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Da atipicidade do abortamento quando o produto da concepção é anencefálico

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16/05/2010 às 00:00
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4. ABORTO ANENCEFÁLICO

Agora será abordado um tema que há algum tempo vem suscitando diversas dúvidas quanto à solução mais condizente com as normas legais, constitucionais e diversos princípios da ordem jurídica brasileira, o abortamento quando, comprovadamente, o produto da concepção (feto ou embrião) é portador de anencefalia.

Já foi visto no presente ensaio que quando o produto da concepção é portador de anencefalia, a sua abóbada craniana é total ou parcialmente inexistente, o que inviabiliza a vida extra-uterina do produto da concepção pouco tempo após este sair do ventre materno.

O Código Penal, como já abordado, apenas prevê duas causas excludentes de ilicitude especiais para o crime de aborto, quais sejam: o aborto necessário, quando um médico pratica o aborto, pois esta é a única forma de salvar a vida da gestante, ou o aborto humanitário ou ético, quando um médico prática um aborto na gestante que fora vítima de crime de estupro, desde que essa consinta com o abortamento.

São essas, e apenas essas, as hipóteses previstas no Código Criminal, fora disso, a gestante ou terceiro que pratique aborto nesta, comete crime, e logo estará sujeito à reprimenda penal.

Apesar de tal codificação ter sofrido durante as décadas diversas modificações, sempre no intuito de torná-la mais atual, a verdade é que esta em vários aspectos tornou-se obsoleta, não atendendo mais aos reclamos sociais.

O processo de elaboração das leis brasileiras, que como todo processo legislativo de qualquer Estado sofre influências de cunho político e social, sendo ainda cheio de formalidades, acaba sendo comumente muito moroso para se chegar a uma solução para cada caso novo que surge em nossa sociedade, o que faz exigir do jurista uma interpretação que seja privilegiadora dos direitos e garantias fundamentais, interpretação que dê à Lei antiga vida nova, condizente com nossa realidade.

A grande verdade é que na década de 1940, ocasião em que o Código Penal fora promulgado, a ciência médica não possuía condições técnicas de definir se um feto, ainda guardado no ventre materno, era portador, ou não, de anencefalia, o que, atualmente, é plenamente possível, e por tais razões a sociedade reclama dos juristas uma solução para tais casos que seja mais adequada à nossa realidade.

Ora, o Direito Penal não pode ficar aquém da realidade, como ciência deve evoluir e tentar apontar uma solução para os casos de fetos portadores de anencefalia, pois a atual cultura e realidade social são bastante diferentes da realidade de 1940, e se a mutabilidade social sempre exigiu do Direito soluções para esses casos novos, no atual milênio em que tais mudanças são mais acentuadas e rápidas, pois se vive numa mutabilidade qualificada, que seria um estágio de evolução tão grande, decorrente da globalização e avanços cientifico-sociais que faz com que a sociedade evolua cada vez mais rapidamente, o que exige uma resposta que deverá ser ainda mais rápida e eficaz.

Nesse sentido, colaciona um ínclito jurista:

Transcorridos mais de sessenta e cinco anos da promulgação do Código Penal brasileiro de 1940, cuja Parte Especial ainda se mostra em vigor, questionam-se muitos de seus dispositivos, esquecendo-se, geralmente, que a vida é dinâmica, e que não só os usos e costumes evoluem, como também, e principalmente, a ciência e a tecnologia, de tal sorte que aquele texto publicado em 1940 deve ser adaptado à realidade atual mediante os métodos de interpretação, dando-se-lhe vida e atualidade para disciplinar as relações sociais deste início de novo milênio. Com Efeito, o Direito Penal não pode ficar alheio ao desenvolvimento tanto da ciência quanto dos usos e costumes, bem como da evolução histórica do pensamento, da cultura e da ética em uma sociedade em constante mutação. O Direito Penal – não se ignora essa realidade – é um fenômeno histórico-cultural que se submete permanentemente a um interminável processo de ajustamento de uma sociedade dinâmica e transformadora por natureza (BITENCOURT, 2008, p.146-147).

Assim, cabe ao cientista (jurista) analisar a legislação criada para outras épocas, amoldando a atual realidade, teorizando a melhor forma de se superar os impasses que nascem na sociedade.

Exemplo dessa interpretação mais condizente com a sociedade contemporânea e das mudanças sociais, segundo voz uníssona da doutrina pátria, é o fato de o aborto necessário poder ser praticado por enfermeira, embora o texto legal apenas preveja a exclusão de ilicitude quando o abortamento é provocado por médico.

Outro exemplo ocorre no caso do aborto humanitário, quando a gravidez é fruto de atentado violento ao pudor, sendo que o texto legal apenas menciona estupro. É importante salientar que com a inovação trazida pela Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, não mais existe o tipo penal autônomo de atentado violento ao pudor, ocorrendo uma imigração da ação de praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal para o tipo previsto no artigo 213 do Código Penal, constituindo, pois, atualmente, crime de estupro.

Como se vislumbra, em tais situações a doutrina adéqua a lei obsoleta às mudanças sociais, dando solução condizente com a realidade.

Anteriormente, no presente trabalho, foi abordado que a Constituição Federal traz no bojo dos direitos fundamentais da pessoa humana o direito à vida, de forma bastante ampla, não dando contornos mais precisos da tutela e limites deste direito.

O Código Penal protege a vida tanto intra quanto extra-uterina, sendo que coube à doutrina definir quando termina a vida intra-uterina e começa a vida extra-uterina, para efeitos de definir quando fato constitui crime de aborto ou homicídio; comumente, essa definição doutrinária está pautada em estudos da Medicina, tendo em vista que o Direito e os seus cientistas não poderiam se furtar das contribuições de outras ciências.

Mas todos os direitos, como fenômeno social que são, não podem ser considerados como absolutos, às vezes, até o mais fundamental dos direitos, se é que algum direito pode ser taxado de superior ao outro, entra em choque com outros direitos igualmente prestigiáveis na ordem legal pátria.

Não foi por outro motivo que se criou o princípio da proporcionalidade tão utilizado no Direito Constitucional brasileiro, e sempre norteador das decisões do Supremo Tribunal Federal, quando direitos e garantias fundamentais entram em choque, o que faz ser necessário o aumento do espectro de abrangência de um direito fundamental com uma limitação ou encolhimento de outro direito fundamental que é menos prestigiável em dada situação fática.

