5. CONCLUSÃO
Nesse instante, deve-se analisar todas as argumentações jurídicas trazidas no bojo deste trabalho, para que seja atingida uma conclusão jurídica acerca do abortamento de fetos portadores de anencefalia.
Essa análise será feita tendo em vista o atual estágio de evolução histórico social, e do grande desenvolvimento técnico-científico experimentado pela ciência médica contemporânea, além do fato, já especificado, de as normas constantes do Código Penal acerca do crime de aborto encontrarem-se obsoletas em face da sociedade contemporânea.
Quando a ciência médica alcançou essa possibilidade de se chegar ao diagnostico com 100% de certeza de que o feto, ainda no ventre materno, é portador de anencefalia, nasceu essa problemática, exigindo-se uma análise do tema frente às normas jurídicas constantes de nosso ordenamento legal.
Em um primeiro instante dessa evolução científica, era evidente uma colisão de princípios constitucionais, sendo eles, o direito à inviolabilidade da vida do feto guardado ainda no ventre materno, e o da dignidade da pessoa humana da gestante, pois com a certeza de que esta carregava em seu corpo um ser predestinado a morrer antes ou logo após nascer, a gestante passou a viver numa constante situação de dor e angústia.
Nesse diapasão, apresentam-se dois princípios igualmente prestigiáveis na ordem jurídico-constitucional, devendo, com base no princípio da proporcionalidade, sopesar estes, na tentativa de harmonizá-los, limitando o espectro de atuação do princípio menos prestigiável no caso concreto, para dar maior efetividade ao princípio que merece prosperar nessa dada situação (aborto de feto anencefálico).
Com base nisso, poderiam os defensores da tese de que o direito à vida é o mais importante de todos os direitos existentes, argumentar que o melhor seria sacrificar o princípio da dignidade da pessoa humana, mas ao vislumbrar a situação como um todo essa perspectiva não deve ser aceita.
Se, com base nesse embate entre princípios constitucionais, trouxer-se à baila que a vida, embora existente no feto anencefálico, é precária e jamais existirá por tempo razoável fora do corpo materno, até porque na maioria dos casos, o jovem ser deixa a vida ainda dentro do corpo da mãe, pode-se vislumbrar que o princípio da dignidade da pessoa humana da gestante deve prevalecer.
Não seria razoável prestigiar uma vida prestes a chegar a seu fim, sacrificando assim a dignidade e, porque não dizer, a saúde psíquica da mãe, que sofreria um tratamento desumano e degradante com conseqüências desastrosas e irreversíveis. Junte-se a isso que o abortamento de um feto anencefálico seria uma faculdade à disposição da gestante que poderia, livremente, optar entre levar tal gravidez até seu termo final, ou interrompê-la, evitando toda sorte de dessabores que uma gestação nestas condições a levariam.
Motivos pelos quais, numa situação desta, inelutavelmente, os princípios constitucionais que devem prevalecer são, o da saúde da gestante, da dignidade da pessoa humana desta e o da proibição de submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante.
Sendo assim, deve-se permitir a escolha pela gestante de interromper ou não a sua gestação.
Note-se, contudo, que essa solução, até aqui exposta, não mais é cabível com base em nossa atual legislação.
Com a entrada em vigor da Lei nº 9.434/97 (Lei de Transplantes de Órgãos), a situação de abortamento de fetos anencefálicos ficou sensivelmente modificada, pois tal legislação delimitou o direito à vida, definindo em que momento esta chega ao seu termo final, a morte cerebral.
A partir da entrada em vigor desta Lei, não há mais que se falar em embate entre princípios constitucionais acerca do feto anencefálico, pois, na realidade, o fato de o feto portador de anencefalia não possuir cérebro, faz com que o mesmo, com base na Lei de Transplantes, seja considerado um ser destituído de vida.
Podem os contrários a esse entendimento argumentar que não poderia uma norma de natureza infraconstitucional limitar uma norma de natureza constitucional, mas tal argumentação é destituída de razão. Ora, aqui não se trata de limitação do direito à vida, mas sim de uma delimitação de tal direto, tão comum em nosso sistema jurídico.
A Constituição Federal colaciona o direito à vida, mas o faz de forma genérica e com alto grau de abstração, cabendo à legislação ordinária delimitar os contornos de tal direito, e isso acontece quando se prevê institutos como a legítima defesa, ou as causas excludentes de ilicitude previstas no artigo 128 do Código Penal, ou, ainda, delimitando legalmente o momento em que a vida chega ao seu fim, o que fora feito pela Lei de Transplantes.
Essa legislação teve o condão de excluir a tipicidade do aborto anencefálico, por duas razões, já demasiadamente expostas no bojo deste trabalho.
Em primeiro lugar, porque para a ocorrência do delito de aborto, faz-se necessário que o feto esteja vivo, sendo que, com base na Lei de Transplantes, o feto anencefálico não possui vida, o que é necessário para a ocorrência de crime de aborto e, portanto, a prática de aborto em um feto portador de anencefalia é um crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, conforme previsão do artigo 17 do Código Penal.
A segunda razão é porque não existe nexo de causalidade entre a conduta de praticar o aborto e o resultado morte do feto, pois a cessação da vida desta ocorreu em momento anterior, não derivando das manobras abortivas.
Diante de tais argumentações, melhor será denominar o aborto anencefálico de antecipação terapêutica do parto, pois o termo aborto está ligado a uma idéia de violência e prática delitiva e, como acima visto, o fato aqui tratado é atípico e, portanto, estranho ao Direito Penal.
