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Responsabilidade civil por dano à honra

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28/04/2010 às 00:00
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A disciplina dos direitos da personalidade é uma conquista dos tempos modernos. Entretanto, a preocupação maior se deu com o direito ao nome, ao corpo, à liberdade, à imagem, fazendo supor que o direito à honra é menos importante.

Para Helena e Bento, Igor e Yuri, e Ana, cujo amor não tem fronteiras.


SUMÁRIO

Capítulo 1: Desenvolvimento histórico. 1. Actio injuriarum – 2. A honra no direito ático – 3. A visão do direito canônico – 4. Idade Média e Idade Moderna – 5. Revolução Francesa – Domínio do direito público – 6. Séculos XIX e XX – Nova espécie de direitos privados – 7. Necessidade de tutela específica – 8. Omissão do direito civil – 9. Instrumentos internacionais de proteção à honra – 10. O papel da jurisprudência – 11. Proteção da vida privada – O dogma de Royer-Collard – 12. Contribuição da doutrina.

Capítulo 2 Conceituação. 1. Conceito – 2. Conceito múltiplo e proteiforme – 3. Bem interno e externo – 4. Honra profissional – 5. Honra do Estado – 6. Honorificência – 7. Honra familiar – Memória do morto – 8. Honra do incapaz – 9. Vida privada e vida pública – 10. Honra e intimidade – 11. Interesse público – 12. Vida política – 13. Honra e identidade pessoal (direito ao nome) – 14. Honra e imagem – 15. Honra – Criações do espírito – Propriedade industrial – 16. Exceptio veritatis – 17. Conceito das figuras penais.

Capítulo 3: Natureza jurídica e caracteres. 1. Os direitos da personalidade – 2. Denominação – 3. Natureza jurídica dos direitos da personalidade – Honra – 4. Direito da personalidade e direitos da personalidade – 5. Objeto – 6. Direitos da personalidade e direitos do homem ou direitos subjetivos privados e direitos subjetivos públicos – 7. Classificação dos direitos da personalidade – 8. Caracteres.

Capítulo 4: Casos específicos. 1. Crédito pessoal e concorrência desleal – 2. Ruptura de noivado – 3. Exclusão de sócio da associação ou sociedade – 4. Exclusão do indigno da sucessão e deserdação – 5. Revogação de doação – 6. Indignidade e cessação de alimentos – 7. Honra e delitos sexuais – 8. Separação e divórcio – 9. Proteção ao consumidor – 10. Relações de trabalho – 11. Assédio moral.

Capítulo 5: A pessoa jurídica. 1. A pessoa jurídica como sujeito passivo do ilícito ou como credora da obrigação de indenizar – 2. A pessoa jurídica como sujeito ativo do ilícito ou devedora da obrigação de indenizar.

Capítulo 6: Dano e reparação. 1. Considerações sobre o dano – 2. Reparação – 3. Reparação natural – 4. Reparação por meio de ressarcimento – 5. Nexo causal – 6. Previsibilidade e dano contínuo – 7. Omissão – 8. Prescrição – 9. Presunção juris et de jure e legitimidade ativa 10. Substituição do sujeito passivo – 11. Dano patrimonial indireto – 12. Valoração do dano – 13. Condição econômica das partes – 14. Reparação decorrente do delito.

Capítulo 7: A tutela legal em outros países. 1. Direito francês – 2. Direito alemão – 3. Direito espanhol – 4. Direito italiano – 5. Direito português – 6. Direito argentino –7. Direito brasileiro.