É relevante informar que o aborto não constitui apenas uma violência contra o feto, é também uma violência física contra a mulher, e por tal razão é que se aponta nesse estudo que não se está tratando de uma obrigação para a gestante, e sim uma faculdade à disposição desta.

Está-se defendendo a própria dignidade da pessoa humana da gestante, haja vista que obrigá-la a abortar um feto contra a sua vontade seria uma dupla violência, física e psíquica.

Assim como é condenável obrigar uma mulher a abortar um feto sem seu sincero desejo, seria igualmente atentatório à sua personalidade, ou melhor, à sua dignidade; obrigá-la a levar a um termo final em seu ventre, não uma fonte de infindáveis alegrias, uma criança saudável que viverá muitos anos compartilhando a vida familiar com ela (gestante). Pelo contrário, se o feto é portador de anencefalia, devidamente comprovada por perícia médica, a vida desse feto fora do ventre de sua mãe é inviável, haja vista que o produto da concepção será apenas uma razão de tormento, de tristeza e de sofrimento, uma vez que uma mãe que deveria se preparar para celebrar a vida de seu filho, passará a contar os duros dias para promover o enterro deste.

É uma situação por demais brutal, obrigá-la a levar essa gravidez até o fim, certamente nove meses em tais circunstâncias seria um período muito longo e que traria graves distúrbios de cunho psicológico, evidentemente prejudicial à sua dignidade de pessoa humana, princípio basilar da Constituição Federal, a saber:

Art. 1º A Republica Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - ... (omissis)

II - ... (omissis)

III - ... a dignidade da pessoa humana.

Eis o choque entre dois princípios constitucionais, de um lado o direito à vida intra-uterina; do outro, a dignidade de pessoa humana da gestante.

A vida é um direito, como qualquer outro, passível de limitação quando em choque com outro direito fundamental, exemplos claros e pertinentes disso são as causas específicas excludentes de ilicitude do aborto previstas no art. 128 do Código Penal, a hipótese do inciso I se reporta a choque entre o direito à vida da gestante e da vida do feto, enquanto o inciso II privilegia, em detrimento da vida do feto, a dignidade da gestante, vítima de crime brutal contra sua liberdade sexual, pois se essa gravidez fosse levada a seu termo final, indiscutivelmente a gestante poderia sofrer enormes distúrbios psicológicos, tratamento por demais degradante.

Nesse sentido, reza a Constituição Federal:

Art. 5º Todos São Iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:

I - ... (omissis)

II - ... (omossis)

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Acrescente, ao que foi dito até aqui, que durante muito tempo em nosso sistema jurídico não estava definido, ao certo, em que instante a vida teria seu termo final, o que tornava igualmente duvidoso até que momento a vida existe e merece ser prestigiada pelo ordenamento jurídico pátrio.

Isso mudou em 1997, quando fora promulgada a Lei de Transplantes de Órgãos, Lei nº 9.434/97, pois esta legislação autoriza que sejam extraídos os órgãos de uma pessoa com o reconhecimento da morte cerebral.

Assim, segundo tal legislação, ainda que os demais órgãos estejam em pleno funcionamento, a declaração de que o cérebro não mais possui vida dá ensejo a que uma equipe médica extraia os órgãos da pessoa, pois se estes não estivessem ainda vivos, de nada serviriam para fins de transplantes.

Apesar de tal legislação ter uma influência humanitária, não se pode concluir que ela permitiu que fosse autorizada a prática de homicídio contra as pessoas com morte encefálica declarada, por mais relevante que seja a finalidade desta, na verdade ela trouxe uma verdadeira definição legal de quando a vida termina.

Sendo assim, essa Lei definiu que a morte ocorre com a cessação dos sinais cerebrais (morte cerebral), espancando a possibilidade de continuidade da discussão se a vida tem fim quando o cérebro não possui sinais ou quando cessam os batimentos cardíacos e as atividades respiratórias (morte cardiorrespiratória ou clínica).

Como visto, no feto portador de anencefalia, o produto da concepção não possui a abóbada craniana, ou seja, não possui cérebro, então como pensar em crime de aborto no caso de feto anencefálico se, por previsão legal, a vida termina com a morte cerebral? Como esse fato seria crime de aborto se é necessário que o produto da concepção venha a morrer em decorrência das manobras abortivas se por definição da Lei a vida nem existe?

Quando se tratou do crime de aborto no seu momento específico foi constatado que neste era indispensável que a gravidez estivesse em andamento e o produto da concepção estivesse vivo, assim o crime de aborto se consumaria quando, em decorrência das manobras abortivas (nexo de causalidade entre conduta e resultado), adviesse a morte do produto da concepção.

Como o bem jurídico tutelado no crime de aborto é a vida intra-uterina, fica claro que embora dependente do organismo materno para crescer até possuir condições de viver fora do ventre materno, o produto da concepção, seja feto ou embrião, possui tratamento autônomo no ordenamento jurídico pátrio. O que a previsão do delito de aborto visa tutelar não é o ser humano já formado, mas sim a sua forma inicial de vida, a vida do produto da concepção.

Assim, é certo que no caso em testilha não há crime, porque na realidade não há, legalmente, vida a ser privilegiada porque esta nunca existiu, tendo em vista que o feto nunca possuiu um cérebro.

Quando ocorre um aborto de feto anencefálico não há que se falar em feto vivo, necessário para a ocorrência do delito de aborto, como não há que se imputar a morte do produto da concepção como decorrência das manobras abortivas, razão pela qual não há que se falar em delito, por não existir o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora conforme a Lei de Transplantes, pois segundo tal legislação a morte do produto da concepção é anterior às manobras abortivas.

Junte-se a isso que em tais casos não há nexo de causalidade entre a conduta de efetuar as manobras abortivas e o resultado morte do feto, pois este nunca esteve vivo.

Portanto, fala-se na verdade de conduta atípica, pois o fato que ocorreu no mundo fenomênico não se amolda às circunstâncias fáticas previstas abstratamente na norma penal típica.