Quanto à questão da culpabilidade, também trazida à baila neste trabalho, a análise desta restou prejudicada, pois, como já mencionado, a antecipação terapêutica do parto é fato atípico.
Contudo, pode-se definir que, indiscutivelmente, não há que se falar em reprovabilidade pessoal na gestante que pratica um aborto nas circunstâncias aqui tratadas, pelo que é inexigível desta uma conduta em conformidade com o direito, pois esta não poderia ser obrigada pelo Estado a carregar em seu ventre um ser que lhe trouxesse toda a sorte de sofrimentos de cunho psicológico.
Assim, não seria razoável exigir de uma gestante que levasse uma gravidez de feto anencefálico até seu fim, tendo em vista que isso atentaria contra a sua dignidade de pessoa humana, assim como atentaria contra a sua saúde psíquica, motivo pelo qual não existe culpabilidade numa gestante que tomasse a decisão de antecipar terapeuticamente o parto nesta situação.
A opinião dos juristas que defendem que o Código Penal visa apenas tutelar a vida útil e viável é falha, e talvez só tenha tido sua maior importância quando, no ordenamento jurídico brasileiro, existia um conflito entre princípios constitucionais acerca da solução jurídica para as situações dos fetos portadores de anencefalia.
Na verdade, nem a Constituição, tampouco o Código Penal, fazem distinção entre vida viável ou inviável, mas apenas se reportam à vida, se ela existe ou não, tutelando a existência da mesma; é, dessa forma, inadmissível essa classificação e ela é, na verdade, ineficaz para uma solução do tema aqui debatido.
Acerca dos doutrinadores que alegam que a antecipação terapêutica do parto é violação da vida, deve-se notar que, embora a Constituição preveja a proteção do direito à vida de forma ampla, não fazendo distinção entre feto bem ou mal formado, a Lei de Transplantes delimitou tal norma constitucional, e optaram os legisladores em definir o momento da morte como sendo a ocorrência da morte cerebral.
Portanto, no caso de anencefalia em que o ser é destituído de abóbada craniana, não possuindo um cérebro, não existe vida a ser tutelada, tanto pelas normas constitucionais, quanto pelas normas infraconstitucionais.
Igualmente, se o feto anencefálico legalmente é destituído de vida, não há que se cogitar em ofensa à personalidade jurídica com a antecipação terapêutica do parto, pois não existe violação à vida do produto da concepção no caso em análise, não chegando o novo ser a possuir os direitos civis que este possuiria se nascesse com vida.
Quanto ao fato de que o conceito de morte previsto na Lei 9.437/97 não seria aplicável aos fetos portadores de anencefalia, é uma opinião das mais absurdas, não havendo motivo para que isso ocorra, tendo em vista que essa Lei não fez tal limitação, não sendo razão para inaplicabilidade de tal legislação o fato de o Conselho Federal de Medicina tentar fazer com que nesses casos seja aplicado o conceito de morte clínica.
Ora, a Lei de Transplantes é norma geral e visa regular e definir o momento da morte de forma indiscriminada, não sendo prevista nesta ou em qualquer outra legislação exceções em que o seu conceito de morte não seja aplicado.
Outrossim, não é o fato de ser impossível realizar exames capazes de diagnosticar a morte cerebral do feto portador de anencefalia que fazem com que essa legislação seja inaplicável na espécie, pois a não existência de cérebro faz com que se chegue à irremediável conclusão de que não existe vida a ser tutelada nos fetos anencefálicos.
Acerca da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, esta deve ser considerada procedente pelo fato de a conduta de interromper terapeuticamente o parto ser uma conduta atípica, não havendo delito em tal ação da gestante ou de qualquer outro que ajude nessa prática.
No entanto, deve ser lamentado que nesse julgamento sequer foi citada a Lei de Transplantes de Órgãos como legislação chave para a solução de tal lide, limitando-se as partes a discutir o objeto de tal processo com base numa colisão de princípios constitucionais, o que não ocorre desde o ano de 1997, quando passou a vigorar a Lei nº 9.434/97.
Na manifestação processual da Procuradoria da República, esta se baseou no fato de que deveriam ser interpretadas de forma restrita as causas excludentes de ilicitude previstas no art. 128 do Código Penal, mas esqueceu-se de analisar nosso ordenamento de forma sistemática, deixando de analisar a Lei de Transplantes de Órgãos e a definição trazida por esta do momento da morte, o que levaria à singela opinião de se tratar de fato atípico, por falta de objeto jurídico a ser tutelado, além de inexistência de nexo de causalidade entre as manobras abortivas e a morte do produto da concepção.
Por todo exposto, é possível vislumbrar que a discussão sobre qual seria o princípio constitucional a ser privilegiado nos casos de feto portador de anencefalia, princípio da dignidade da pessoa humana ou princípio do direito à vida, inexiste, tendo em vista que com a inovação trazida pela Lei nº 9.434/97, esta discussão restou superada.
Com base nessa inovação, é possível vislumbrar que quando ocorrer a antecipação terapêutica do parto de feto portador de anencefalia, não há vida a ser tutelada, e não há como se imputar o resultado morte do produto da concepção à conduta de praticar o aborto, pois a morte do feto ou embrião é anterior à conduta do agente.
Donde se pode concluir que se está tratando de fato atípico, não constituindo, pois, ação criminosa a ser punida pelo Direito Penal, tendo em vista não existir violação ao direito à vida.
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