Capítulo 8: Jurisprudência brasileira. 1. Abalo de crédito – 2. Alcance da expressão “Dano Moral” – 3. Ataque sexual – Pessoa jurídica (responsabilidade) – 4. Cumprimento do dever – 5. Exercício do direito: a) Dever de informar; b) Limites – abuso; c) Exclusão de sócio de sociedade; d) Advogado – excesso – 6. Denunciação caluniosa – 7. Detenção – Prisão – 8. Dote – 9. Difamação – 10. Entidade sindical – 11. Honra e imagem – 12. Honra e vida privada – 13. Injúria – 14. Lei de Imprensa: a) Autor direto; b) Quantum indenizatório; c) Publicação da sentença; d) Entrevista; e) Criança e adolescente; f) Foro competente; g) Prazo decadencial; h) Abrangência – 15. Memória do morto – 16. Pessoa jurídica – 17. Prescrição e decadência – 18. Quantum debeatur – 19. Trabalhador – 20. Casamento – União estável.

Considerações finais.

Bibliografia.


INTRODUÇÃO

Honor est maximum bonorum exteriorum. Honor est maximum honorum. A sabedoria latina, ao elevar a Honra a bem supremo do homem ou ao equipará-la à própria vida, bem demonstra que ela deve constituir uma preocupação pilar do jurista e do próprio legislador. Esta, porém, não é uma realidade insofismável. Causou-nos estranheza, ao longo da pesquisa realizada, a escassez de estudos que sistematizam o tratamento da honra no direito privado. O subsídio maior para o presente trabalho veio-nos dos próprios penalistas e, em especial, dos autores italianos, em notáveis e raras obras. Alguns tratadistas de Direito Civil serviram-nos de apoio, com suas referências pinceladas sobre o assunto, permitindo-nos montar o quadro que ora se apresenta

Conforme se verá nas exposições subseqüentes, a disciplina dos denominados direitos da personalidade é uma conquista dos tempos modernos, séculos XIX e XX; entretanto, a preocupação maior se deu com o direito ao nome, ao corpo, à liberdade, à imagem, à intimidade, que figura autonomamente em textos legislativos de vários países, fazendo supor que o direito à honra é menos importante que aqueles, ante a omissão do direito civil. A preterição é sem fundamento, o que nos propulsou a levar avante a tarefa de seu estudo. Descontentava-nos o fato de não ver a honra ganhar espaço próprio em nosso sistema jurídico. Felizmente, quase ao findar da nossa primeira pesquisa, tivemos o gáudio de vê-la contemplada pela Carta Magna brasileira de 1988.

A estudiosos do Direito, quando se propõem à investigação de um instituto jurídico, ocorre freqüentemente situar sua origem no direito romano. Não fugimos à regra, mesmo que soframos a crítica de não ter recorrido a tal fonte diretamente. Não poderíamos deixar de mencionar a Actio Injuriarum, do direito romano, buscando subsídios em autores renomados, diante da escusa de dificuldades das fontes primárias.

O conceito de honra, consentâneo com os fins do direito privado, ganha aqui amplitude desejável. Larga da esteira das figuras do direito penal para adquirir moldura própria. Um destaque foi destinado à Lei de Imprensa, considerando-se as abusivas veiculações ofensivas à honra nos meios de comunicação. A reparação do dano, repleta de dificuldades, como fizeram sentir alguns estudiosos da sua reparabilidade extrapatrimonial, será visualizada sob o prisma estritamente do Direito Civil, bem como do preceito penal determinante da mesma como conseqüência da condenação criminal. Por fim, um panorama de situação da proteção da honra no direito comparado, tomando-se por amostragem simples as legislações de alguns países ocidentais, objetivando-se demonstrar o grau de evolução do direito brasileiro em relação aos mesmos.

Dentre outras, que se inserem no presente estudo, estas serão nossas preocupações básicas. O objetivo maior é levar ao estudioso do Direito o conhecimento da existência de um direito autônomo – a honra – que se distingue de muitos outros direitos da personalidade, em especial, dos direitos ao nome, imagem e intimidade, comumente confundidos por aqueles não afeitos aos direitos da personalidade. Esta, a síntese de nossa proposta.