Nesse sentido, defende Cesar Roberto Bitencourt (2008, p.151):

Ora, se a "morte cerebral" significa a morte, ou, se preferirem, a ausência de vida humana, a ponto de autorizar o "esquartejamento médico" para fins científico-humanitários, o que se poderá dizer de um feto que, comprovado pelos médicos, nem cérebro tem? Portanto, a interrupção de gravidez em decorrência de anencefalia não satisfaz aqueles elementos que destacamos anteriormente, de que "o crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja vivo", e ainda que "a morte do feto seja resultado direto das manobras abortivas". Com efeito na hipótese de anencefalia, embora a gravidez esteja em curso, o feto não está vivo, e sua morte não decorre das manobras abortivas. Diante dessa Constatação, na nossa ótica, essa interrupção de gravidez revela-se absolutamente atípica e, portanto, sequer pode ser tachado como aborto, criminoso ou não.

Deve ser tratada agora a questão da culpabilidade, que também pode ser trazida à baila para análise do objeto do presente estudo.

A culpabilidade consiste na reprovação pessoal da conduta do agente que poderia se omitir da prática do ato ilícito praticado por ele. Assim, a culpabilidade tem sua essência na vontade, que deve ser, necessariamente, livre e consciente na consumação do delito.

Para a existência do crime, segundo o conceito analítico de crime, este deve ser um fato típico e antijurídico, mas para ser imposto ao autor do crime a reprimenda penal deve-se haver culpabilidade, pressuposto necessário à aplicação da pena, e isso apenas ocorrerá quando for possível ao autor do ilícito ter tido a possibilidade de agir de forma lícita.

Cabe ser lembrado que a consideração da culpabilidade como pressuposto da aplicação da pena é defendida de forma minoritária na doutrina pátria, considerando a grande maioria de doutrinadores que o crime é, necessariamente, um fato típico, antijurídico e culpável, conceito analítico não adotado no presente estudo.

Retornando ao tema em exame, não basta ao autor do crime ter o conhecimento de que sua conduta é criminosa, ele também deve, igualmente, possuir no caso concreto a possibilidade de agir de acordo com o conhecimento do injusto ou de forma contrária a este.

Ainda assim, existem casos em que, embora o autor seja imputável, tendo pleno conhecimento da existência do injusto, e tenha a possibilidade concreta de agir conforme esse entendimento, não é exigido do autor do ilícito uma conduta em conformidade com o Direito; trata-se, pois, da exigibilidade de conduta diversa, elemento da culpabilidade que, uma vez inexistente afasta esse pressuposto para a aplicação da pena.

Assim, culpável será o indivíduo que era imputável no momento do cometimento do fato, em que este possuía o conhecimento do injusto e podia se determinar segundo tal entendimento, e naquela circunstância era possível exigir deste uma conduta diversa da prática do crime.

Uma vez reunidos os três elementos da culpabilidade, o autor do ilícito poderá sofrer a reprimenda penal, pois sua conduta é socialmente reprovável.

Trazendo esses elementos da culpabilidade, e aplicando-os ao caso de abortamento de feto anencefálico, fica evidente que o Estado não poderia se insurgir contra uma gestante que, possuidora de um laudo médico que constatasse que em seu ventre está um ser portador de anencefalia e a sua morte será inevitável quando esse ser se desprendesse dela, obrigando-a manter tal gravidez, pois esse atitude estatal seria, como antes dito, por demais brutal.

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Na verdade, obrigar uma mulher a carregar em seu ventre uma causa de dor e sofrimento é uma atitude por demais desumana e atentatória à dignidade da pessoa da gestante.

Assim, não existiria reprovabilidade social na conduta de uma gestante que em seu ventre carregasse um feto anencefálico, porque não seria razoável exigir desta uma conduta conforme o Direito, pois esta já teria uma certeza científica de que a vida daquele ser era completamente inviável fora do organismo materno, e obrigá-la a levar essa gravidez até o fim seria conduta que brutalmente a ofenderia não num momento específico, mas numa tortura que se protrairia no tempo até o último instante, o enterro de seu filho, que há muito já estava sem vida.

Exigir isso da gestante é inelutavelmente submetê-la a tratamento desumano, que lhe trará graves conseqüências psicológicas, tanto durante a prenhes quanto após o nascimento do ser, que cominara com a cerimônia fúnebre deste.

Nesse diapasão, conclui o doutrinador:

Concluindo, não se pode falar em reprovabilidade social nem em censurabilidade da conduta de quem interrompe uma gravidez ante a inviabilidade de um feto anencéfalo, que a ciência médica assegura, com cem por cento de certeza, a absoluta impossibilidade de vida extra-uterina. É desumano exigir-se de uma gestante que suporte a gravidez até o fim, com todas as conseqüências e riscos, para que, ao invés de comemorar o nascimento de um filho, pranteie o enterro de um feto disforme, acrescido do dissabor de ser obrigado a registrar o nascimento de um natimorto (BITENCOURT, 2008, p. 154)

É certo que na condição e visão de um cientista não é possível descrever os sofrimentos a que uma gestante nessa situação está exposta, então deixemos que uma mulher que passou por essa situação explique todo o sofrimento pelo qual passou:

Uma mulher chegou ao nosso lado e me perguntou: "Por que está chorando? É o primeiro filho? Qual o nome? Tem berço?". Eu chorei tanto, que assustei o hospital todo, todo mundo veio falar comigo. Isso já acontecia antes. Eu saía na rua, as pessoas viam minha barriga e me perguntavam: "já fez o chá-de-bebê?".

(...)

Um dia eu não agüentei. Eu chorava muito, não conseguia parar de chorar. O meu marido me pedia para parar, mas eu não conseguia. Eu saí na rua correndo, chorando, e ele atrás de mim. Estava chovendo, era meia-noite. Eu estava pensando no bebê. Foi na semana anterior ao parto. Eu comecei a sonhar. O meu marido também. Eu sonhava com ela no caixão. Eu acordava gritando, soluçando. O meu marido tinha outro sonho. Ele sonhava que o bebê ia nascer com cabeça de monstro. Ele havia lido sobre anencefalia na Internet. Se você vai buscar informações é aterrorizante. Ele sonhava que ela tinha cabeça de dinossauro. Quando chegou perto do nascimento, os sonhos pioraram.

(...)

