista que a conduta não se subsume em nenhuma das hipóteses do art. 17 do CPC [17].
Não existe, entretanto, uma definição precisa do que seja uma "manifestação manifestamente indevida". Nesse caso, como destaca AMADEO (2007, p. 367), "o legislador lançou mão de conceito indeterminado, não elegendo nenhum critério para que o operador do direito possa aferir se determinada averbação foi ou não manifestamente indevida" [18].
Em nosso sentir, tal situação se verificará no caso do exeqüente exceder os limites do exercício do próprio direito. Trata-se, assim, de hipótese de exercício abusivo do direito de averbar (art. 187 do Código Civil), o que poderá ocorre quando: (a) a constrição for indevida; (b) ultrapassar demasiadamente o valor do crédito [19]; (c) o exeqüente não comunicar as averbações ao juízo ou deixar de cancelá-las se necessário, etc [20].
Evidente, destarte, que se trata de forma de responsabilidade objetiva, não se discutindo a existência de dolo ou culpa por parte do credor [21], uma vez que o direito brasileiro "adota o critério objetivo, funcional ou finalístico para que se possa aferir ter havido o exercício abusivo do direito, segundo o qual mais relevante que a intenção do agente é a constatação de que o direito subjetivo terá sido exercido de modo contrário à sua finalidade econômica ou social" (WAMBIER et al, 2007, p. 77).
7. DA PRESUNÇÃO DE FRAUDE À EXECUÇÃO
A pedra de toque desse novo instituto está retratada no § 3º do art. 615-A do Código de Processo Civil, segundo o qual será considerada fraudulenta toda e qualquer alienação ou oneração realizada posteriormente a averbação do ajuizamento no registro do respectivo bem.
Referida norma antecipa o momento em que a alienação dos bens do executado passa a ser considerada descabida, uma vez que permite o reconhecimento da fraude à execução antes da citação. Trata-se, nos dizeres de ASSIS (2007, p. 44), de medida que antecipa a eficácia que somente decorreria da penhora, gerando efeitos semelhantes aos da averbação da penhora (CPC, art. 649, § 4º).
O art. 615-A torna a existência do processo executivo de conhecimento geral (publicidade erga omnes), impedindo a alegação de boa-fé do terceiro adquirente. Assim, após a averbação, qualquer alienação ou oneração de bens será considerada ineficaz em face do processo executivo. Está-se, diante, portanto, de presunção absoluta do conhecimento de terceiros (presunção iures et de iure), como bem observa DIDIER (2007) [22]:
"Trata-se de presunção absoluta, ao que parece, em consonância com a regra do §4º do art. 659 do CPC. Ambos os dispositivos devem ser interpretados e aplicados conjuntamente. A presunção legal afasta a relevância da discussão sobre a boa-fé do terceiro adquirente".
Controverte-se, no entanto, a doutrina sobre a necessidade da presença dos requisitos do art. 593, II, do CPC, ou seja, a pendência da demanda e o estado de insolvência.
Com efeito, para alguns autores [23] o art. 615-A deve ser lido em consonância com o art. 593, inciso II, não podendo se afirmar a existência de uma nova hipótese de fraude à execução. Assim, a decretação da fraude à execução com base no art. 615-A não prescinde do preenchimento dos dois requisitos previstos no art. 593, inciso II, do Código de Processo Civil, quais sejam: (a) a pendência da demanda, e (b) a redução do devedor ao estado de insolvência.
Desse modo, para os adeptos dessa vertente, a alienação ou oneração de um bem averbado não caracterizaria fraude à execução, quando comprovado que o devedor resguardou patrimônio suficiente para a garantia do débito. O art 615-A teria sido inserido no ordenamento jurídico apenas para facilitar a prova do elemento subjetivo da fraude (consilium fraudis), tendo em vista a orientação fixada pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a configuração da fraude à execução exige prova de conhecimento da existência da demanda pelo terceiro adquirente [24].