A oportunidade representa para nós momento único de externar ao insigne E saudoso mestre Milton Fernandes o nosso respeito e agradecimento pela atenção e estímulo ao trabalho aqui apresentado, tarefa que nos envolveu ao longo de um lustro, bem como pelo empréstimo de material coletado nas bibliotecas européias, sem o qual extremamente árdua seria nossa tarefa.

Meditamos longamente e mantivemos artigos e leis revogados, no presente estudo, como a Lei de Imprensa n. 5250/67, considerando a importância que tiveram no desenrolar e afirmação, tanto em doutrina quanto em jurisprudência, do direito à honra. Não se pode perder de vista essa evolução construtiva, partindo-se do estudo somente após a Constituição da República de 1988, porque um direito tão essencialmente ligado à vida do homem não tem seu nascedouro somente a partir de determinada norma legal. Seu arcabouço jurídico fez-se no desenrolar da história dos povos. O presente brota de seus poros a história. Como quer o historiador Eric Hobsbawm:

"...., passado, presente e futuro constituem um continuum" [1]

Ou Cícero: " Historia Magistra Vitae".

Nota: [1] HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia. Letras, 1997


CAPÍTULO 1
DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

Sumário: 1. Actio injuriarum – 2. A honra no direito ático – 3. A visão do direito canônico – 4. Idade Média e Idade Moderna – 5. Revolução Francesa – Domínio do direito público – 6. Séculos XIX e XX – Nova espécie de direitos privados – 7. Necessidade de tutela específica – 8. Omissão do direito civil – 9. Instrumentos internacionais de proteção à honra – 10. O papel da jurisprudência – 11. Proteção da vida privada – O dogma de Royer-Collard – 12. Contribuição da doutrina.

1. Actio injuriarum

"A Honra e a vida se equiparam" (Honoris causa et vita aequiparantur). Nesta eqüipolência verificamos quão importante e precisa deve ser a proteção jurídica da honra e quanta porfia já rendeu a julgadores e estudiosos. E essa preocupação de proteção aos bens da pessoa humana não se deu somente entre os juristas. Podemos vislumbrá-la na definição que Proudhon empresta ao Direito:

"O Direito é o respeito espontaneamente experimentado e reciprocamente garantido da dignidade humana, de qualquer pessoa, em qualquer circunstância a que se encontre sujeita e a qualquer risco que se exponha a sua defesa." [1]

No devir por que passam as relações sociais, com a evolução dos tempos, iremos encontrar no direito romano a fonte de proteção legal do direito, que ora pesquisamos. Mas, inserido no campo dos denominados Direitos da Personalidade, a sua evolução histórica não poderá ser analisada fora do desenvolvimento desses últimos.

Em épocas remotas, deparamos com manifestações isoladas, diretas ou indiretas, de proteção aos direitos individuais da personalidade, mas, como afirma José Castán Tobeñas, "no una consideración sistemática de los que hoy llamamos derechos de la personalidad". Em Roma, desconhecia-se esta classe de direitos e a proteção da personalidade era assegurada pela actio injuriarum. [2] Contudo, a proteção não atingia todas as pessoas. O escravo, que não possuía a honra civil, visto que não gozava de liberdade, não tinha a qualidade jurídica de pessoa, podia suportar qualquer injúria e, só em casos extremamente graves, quando a lesão ao bem atingia indiretamente seu próprio dono, é que se configurava a existência da injúria.

Autores houve que chegaram a negar encontrar-se o germe da proteção de danos morais (entre estes o dano à honra) no direito romano. Todavia, após o estudo de Von Ihering, De L’Actio Injuriarum, a visão dos doutrinadores parece ter tomado o rumo certo no reconhecimento da reparação de dano moral, já existente entre os romanos. Esta ação, disse Ihering:

"(...) permettait au juge, ou pour mieux dire aux Récuperateurs, d’estimer librement l’injure, et fut renforcée plus tard par les dispositions de la Lex Cornelia sur les injures réelles et la violation de domicile". [3]