Eu não tive esperanças na hora do parto. Ela não chorou. O médico falou que ela poderia durar três dias. O corpo estava todo perfeito. O pior momento foi quando ela morreu. O desespero foi enorme (Gabriela, paciente do Habeas Corpus 84.025-6 RJ impetrado perante o Supremo Tribunal Federal, deu à luz a Maria Vida, feto que resistiu sete minutos após o parto, antes que os Ministros o julgassem).

Cabe ainda relembrar que o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, assim como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969), além de diversos tratados e convenções, sendo que todos esses tratados e convenções que tratam de direitos humanos, segundo texto do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, uma vez ratificados pelo Brasil, constituem normas de natureza constitucional e integram os direitos fundamentais da pessoa humana, o que as tornam cláusulas pétreas impassíveis de supressão por meio de emenda constitucional.

Dessa forma, existem diversas normas provenientes desses tratados e convenções internacionais que têm por escopo o prestígio da dignidade da pessoa humana da mulher.

Por fim, tem que ser trazida a opinião de alguns doutrinadores que afirmam que quando a lei penal tipifica o crime de aborto, este visa proteger a vida humana, mas não toda forma de vida humana, mas a vida útil e viável e, quando constatada a anencefalia do feto, a vida é, indiscutivelmente, inviável, não sendo razoável exigir que uma gestante carregue em seu ventre durante a gestação um ser que pouco depois do seu nascimento acabe falecendo, por falta de cérebro que é tão essencial para a continuidade da vida desse ser.

Dessa forma, a proteção penal se dirige à viabilidade do feto e não à sua mera existência física. Não existe notícia de existência de um ser com vida que não possua a abóbada craniana, elemento indispensável para a existência da vida humana.

Por tal razão, segundo essa opinião doutrinária, parece mais razoável que seja dado à gestante, a pessoa mais interessada e que suportará o sofrimento de carregar em seu ventre um ser que possui essa anomalia, decidir sobre levar, ou não, essa gravidez até seu fim, sem sofrer uma reprimenda penal.

É assim que pensa Guilherme de Souza Nucci (2007, p.628):

A polêmica certamente existe. Preferimos acreditar que a lei penal, ao punir o aborto, busca proteger a vida humana, porém a vida útil e viável, não exigindo que a mãe carregue em seu ventre por nove meses um feto que, logo ao nascer, dure algumas horas e finde a sua existência efêmera, por total impossibilidade de sobrevivência na medida que não possui a abóbada craniana, algo vital para a continuidade da vida fora do útero. O anencéfalo não é protegido pelo direito penal, que se volta a viabilidade do feto e não simplesmente a sua existência física. Há quem sustente que pode haver erro de diagnostico e a anencefalia não ser comprovada posteriormente. Ora, se tal ocorrer é um erro médico grave, sujeito à indenização como outro qualquer, mas não justifica a proibição para todas as gestantes que, efetivamente, possuem em seu ventre um feto completamente inviável.

Andou bem o citado doutrinador em mencionar que não é razão para persistir a vedação da prática do aborto no caso de anencefalia a possibilidade de erro médico no diagnóstico, até porque um erro dessa espécie poderia ocorrer no caso de risco de vida para a mãe (aborto necessário).

De qualquer forma, caso acontecesse tal falha médica no diagnóstico, o médico que emitiu o parecer deve ser responsabilizado civilmente, indenizando os pais da criança, que acabaram incorrendo em erro calcado numa opinião médica mal elaborada.

Em sentido oposto ao que até aqui foi exposto, alguns doutrinadores alegam que o abortamento de feto portador de anencefalia é flagrante ofensa à Constituição, pois esta defende a vida humana de forma ampla, não fazendo distinção entre os seres humanos bem ou mal formados, mas sim defendendo a vida destes desde o momento da concepção.

Os defensores de tal tese defendem que o aborto de feto anencefálico constitui aborto voluntário, crime tipificado nos artigos 124 a 126 do Código Penal, e todos aqueles que contribuem para a prática de tal delito devem ser submetidos à reprimenda penal.

O legislador já trouxe nos dois incisos do artigo 128 do Código Penal as únicas duas hipóteses em que a vida intra-uterina poderia ser limitada, não se admitindo uma interpretação extensiva para tais hipóteses.

Em acordes com tal posição colaciona a autora:

A Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou mal formados, o direito à vida desde a concepção. Nega agressão à vida de modo incondicional, sem distinção entre a vida sadia ou doente, nova ou velha, intra ou extra-uterina.

Quando se dá a interrupção da gravidez, resultando na morte do embrião ou feto, ocorre aborto voluntário, classificado como crime contra a vida pelo Código Penal (arts. 124 a 126).

O legislador, de forma restrita, enumera as únicas hipóteses em que o aborto não é punível, embora praticado por médico: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e tratando-se de gravidez resultante de estupro. Não se admite interpretação extensiva, tampouco analogia "in malam partem". Deve prevalecer nesses casos o princípio da reserva legal.

Provocando a interrupção da gravidez, o sujeito ativo do delito atenta contra a vida do feto anencefálico, com o resultado desejado de sua morte, configurando-se, de forma inequívoca, nexo causal. A morte, no caso, não decorre da anomalia encefálica de que portador o feto, mas, sim, da ação de interromper-lhe, de modo eficaz, o normal desenvolvimento fetal, que vinha acontecendo no meio adequado intra-uterino (REZENDE, 2006).

Ainda de acordo com a tese dos opositores do abortamento de fetos anencefálicos, este configuraria uma ofensa à personalidade jurídica do ser em formação, pois o Código Ccivil resguarda desde a concepção os direitos do nascituro, sendo que diversos desses direitos são irrenunciáveis, tais como, o direito a um nome, ao corpo, à imagem, direitos sucessórios, direito a convivência familiar, direitos estes que, com a antecipação do parto, seriam violados pela prática do aborto nos casos ora analisados.

Dessa forma, para o Direito Civil pátrio não importa quanto tempo o ser passou vivo, mas se este nasceu com vida, passa a adquirir uma gama de direitos que já eram resguardados antes de tal nascimento, e impedir que o ser nascesse seria negar-lhe todos esses direitos e, portando, seria ofensa ao artigo 2º do Código Civil, e igual ofensa à personalidade jurídica do jovem ser.