Assim, para estes autores, "a principal finalidade do art. 615-A, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil é facilitar a prova da má-fé ou boa-fé do terceiro adquirente do bem, tendo em vista a publicidade da distribuição da ação judicial, feita pela averbação deste ato" (MOURÂO, 2008, p. 228)
Tratar-se-ia, assim, de mero mecanismo de inversão do ônus da prova, que possibilitaria ao devedor elidir a presunção de fraude com a demonstração de sua solvência, conforme defende AMADEO (2007, p. 367):
"Diferentemente da presunção de ciência da existência da ação, que é absoluta por força da publicidade registral, a presunção de insolvência, gerada pelo § 3º do art. 615-A, é, contudo, relativa, o que implica dizer que pode ser elidida pelo devedor-executado ou pelo terceiro adquirente, bastando a prova de que, no momento da alienação ou oneração do bem objeto da averbação, existiam no patrimônio do devedor bens suficientes para satisfazer o crédito exeqüendo.
Há, portanto, nesse último caso, a par da impossibilidade de alegação de ignorância da existência da ação, a inversão do ônus da prova quanto à demonstração da insolvência em caso de alienação ou oneração do bem objeto da averbação prevista no novo art. 615-A "
No mesmo sentido é o magistério de THEODORO JÚNIOR (2007, p. 34):
"Naturalmente, essa presunção legal de fraude de execução, antes de aperfeiçoada a penhora, não é absoluta e não opera quando o executado continue a dispor de bens para normalmente garantir o juízo executivo. Mas se a execução ficar desguarnecida, a fraude é legalmente presumida, independentemente da boa ou má-fé do adquirente, graças ao sistema de publicidade da averbação, no registro público, da simples existência de execução contra o alienante".
Em nosso ponto de vista, contudo, o art. 615-A do Código de Processo Civil constitui nova modalidade de fraude à execução, criada pela lei com base no art. 593, inciso III, do Código de Processo Civil. Assim, como destacam Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (WAMBIER, 2007, p. 74), não é necessária a insolvência e nem a citação válida, pois "está-se, assim, diante de nova hipótese de fraude à execução (cf. art. 593, III)", não se tratando, pois, da hipótese prevista no art. 593, II do CPC.
Com efeito, a redação do art. 615-A do Código de Processo Civil claramente dispensa a presença dos requisitos expostos no art. 593, inciso II, ou seja, a pendência da demanda e a insolvência decorrente da alienação ou oneração do bem. Caso fosse interesse do legislador condicionar o reconhecimento da fraude à execução ao preenchimento de tais requisitos, teria feito expressa referência, tal qual ocorreu no art. 185, parágrafo único, do Código Tributário Nacional.
Admitir-se que o devedor, após a averbação, faça prova da existência de outros bens capazes de garantir a dívida, tornaria relativa a presunção decorrente do parágrafo 3º do art. 615-A, enfraquecendo o instituto, que foi criado para atribuir maior celeridade e efetividade na satisfação do direito do autor.
Em sentido semelhante:
"A hipótese prevista no parágrafo 3º do art. 615-A do CPC claramente dispensa o requisito da pendência da demanda – que, de acordo com o STJ, ocorre com a citação – e o da insolvência decorrente da alienação ou oneração. Basta, apenas, a alienação ou oneração de bem em cujo registro consta averbada a certidão de distribuição de execução para que fique configurada a fraude à execução.