Ihering, ao demarcar a ação de Injúria Concreta e ação de Injúria Abstrata, estabeleceu que é fácil e simples reconhecer a diferença entre uma e outra, e enfatiza: "La personne peut être lésée, soit dans ce qu’elle est, c’est-á-dire immediatement, soit dans ce qu’elle a." Naquilo que a pessoa é, está relacionada a Actio Injuriarum, na sua função originariamente exclusiva, à qual dá o nome de Injúria Abstrata. Naquilo que a pessoa tem, relaciona-se a ação de Injúria Concreta. [4]

O que consideramos extremamente importante na obra de Ihering, para o estudo da honra, aqui proposto, é a assertiva de que a pessoa é lesada naquilo que é na ocorrência de lesões ao seu corpo, à sua liberdade e à sua honra, que constituem o centro representado pela própria pessoa, contrariamente às lesões, que dizem respeito às relações da pessoa com a coisa: propriedade, posse, detenção, direito nas coisas, direito ao uso da coisa pública e religiosa e ainda as relações com outras pessoas: obrigações e relações de família e outros direitos sem forma correspondente na sistemática romana – os denominados direitos imateriais. [5]

O conceito de Injúria amplia-se largamente entre os romanos, sendo tomado em seu sentido mais amplo e, em período mais avançado daquela legislação, podemos observar que a preocupação com a dignidade da pessoa humana torna-se objeto de proteção jurídica. Vejamos o caso da revogação da doação por ingratidão.

Na época clássica, período em que viveram grandes vultos do direito romano, como Papiniano, Paulo, Ulpiano, reafirmou-se o preceito de que a doação perfeita não podia ser revogada. Como bem historiou o professor da Universidade Católica de Milão, Biondo Biondi, havia exceção somente para o caso de ingratidão do liberto (donatário) ao seu patrão. Fora dessa hipótese, nenhuma revogação era consentida. Contra a pretensão do doador de revogar a doação por ingratidão do donatário, reagiu a legislação de Diocleciano ao ditar expressamente que a doação perfeita não se revogava mesmo que fosse ingrato aquele ao qual a coisa fora dada de presente (etiamsi parum gratus existet cui dono res dat est). [6]

Com Justiniano, a revogação da doação torna-se mais precisa e, além dos casos de atentado contra a vida do doador, inadimplemento da obrigação assumida, grave dano ocasionado dolosamente, está, ademais, a revogação por injúria grave (injuriae atroces). [7] Assim, no período da legislação pós-clássica – fase da história interna do direito romano que se encontra no período da história externa Dominato, que vai até a morte de Justiniano (565 d.C.) – deparamos com este caso especial de proteção à honra, o de ingratidão do donatário. A doação que, em princípio, fora reafirmada como perfeita e irrevogável, já admitia exceções.

Antes, no período republicano, viram-se exclusões impostas por leis (como exclusão do Senado, exclusão de dar testemunhos) e pelos pretores (das atividades processuais) para os casos de infâmia. Posteriormente, na obra legislativa de Justiniano, embora fosse generalizada a idéia de infâmia, não lhe foi dada uma conceituação precisa, permanecendo incertezas e dificuldades aos intérpretes do direito romano. Nesta época (Império), os fatos eram vistos sob outro prisma e um homem melindroso, sensível em sua honra, tinha à sua disposição a actio injuriarum. Qualquer fato, que portasse uma lesão injuriosa, era levado a julgamento. Neste ponto, observou Ihering, a extensão da actio injuriarum constitui um capítulo da história interna da civilização romana e reflete a gradação do sentimento da honra entre aquele povo. [8]