Por fim, argumenta-se que o conceito de morte cerebral previsto na Lei nº 9.434/97 não é aplicável aos casos de anencefalia, pois a morte não seria um evento único, mas todo um processo, sendo a morte encefálica um momento definido pela Lei de Transplantes como sendo o mais seguro para a retirada dos órgãos do doador para fins de transplantes, não sendo possível atestar que, mesmo neste instante, não existiria vida no ser, embora minguante.

Dessa forma, seria impraticável nos casos de fetos anencefálicos o conceito de morte de tal Lei, previsto exclusivamente para casos de transplantes.

Nesse sentido defende Guylene Vasques Moreira Martins (2006), in verbis:

A razão de ser da inaplicabilidade do conceito de morte encefálica aos fetos anencefálicos, segundo o Conselho Federal de Medicina, está em que "a morte não é um evento, mas sim um processo. O conceito de morte é uma convenção que considera um determinado ponto deste processo". Assim, como o que se pretende com o conceito de morte encefálica é tão-somente determinar um momento a partir do qual é segura a retirada de órgãos do corpo humano para fins de transplante, não se pode afirmar que mesmo a partir dele não haja vida, ainda que minguante.

Interessante, ainda, verificar que o mesmo parecer do Conselho Federal de Medicina reconhece que "os anencéfalos morrem clinicamente durante a primeira semana de vida", de molde a demonstrar de forma definitiva que o conceito de morte encefálica dentro do útero materno não se lhes aplica. Repita-se: se os nascituros anencefálicos falecem logo após o nascimento, é lógico que isto quer dizer que nasceram com vida.

O argumento dos que defendem essa tese é no sentido de que o feto anencefálico, não obstante o conceito de morte trazido pela Lei de Transplantes, é dotado de vida, mesmo que limitada, devendo a mesma ser protegida pela nossa ordem jurídica, não se aplicando, nesse caso específico, o conceito de morte previsto legalmente na mencionada legislação, até porque o anencéfalo jamais possuirá um cérebro que torne possível a realização de exames que atestem sua morte cerebral.

4.1 Aborto Eugênico: Distinções Conceituais

Os autores da área da Medicina apresentam uma classificação de aborto que, de forma genérica, oferece aos doutrinadores do Direito Penal a possibilidade de que sobre esta seja realizada uma análise jurídica.

Em primeiro lugar, existe a interrupção eugênica da gestação (IEG), em que os abortos são praticados em nome de fins eugênicos, interrompendo-se a gestação com base em valores racistas, sexistas, étnicos. Exemplo clássico dessa pratica é o que era praticado pela medicina nazista, ocasião em que mulheres foram obrigadas a abortar pelo simples fato de serem judias, ciganas ou negras.

Em segundo lugar, tem-se a interrupção terapêutica da gestação (ITG), em que a interrupção se dá para proteção da saúde materna. Nesse caso, é interrompida a gestação para salvar a vida da gestante. Devido à evolução da tecnologia médica, a cada dia ficam mais raros os abortos que se enquadram nessa classificação.

Outrossim, existe a interrupção seletiva da gestação (ISG), que é a interrupção de gravidez ocorrida por motivo de anomalias fetais. Nesse caso, o motivo de tal interrupção é a constatação de lesão no feto, que torna o mesmo incompatível com a vida extra-uterina, sendo exemplo desse tipo de lesão fetal a anencefalia.

Por fim, temos a interrupção voluntária da gestação (IVG), que ocorre quando o aborto é motivado pela autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, ou seja, a gestação é interrompida porque a mulher, ou o casal, não possui mais interesse na gravidez, seja este fruto de uma relação sexual violenta (estupro) ou de uma relação consensual.

E nesse sentido que trata o ilustre autor:

A doutrina especializada (da área médica) apresenta uma classificação de situações de aborto que, genericamente, oferece um espectro interessante e, ao mesmo tempo, abrangente que serve à doutrina penal para fazer o exame jurídico, nos seguintes termos:

1. Interrupção eugênica da gestação (IEG), que são os casos de aborto ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto em situações em que se interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos. Comumente sugere o tipo praticado pela medicina nazista, quando mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras.

2. Interrupção terapêutica da gestação (ITG), que são os casos ocorridos em nome da saúde materna, isto é, situações, em que se interrompe a gestação para salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço tecnológico experimentado pela Medicina, são cada vez mais raros os abortos inscritos nessa tipologia.

3. Interrupção seletiva da gestação (ISG), que são os casos de abortos ocorridos em nome de anomalias fetais, em que se interrompe a gestação pela constatação de lesões no feto, apresentando patologias incompatíveis com a vida extra-uterina, como é o caso da anencefalia.

4. Interrupção voluntária da gestação (IVG), que são os casos de aborto ocorrido em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a gestação porque a mulher, ou o casal, não mais deseja a gravidez, seja ela fruto de estupro ou de uma relação consensual (BITENCOURT, 2008, p. 149)

Neste momento do trabalho, será tratada a interrupção prevista no primeiro item da classificação doutrinaria médica, tendo por fim fazer uma distinção entre o conhecido aborto eugênico e o aborto anencefálico, demonstrando as distinções fundamentais entre ambos.

Como visto, o aborto eugênico é aquele praticado com a finalidade específica de selecionar uma raça melhor ou pura de seres humanos, abortando o produto da concepção sempre que este apresente anomalias fetais, por menores que elas sejam, impedindo, dessa forma, que fetos detentores de viabilidade de vida extra-uterina, sejam sacrificados em prol de que seja mantida uma raça o quanto mais possível sadia.

Foi visto até aqui que seria possível à gestante, quando o produto da concepção fosse portador de anencefalia, que esta viesse a interromper o curso de sua gestação, em respeito à dignidade humana desta, e ao conceito de morte prevista na Lei de transplantes.

Essa possibilidade é medida razoável, mas não se pode permitir que ela seja um caminho aberto para a prática do aborto eugênico, dando a possibilidade que este seja autorizado em nosso Estado.

Assim, é preciso realizar distinções, para evitar abusos e desvirtuamentos da tese até aqui discutida, pois o que aqui se discute não é a possibilidade de que seja permitida a prática de aborto quando os seres humanos são portadores de defeitos genéticos ou possuem uma aparência monstruosa, pois o abortamento em tais casos, indiscutivelmente, constitui crime contra a vida intra-uterina, tipificados nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal.