Note-se que a alienação ou oneração de bens, prevista no inciso II do art. 593 do CPC, somente irá caracterizar fraude de execução se a alienação ou oneração ocorreu após a citação e se não houver outros bens com os quais a obrigação possa ser satisfeita (ou seja, se houver dano), isso sem mencionar o elemento subjetivo exigido pelo STJ. É necessário, portanto, a cumulação, ao menos, da fraude e do dano. Já na hipótese do parágrafo 3º do art. 615-A do CPC parece que o dano é presumido, de maneira que, para caracterização da fraude de execução, basta realização do ato de disposição após a averbação da certidão de distribuição da execução na matrícula. O momento em que ocorre a citação é irrelevante para efeito de caracterização da fraude de execução prevista no parágrafo 3º do art. 615-A do CPC. A certidão é obtida tão logo a execução seja distribuída, muito antes, portanto, da citação. O legislador emprestou à alienação ou oneração de bens, em cujo registro conste averbada certidão de distribuição da execução, efeito semelhante ao que existe, por exemplo, para a hipótese de alienação de bem constrito por penhora (CAMPOS e DETEFENNI, 2008, p. 58)
Em arremate, vale destacar as conclusões explicitadas por FURLAN [25]:
O art. 593, do Código de Processo Civil, que de forma genérica trata da fraude à execução, em seu inciso III, quando possibilitou à lei prever situações tipificadoras do instituo, não estabeleceu como pré-requisito prova da situação de insolvência do devedor, assim como o fez no seu inciso II, sendo, portanto, dispensável tal análise para definir a ordem dos créditos, com base no art. 615-A. O certame trazido à baila reafirma a natureza iure et de iure da presunção de fraude estudada, pois que rígida a ponto de dispensar a scienta fraudis como condição à ineficácia do ato jurídico.
Não há vedação, contudo, para que o bem averbado nos moldes do art. 615-A seja alienado pelo executado; porém, o adquirente do bem nesta condição assume o risco de ver a sua propriedade esvair-se com a conversão da medida registral em penhora e, posteriormente, em venda judicial, sendo, ainda, que a declaração de fraude à execução poderá ser levada a efeito independentemente de o devedor ser solvente ou não. Para tanto, se for o interesse do executado solvente alienar bem de sua titularidade que esteja gravado por uma averbação premonitória, poderá requerer ao Juízo a transferência da restrição para outro bem do seu acervo patrimonial capaz de garantir o litígio, ou, se a diligência cartorária já houver recaído sobre outros bens bastantes à garantia da dívida, o simples levantamento da averbação.
Desta forma, resta claro que o art. 615-A do CPC cria nova hipótese de fraude à execução, operando efeitos semelhantes ao do art. 659, § 4º, do CPC. Prescinde, assim, dos requisitos previstos no art. 593, II, do mesmo dispositivo legal, uma vez que a averbação estabelece a presunção absoluta de conhecimento de terceiros.
8. CONCLUSÃO
A Lei nº. 11.382, de 06 de dezembro de 2006, criada com a finalidade de conferir maior celeridade ao processo executivo, introduziu no ordenamento jurídico o instituto da averbação premonitória, estabelecida no novel art. 615-A do Código de Processo Civil, que passou a permitir ao credor, nas execuções por quantia certa, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução e, com base nela, provocar a averbação nos registros públicos de bens.
O intuito do legislador, nesse caso, foi o de alertar terceiros acerca da ação executiva, bem como evitar a alienação maliciosa de bens pelo executado antes da concretização da penhora, especialmente diante do posicionamento jurisprudencial que considera a boa-fé ao terceiro adquirente quando ausente o registro de penhora na matrícula/assentamento do bem (súmula 375 do STJ). Para tanto, o art. 615-A do Código de Processo Civil estabelece a presunção absoluta de fraude à execução no caso de alienação ou oneração do bem averbado, na mesma linha do art. 659, § 4º, do Código de Processo Civil.
Diante da novidade do assunto, muitas questões ainda dividem as opiniões dos processualistas brasileiros, o que demonstra a necessidade de que o instituto seja mais debatido, a fim de tornar a sua utilização mais segura e eficaz, ampliando o uso desse instrumento.
Nessa esteira, o objetivo do presente estudo, que não pretendeu esgotar o assunto, foi o de trazer à tona algumas das discussões mais relevantes acerca do tema, de modo a contribuir para o amadurecimento do instituto e fomentar a sua utilização prática.
Não há dúvida, no entanto, de sua grande valia para tornar a execução civil mais efetiva, diminuindo a ocorrência de alienações maliciosas, tutelando o interesse de terceiros de boa-fé e aumentando a segurança no tráfego de bens.
BIBLIOGRAFIA
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