Na mesma análise histórica da injúria, outra contribuição que acolhemos para o desenvolvimento do tema aqui proposto é a do Professor Ugo Brasielo, da Pontifícia Universidade de Laterano. Nos seus relatos, afirmava a dificuldade dos intérpretes do direito romano em conceituar a Infâmia no sentido técnico e estabelecer a distinção entre infâmia de fato (diminuição ou perda da boa reputação, em virtude de um delito ou mau costume) e infâmia de direito (pena estabelecida com o fim de prevenir delito) e entre infâmia mediata e imediata das compilações de Justiniano. [9]

A infâmia imediata não era resultante de condenação alguma e decorria da situação moralmente inferior, em virtude de profissão ou atividade, que a pessoa exercia ou ainda por determinados comportamentos indecorosos. Infâmia Mediata era conseqüente de uma sentença condenatória, devido a grave delito ou por violação de determinados ofícios, como as obrigações do depositário, tutor, mandatário e fiduciário. Nesses últimos casos a nota pretoriana, ultrapassando o campo penal, considerava a necessidade de se proteger relações que tinham como suporte a confiança e cujo inadimplemento tornava-se mais grave. A Infâmia Mediata pressupunha, portanto, a existência de uma Infâmia de Fato. [10]

Acrescentava Brasielo que Savigny recusou o conceito de Infâmia de Fato por acolher apenas a Infâmia de Direito, que se fundava em regra precisa, determinada pela tradição. Nos Mores – procedimentos regulados pelos usos e costumes – é que encontrava o fundamento para admitir a existência da injúria de direito, entre os romanos. Informou que Mommsen considerava que o magistrado possuía um poder discricionário, podendo repelir o exercício de um direito ao indivíduo de péssima reputação. Este poder foi, mais tarde, limitado, e a Infâmia de Fato alcançou certa consagração jurídica, tendo sido fixados casos especiais de exclusão (como a exclusão do Senado e a proibição de representação judicial para a pessoa considerada infame). [11]

Ugo Brasielo, discordando de Savigny, sustentou não ser possível uma determinação positiva técnico-jurídica do conceito de Infâmia, dizendo, outrossim, não ser exato, como quer Mommsen, falar-se de Infâmia, pena de um delito. Reafirmou que "Dall altro lato, però, l’infamia si presenta talora come un prius, talora come una conseguenza: onde non si può negare un concetto pressuposto generali di infamia, sea pure de fato". [12]

Citando Mackeldey e Mayns, o Professor Wilson Melo da Silva, com a grande contribuição que trouxe ao estudo do Dano Moral, em sua tese O Dano Moral e sua Reparação, destacou que existiam, no direito romano, quatro categorias distintas de delitos privados: furtum, rapina, damnum injúria datum (regulado pela lei Aquília), e Injúria (regulada pela Actio Injuriarum Aestimatoria e Lex Cornelia). No caso de Injúria, esta tanto podia ser falada ou escrita (injúrias verbais) ou traduzida por ações. Tratando-se do primeiro caso (verbal), o ofendido podia dispor da Actio Injuriarum Aestimatoria. Se a injúria era efetivada por meio de ações, a Lex Cornelia poderia ser o recurso do ofendido. Nos casos de Actio Aestimatoria ou Lex Cornelia a reparação do dano consistia no pagamento de uma soma em dinheiro, estimada pela própria parte lesada e arbitrada pelo juiz. O ofendido por injúria podia, inclusive, utilizar-se de dois caminhos: ação pública (criminal), com o objetivo de imputar pena ao ofensor e ação civil, objetivando indenização.

O Professor Wilson Melo, enfocando divergências de renomados juristas quanto à origem da proteção jurídica do dano moral (no qual se insere certamente o dano à honra), após o exame das reflexões de Gabba (negativista da reparabilidade do dano moral) e Giorgio Giorgi, destacou as conclusões deste último, segundo o qual a Lex Aquilia se aplicava às ações, que objetivavam amparo do damnum injuria datum; já a Actio Aestimatoria Injuriarum e a Lex Cornelia eram o remédio legal para acudir o lesado em delito privado da Injúria. Concluiu que a reparabilidade do dano moral, entre os romanos, não era de todo desconhecida. [13]