Não seria possível e juridicamente permitido a uma mãe abortar um filho, pelo simples fato de este ser portador da síndrome de Dawn, ou porque o filho nasce deformado, possuindo uma aparência, socialmente, anormal.

Dessa forma, não há de forma alguma que ser privilegiado o abortamento pelo simples fato de o feto ser portador de mínimas deficiências de cunho psicológico ou físico, pois o ser no ventre materno encontra-se vivo e, portanto, tem essa vida protegida pelo nosso ordenamento jurídico.

Deve-se fazer com que essa prática em busca do aprimoramento da raça humana seja evitada, obstando aos pais que sejam detentores da possibilidade de escolher se o filho, como bem lhe aprouver, viva ou morra, deixando de levar a termo a gravidez dos filhos que não se amoldarem às suas mínimas perspectivas.

Parte dos doutrinadores, contrários ao abortamento do feto portador de anencefalia, argumentam que o aborto em tais causas seria uma forma de aborto eugênico, o que na espécie não ocorre.

No aborto de feto portador de anencefalia, não se tem por finalidade, como exigido para a ocorrência de aborto eugênico, a procura de um aperfeiçoamento ou a defesa de uma raça superior ou pura.

Na realidade, no aborto de feto portador de anencefalia, com base no até aqui colacionado, e, sobretudo, no conceito de morte trazido pela Lei nº 9.434/97, não há, em primeiro lugar, que se falar em ofensa ao direito à vida, tendo em vista que o conceito previsto em tal legislação acaba por considerar o feto anencefálico como um ser destituído de vida a ser prestigiado tanto pela nossa Constituição Federal, quando pelas normas infraconstitucionais, notadamente o Código Penal.

Em segundo lugar, o aborto de feto anencefálico pretende prestigiar o princípio da dignidade de pessoa humana da mãe do feto portador de tal anomalia, evitando que a gestante seja aniquilada pela obrigação de carregar em seu ventre um ser que constantemente, minuto a minuto, irá machucá-la com a triste lembrança de que após a gestação ela não terá um lindo filho a amar e cuidar, mas sim um ser sem vida para levar até o seu lugar de descanso eterno, situação que traria à mulher graves transtornos de cunho psicológico, para não falar que seria evidente tratamento desumano e degradante.

Sendo assim, evidente está a clara distinção entre os dois tipos de abortamento.

Não obstante o até aqui dito, doutrinadores, aproveitando-se da carga emocional trazida pelo termo aborto eugênico, tentam levar à mente dos leitores a idéia de repugnância que a prática da eugenia notadamente, e com justiça, traz.

Baseiam-se, ainda, na opinião de juristas contemporâneos ao nosso Código Penal (1940), que possuíam uma opinião bastante firme, no que tange ao aborto eugênico.

Nelson Hungria (1958, p.314) possuía a seguinte opinião sobre o aborto eugênico:

(...) andou acertadamente o nosso legislador em repelir a legitimidade do aborto eugenésico, que não passa de uma das muitas trouvailles dessa charlatanice que dá pelo nome de ‘eugenia’. Consiste esta num amontoado de hipóteses e conjeturas, sem nenhuma sólida base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela fornecer no sentido da previsão que um feto será, fatalmente, um produto degenerado. Eis a lição de Von Franqué: ‘Não há doença alguma da mãe, ou do pai, em virtude da qual a ciência, de modo geral ou nalgum caso particular, possa, com segurança, prever o nascimento de um produto degenerado, que mereça, sem maior indagação, ser sacrificado.

Como visto, o referido autor limita-se a comentar o aborto eugenésico como forma de violação à vida intra-uterina, baseado em meras conjecturas ideológicas e racistas, que visavam à criação de uma raça superior de homens.

O autor ignorava, completamente, os avanços científicos e tecnológicos que a Medicina alcançaria no fim do século passado e início do atual, e limitava-se a tratar de tema outro, bem distinto do objeto do presente trabalho.

Ora, a questão do aborto em caso de anencefalia é tema atual, pois teve início quando foi possível a ciência médica detectar, antes do termo final da gestação, definindo com quase 100 % de certeza que a gestante carrega em seu ventre um ser cuja vida não existe.

Portanto, não há a que se confundir o aborto eugenésico com o aborto no caso de fetos anencefálicos, pois essa confusão de conceitos traria ao o objeto do presente estudo um bojo de extrema carga emocional que atrapalharia a análise científica aqui proposta.

Além disso, não consiste em objeto do presente estudo a legalização da eugenia em nosso país, pois, o que aqui se defende, é que tal prática consiste em evidente violação ao direito à vida, por razões que nem sequer são prestigiáveis pela nossa ordem jurídica.

Na verdade, a prática do aborto eugênico deve ser espancada da nossa realidade social, até mesmo de nossas lembranças, devendo apenas ser relembrada para evitar que esse terrível passado da raça humana seja revivido, deve haver um máximo esforço para que tais práticas, tão comum no período nazista alemão, sejam evitadas e não voltem a ocorrer em nossa sociedade sobre nenhum pretexto.

4.2 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54

Agora serão analisados os fundamentos de mérito levantados na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental atualmente em tramitação no Supremo Tribunal Federal, haja vista que este processo, em especial, trata do tema objeto do presente estudo.

Dessa forma, será realizada a análise desta demanda no intuito de enriquecer mais o debate jurídico até aqui proposto, sempre na busca de solução mais condizente com nossa ordem jurídica vista como um todo harmônico.

O objetivo dessa ação é afastar a possibilidade de punição criminal do aborto quando o produto da concepção (feto ou embrião) for portador de anencefalia, pois nesses casos apenas ocorreria uma antecipação terapêutica do parto.

Defende-se tal pretensão no fato de o feto, portador de anencefalia, não possuir uma perspectiva de vida extra-uterina viável, pelo que a gestante e qualquer profissional de saúde que participe dessa antecipação não podem ser alvo das prescrições típicas previstas para o crime de aborto.

Essa demanda foi proposta no dia 17 de junho de 2004, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS), sendo que na peça preambular esta Confederação indicou como preceitos fundamentais vulnerados o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. IV), o princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade (art. 5º, inc. II) e o direito à saúde (Art. 6º, caput, e 196), todos princípios constitucionais, indicando ainda como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto de normas representados pelos arts. 124, 126, caput, 128, incs. I e II, do Código Penal.

Os argumentos dessa ação são os seguintes, em síntese:

a) Não constitui aborto a antecipação terapêutica do parto.

b) Não há perspectiva de vida extra-uterina no feto anencefálico, motivo pelo qual o mesmo não pode ser considerado nem mesmo um nascituro.

c) A ciência médica, após o diagnóstico de que o feto é portador de anencefalia, nada poder fazer em prol do feto que sofre esta anomalia.

d) O feto portador de anencefalia é um ser que não possui cérebro, e por isso não possui as funções superiores do sistema nervoso central, tais como: consciência, cognição, vida relacional, comunicação afetividade e emotividade.

e) Não obstante tal afirmação, a anencefalia não evita que o ser possua funções inferiores, como respiração e funções vasomotoras.

f) Comumente a sobrevida do ser, portador de anencefalia, fora do ventre materno dura cerca de algumas horas.

g) O quadro é irreversível, e a morte é inevitável.

h) Cerca de 65 % dos fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino.

i) como nada pode ser feito pelo feto anencefálico, pode-se prestigiar a pessoa da mãe, reduzindo os riscos que esta possui quanto à sua saúde e o seu sofrimento psicológico.

j) Na década de 40, quando foi promulgado o Código Penal, o legislador não tinha idéia de que a ciência médica possuiria, nesse início de novo século, a tecnologia necessária para diagnosticar as anomalias fetais, pois se fosse possível, provavelmente, o legislador excluiria a ilicitude ou punibilidade, quando o feto fosse portador de anencefalia.

l) O Código Penal deve ser interpretado de forma evolutiva e que atenda à finalidade da norma, de modo a resguardar os direitos fundamentais previstos na Constituição.

m) O crime de aborto visa resguardar a vida intra-uterina viável, e por isso no caso de anencefalia não há que se falar em crime de aborto.

n) Obrigar a mulher a carregar em seu ventre um ser que lhe causa estrema dor, angústia e frustração é uma flagrante violação à sua dignidade de pessoa humana.

o) É atentatória a autonomia da vontade da mulher a proibição de que esta possa antecipar terapeuticamente o parto do feto anencefálico, pois não há norma que a proíba de fazer isso.

p) O direito à saúde também é violado, quando é obstada a antecipação terapêutica do parto, pois saúde é o completo bem-estar físico, mental e social, e não a ausência de doenças.

Como se pode ver, os argumentos jurídicos apresentados na peça inaugural dessa ação não são distintos dos já aqui apresentados, salvo o de violação ao direito de saúde, não citado explicitamente, pois, inelutavelmente, obrigar a mulher a manter em seu ventre um ser que lhe causa tamanho abalo de cunho psicológico, realmente põe em jogo a saúde mental da gestante.

Em seu pedido, a parte demandante requereu que o Supremo Tribunal Federal procedesse a uma interpretação conforme a constituição dos artigos 124, 126 e 128, incs. I e II do Código Penal, declarando-os inconstitucionais com efeito erga omnes e vinculante, quando estes forem óbices à antecipação terapêutica do parto nos casos de gravidez de feto anencefálico, devidamente diagnosticada por médico habilitado para tanto, atribuindo, assim, o direito subjetivo à gestante em se submeter a tal procedimento, deixando de ser necessária a prévia autorização judicial.

Foi também requerida uma liminar, alegando-se a existência do fumus boni juris e periculun in mora, para que ocorresse a suspensão do andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais que visam aplicar ou tenham aplicado os artigos do Código Penal combatidos na demanda quando o feto for portador de anencefalia.

Diante de tal pedido de liminar, assim se manifestou o relator do caso, o Ministro Marco Aurélio, que entendeu presentes os motivos ensejadores da concessão da liminar pleiteada, acabando por decidir da seguinte maneira:

Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto (ADPF/54/STF).

Tal decisão liminar foi baseada em anterior julgamento daquela Colenda Corte, em que o processo perdeu seu objeto pela demora da resolução, o que permitiu que a gestante que pleiteava autorização judicial para se submeter à interrupção terapêutica do parto desse à luz antes do julgamento final pelo Supremo (HC/ 84.025/STF).

Após tal decisão liminar, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) requereu sua entrada no feito na condição de amicus curiae, apresentando memorial, em que pleiteava a revogação da liminar, tendo em vista que o tema era da mais alta indagação, versando sobre o direito de nascer do feto portador de anencefalia, decisão que não poderia ser tomada pelo relator, monocraticamente, num juízo sumário, em que este acabaria legislando positivamente, fazendo nascer uma outra causa excludente de ilicitude do crime de aborto.

A CNBB aduziu ainda que o feto, mesmo portador de anencefalia, não pode ser coisificado, sendo, portanto, pessoa humana, também titular de dignidade e merecedor de ver prestigiado seus direitos.

A Procuradoria Geral da República, na ocasião de sua manifestação processual, ofereceu parecer manifestando-se contrário à pretensão da demandante, tendo em vista que as causas extintivas de punibilidade possuem um sentido estrito, inequívoco e preciso, sendo estes o aborto para evitar que a mãe morra, e o aborto se a mãe, vítima de estupro, consente na prática do mesmo, sendo, pois, claro que o caso de anencefalia não consta no rol de excludentes previstas no Código Penal.

Assim, permitir o aborto no caso de feto portador de anencefalia seria flagrante ofensa ao direito à inviolabilidade do direito à vida.

Outrossim, o parecer ainda cita diversas normas tutelatórias do direito à vida, tais como o artigo 2º do Código Civil, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos e a Convenção Sobre os Direitos da Criança, sendo que todos estes diplomas sempre resguardando o direito à vida desde o momento da concepção.

No parecer está latente que o desenvolvimento do novo ser no ventre materno torna evidente a existência de vida do feto portador de anencefalia, o que o torna merecedor de proteção.