É ainda na fonte do mestre de O Dano Moral e Sua Reparação, que buscamos as informações relativas à indenização por ofensa ao bem moral, quando destacou que, nos delitos privados, o conceito de injúria, sofrendo grande ampliação, extravasa os diminutos limites da Lei das XII Tábuas, onde a injúria referia-se tão-só aos danos de natureza corporal, passando a compreender toda ofensa intencional, dirigida à liberdade, integridade e à honra do ofendido. [14]

A nova jurisprudência romana deu à actio injuriarum uma extensão considerável, o que Ihering justificou, tendo ela como causa o apuramento e elevação do sentimento de honra, que se torna cada vez mais sensível entre os povos, à medida em que ocorre o desenvolvimento das civilizações. A jurisprudência desempenhou seu papel. Ela coloca-se a serviço do espírito da época, quer restringindo quer ampliando o direito. Para um romano antigo havia dificuldades em perceber a configuração da injúria, quando o mesmo pretendia fazer valer a existência de um crédito, que era considerado não fundado. [15]

Ainda na Roma antiga, é o próprio Ihering que relatou, no caso de ser atingido por uma bofetada, o camponês contentava-se com o pagamento de 25 asses e, até mesmo quando lhe vazassem um olho, aceitava a conciliação, em vez de utilizar a lei de Talião, o que lhe era permitido. [16]

Arrimado em Giorgi, Keller e Wening-Ingenheim, Wilson Melo chegou à seguinte conclusão:

"Dúvida não há, pois, frente à opinião desses autores, de que a Actio Injuriarum Aestimatoria fosse, entre os romanos, uma ação destinada a restaurar o dano ocasionado a alguém por qualquer injustiça da qual lhe não sobreviesse um dano material." [17]

Mário Viario historiou que a honra encerrava, no direito romano, a plena posse dos direitos civis (dignitatis illaesae status, legibus ac moribus comprobatus – o estado de dignidade ilesa comprovado pelas leis e pelos costumes) – e que, inicialmente, era tutelada pela Actio Injuriarum (ação privada), mas que, durante o Império, em decorrência do interesse público, que assim o exigia, passou a ser objeto de proteção criminal. Nos Editos dos pretores, relativos à Injúria (de convicio, de pudicitia, de injuriis) a honra não era expressamente tutelada, contudo estava implícita no convicium, "in quanto adversus bonos mores" (enquanto contrário aos bons costumes). [18]

2. A honra no direito ático

O antigo direito grego englobava sob a mesma denominação a difamação e a injúria, as quais consistiam em delito. Havia um tratamento preciso para as ofensas dirigidas por meio de palavras, quer injuriando determinada pessoa, quer atribuindo-lhe publicamente fato que lhe diminuísse a consideração moral. Verifica-se que a conceituação técnico-jurídica da injúria, entre os gregos, não era abrangente e, só em casos acentuadamente danosos, em circunstâncias agravantes, o direito ático penalizava o causador do dano. A contribuição histórica é do Professor Ugo Enrico Paoli, que enumerou os casos:

1) na pessoa verbalmente ofendida; precisamente:

a) um magistrado no exercício da sua função;

b) um morto;

2) no lugar onde é pronunciada a palavra ofensiva: santuário, tribunais, ofícios públicos ou onde se desenvolve uma procissão solene;

3) pelo caráter essencialmente grave da ofensa, como chamar alguém de homicida ou violento contra os pais ou acusá-lo de haver abandonado o escudo em guerra. Ainda em casos menos graves cabia o mencionado amparo, segundo Ugo Paoli, mas que nós consideramos atentatórios à honra, como a ofensa que consistia em censurar um simples revendedor de miudezas, em razão de seu ofício.

A permissão de atos injuriosos, exceto nos casos graves como já vimos supra, levou Platão a criticar a indulgência das leis de Atenas e a se posicionar contra elas, por meio de proposta de uma outra que reprovava a Injúria de modo amplo, absoluto. [19]

Comportava, ainda, a injúria cominação diversa, conforme se tratasse de turbamento da ordem pública (caso em que poderia haver aplicação de multa pelo magistrado – para as hipóteses previstas no n. 2 retro aludido) ou se tratasse de ação privada. A exceptio veritatis era admitida. Se a imputação era de fatos específicos, o ofensor obtinha absolvição, mediante prova de que a sua afirmação difamatória alicerçava-se em fatos verídicos. [20]

3. A visão do direito canônico

O direito canônico preocupou-se em cuidar da ofensa à honra como vetor de uma reparação material e espiritual, como também consignou alguns dispositivos que as legislações, sob a influência marcante da Igreja, acabaram por adotar. Assim é que o direito pré-codificado brasileiro, como bem inferiu o Professor Wilson Melo [21], acabou adotando o princípio da reparabilidade pelo não-cumprimento da promessa de casamento (arras esponsalícias, que se configuravam como cláusula penal), vigente no direito canônico.

Verdade é que nem mesmo o direito canônico obrigava aquele, que prometera casar-se, ao cumprimento do prometido, mas dispunha sobre a reparação dos danos e prejuízos decorrentes da não-celebração do matrimônio.

No estudo da Infâmia no direito canônico, Francesco Roberti ofereceu-nos grande contribuição: o cânone 2.293, § 2.o, do antigo Código Canônico de 1918, dispunha sobre a infâmia de direito e esta consistia em uma pena estabelecida para o clérigo e leigos, objetivando reprimir certos delitos. O cânone 2.293, § 3.o, cuidava da infâmia de fato, que significava a perda ou diminuição da boa reputação, por causa de mau comportamento ou prática de um delito.22 A infâmia de direito era aquela cujos casos estavam expressamente estabelecidos no direito comum canônico (cânone 2.293, § 2.o), e a Infâmia de Fato caracterizava-se pelo cometimento de um delito ou por costumes depravados que levavam o indivíduo a perder sua boa fama entre os fiéis probos (cânone 2.293, § 3.o). Ao se referir aos "fiéis probos", o direito canônico destacava que a boa reputação canônica distinguia-se da boa fama civil. Poderia possuir boa fama canônica aquele que não a possuía civilmente e vice-versa.

Ainda o mesmo autor supra, ao analisar os primeiros traços de punição ao infamante, mencionava que isso ocorreu, inicialmente, no Concílio Toletano XIII e XVII e que, a partir do século IX, a infâmia entrou para as fontes do direito canônico, mas só mais tarde (séculos XI e XII) este direito acolheu, de modo pleno, a pena de infâmia, buscando-a nas fontes romanas, com modificações de natureza germânica e próprias da Igreja. Aboliu-se a infâmia por violação do luto anual (ob violatum annum luctus) romana e acresceu a infâmia contra perseguidores de cardeais. O II Concílio de Trento acrescentou outros casos e a Sagrada Congregação do Concílio insistia em penalizar a infâmia dos contendores de duelo. [23]

Adotava o direito canônico a mesma distinção que o direito romano fazia para a Injúria de Fato e Injúria de Direito. Esta última podia atingir o clero e leigos e consistia numa verdadeira pena imposta para os delitos do direito comum canônico. Entre outras penalidades estavam: exclusão do exercício de função sacra; impedimento de apadrinhar nos sacramentos de batismo e crisma; de benefícios, pensão; de dar o voto nas eleições eclesiásticas e até mesmo de receber a sagrada eucaristia. [24]