Ainda sobre tal julgamento, foi formulada pela União dos Juristas Católicos, uma consulta ao Ministro aposentado do STF José Néri da Silveira sobre o objeto da ADPF nº 54, sendo que este claramente se manteve contrário às pretensões desta demanda, com base no princípio da ponderação de interesses (princípio da proporcionalidade), nos termos que se passa a expor, verbis:

7. O direito à vida, como o primeiro dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, caput), é garantido, pela Constituição e ordenamento legal, ao ser humano, desde a concepção até a morte. É ele, assim, assegurado, também ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve (itens 11 a 13).

8. Numa ponderação hierárquica dos direitos e valores concernentes à vida e à dignidade humana garantidas também ao nascituro anencefálico, vivo e em desenvolvimento no ventre materno, em face de invocados direitos fundamentais da gestante, quanto à dignidade de pessoa humana, liberdade e autonomia de vontade, no sentido de interromper a gravidez, do que resultaria a morte do feto, - não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é ferida pelo fato dessa maternidade, valor constitucionalmente exaltado. A gestante – em mantendo o feto anencefálico em seu ventre, até o nascimento, com vida, do filho por ela gerado, com a grandeza da humanidade e revestido da dignidade de ser humano, – não terá sua dignidade pessoal diminuída, na linha da magna compreensão desse valor na ordem constitucional, nem sua liberdade ameaçada ou comprometida, mas, ao contrário, – revestida do valor constitucional e humano que se confere à maternidade, – cumpre vê-la merecedora de mais respeito e admiração por seus concidadãos, o que significa ter sua dignidade pessoal elevada, porque, acima de tudo, soube amar até o fim e é somente pelo amor que o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade.

Não cabe dar prevalência ao que se pretende na inicial, que instrui a Consulta, porque isso importaria em destruir a vida do ser vivo e em desenvolvimento no útero materno, ou seja, fulminar, irreversivelmente, o direito fundamental à vida do feto anencefálico, antecipando-lhe a morte, eliminando uma vida que, mesmo se houver de ser breve, embora indeterminado o momento do óbito, nem com isso deixará de ser vida humana protegida pela Constituição e as leis, com a nobreza do ser humano (itens 23 a 25) (ALVES JR., 2007).

O plenário do Supremo Tribunal Federal deliberou acerca da liminar deferida pelo Ministro Marco Aurélio, ocasião em que ficou decidida a revogação da liminar quanto à permissão do aborto, mantendo esta em relação à suspensão dos processos em curso, até a decisão final daquele Colendo Tribunal, sendo que esta decisão definitiva não ocorreu até a presente data.

Ao analisar o caso, o Ministro Carlos Britto acompanhou o Ministro Marco Aurélio, relator do caso, pois este defendeu que o feto portador de anencefalia não era uma pessoa viável fora do ventre materno, que seria uma espécie de Unidade de Terapia Intensiva para esse ser, não podendo este sobreviver fora do organismo da mãe, pelo que, não haveria sentido obrigar a gestante a uma gravidez da qual não teria como resultado um começo de vida humana.

Seguiram essa posição os Ministros Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, posicionando-se a favor da manutenção da liminar.

Em sentido contrário, o Ministro Eros Grau colacionou que o feto anencefálico é uma pessoa humana e não uma coisa (objeto), não havendo no caso risco de morte para as mães-gestantes de fetos com essa patologia, e ainda se manifestou no sentido de que o risco de grave e irreversível dano era do feto anencefálico e não da gestante, motivo pelo qual, a liminar deveria ser imediatamente revogada.

Acompanhando o Ministro Eros Grau, o Ministro Cezar Peluso argumentou que o feto é ser humano, e a brevidade de sua vida não lhe retira a proteção penal de sua vida intra-uterina. Por fim, ainda trouxe a colação que o sofrimento suportado pela gestante não a degrada, pois esse sentimento faz parte da própria experiência humana, não sendo motivo bastante para a permissão do abortamento em tais casos.

Os Ministros Gilmar Mendes e Carlos Veloso, igualmente, votaram contra a manutenção da liminar, o primeiro sob o argumento de que a matéria era muito delicada, e poderia levar a uma mutação constitucional por meio da Jurisprudência daquele Tribunal, o que não poderia ocorrer por meio de uma via tão estreita como a medida cautelar. O segundo, Ministro Carlos Veloso, entendeu que a cautelar não poderia subsistir, haja vista não haver risco de dano iminente para a gestante, mas sim para os fetos anencefálicos, e sopesando o direito da gestante e do feto, este optou pelo direito à vida do anencefálico.

Votaram em sentido contrário à manutenção da liminar, além dos já aqui citados, os Ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Nelson Jobim, motivo pelo qual a liminar foi revogada.

Eis a final decisão do Plenário do Supremo acerca da liminar:

ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – PROCESSOS EM CURSO – SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal (ADPF/54/STF).

ADPF – LIMINAR – ANENCEFALIA – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – GLOSA PENAL – AFASTAMENTO – MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia (ADPF/54/STF).

Essa decisão foi baseada, sobretudo, no fato de que grande parte dos Ministros consideraram muito perigoso que uma decisão monocrática num juízo sumário de mérito tivesse o condão de permitir em todos os casos a antecipação terapêutica do parto, sendo mais acertado que tal decisão fosse decidida pelo pleno ao final do julgamento, além dos julgadores mostrarem-se claramente divergentes quanto ao mérito do processo.

Quanto à suspensão dos processos e efeitos de outras decisões, esta se manteve, pois tais causas tinham o julgamento ora em comento como sua prejudicial lógica.

Diante de todo o exposto, espera-se que com as importantes opiniões relativas à ADPF nº 54 tenha sido possível emprestar ainda mais importância ao objeto do presente trabalho, e será deixada para o capítulo vindouro a análise valorativa do referido processo, em que ainda serão enfrentadas todas as questões controversas a respeito do aborto de fetos anencefálicos.

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Sobre o autor
Jonathan Dantas Pessoa

Escrivão de Polícia Civil do Estado de Pernambuco, bacharel em direito pela faculdade Escritos Osman da Costa Lins (FACOL), pós-graduando pela Escola Superios de Advocacia de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PESSOA, Jonathan Dantas. Da atipicidade do abortamento quando o produto da concepção é anencefálico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2510, 16 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14760. Acesso em: 26 abr. 2024.

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