Francesco Roberti enumerou outras penalidades, mas, do conjunto geral, verificamos que todas elas estavam nitidamente vinculadas à fé religiosa e à atividade administrativa da Igreja. Para garantia de que as penalidades produzissem seus efeitos, adotava-se um procedimento em que era proferida a sentença declaratória da infâmia. Como a legislação já se encontrasse um pouco mais avançada, esta pena não ultrapassava a pessoa do ofensor, todavia não se limitava a determinado prazo, só podendo ser revogada a pena infamia juris com a dispensa pela Santa Sé. As penalidades da infamia juris, conforme fosse o fato gerador, classificavam-se em infamia juris latae sententiae e infamia juris ferendae sententiae. [25]

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É ainda do elenco descrito por Francesco Roberti que extraímos esses casos:

– punidos com infamia juris latae sententiae: atirar com desprezo, subtrair ou reter com fins reprováveis, as espécies sagradas; adesão a alguma seita não católica; violação de cadáver ou sepulcro com fim de furto ou outro motivo reprovável; violências físicas praticadas contra o Sumo Pontífice romano, cardeal, ou núncio do Sumo Pontífice; a prática e o apadrinhamento de duelo; a bigamia; a condenação por delitos contra a castidade, por estupro, incesto, lenocínio, sodomia;

– punidos com infamia juris ferendae sententiae: os apóstatas, hereges, cismáticos após uma advertência que resultou ineficaz; os clérigos seculares (que participavam da vida civil) ou religiosos nos cometimentos de adultério, estupro, sodomia, bestialidade, lenocínio e incesto. [26]

A Infâmia de Fato não consistia formalmente em penalidade, mas configurava-se por uma situação de fato, consistente na perda da boa reputação, fosse decorrente de maus costumes, fosse pela prática de um delito e excluía o indivíduo dos atos importantes da Igreja, como da sagrada eucaristia, dentre outros. De regra, a pena não atingia consangüíneos e afins e sua duração se prolongava até que fosse provada a recuperação da boa reputação do indivíduo. [27]

Como visto, a boa reputação (elemento conceitual da Honra), cuja perda configurava-se como Infâmia, no direito canônico, apesar da intensa vinculação à ordem religiosa, o que se percebe, pelos elementos aqui carreados, é a exigência de uma proteção, não à dignidade da pessoa humana em si e nas suas relações com terceiros, mas sim bons costumes e com tendência e açambarcar alguns casos de ordem penal.

Na fonte do Professor Wilson Melo, na minuciosa análise elaborada sobre a reparação do dano moral, encontramos elementos do direito canônico, permissivos à afirmação da existência da reparação da ofensa a bens morais. Com efeito, o aludido mestre consignou que no cânone 2.354, § 1.o, do antigo Código existiam outros danos, tipicamente morais, geradores da obrigação de ressarcimento e consagrava a teoria da reparação dos danos morais, embora fosse resultante da condenação de um delito. Além da exclusão de todos os atos eclesiásticos, permanecia a obrigação de reparação material. Dentre os casos apontados naquele cânone estavam o rapto de pessoas de qualquer sexo, venda de um homem para escravidão ou outro fim mau, lesões físicas e violências, casos esses que se configuravam como dano moral e que se sobrepunham aos danos materiais, caso existissem. [28]

É de se salientar a nota do festejado mestre, quando se referiu à calúnia e à injúria, figuras essenciais de nossa pesquisa. Os danos daí decorrentes, observou, mandava o cânone 2.355 reparar em duas sanções: uma material e outra espiritual. Dada a importância desse cânone, entendemos necessário transcrevê-lo.

"Si quis non re, sed verbis vel scriptis vel alia quavis ratione injuriarum cuiquam irrogaverit vel eius bonam famam laesserit, non solum potest ad norman can. 1618, 1938, cogi ad debitam satisfactionem praestandam dammaque reparanda, sed praesterea congruis poenis ac poenitentiis puniri, non exclusa, si de clericis agatur et casus ferat, suspensione aut remotione ab offício et beneficio."

"Se alguém, não com atos, mas por meio de palavras ou escritos, ou de qualquer outra forma, injuria um terceiro, ou o prejudica em sua boa fama ou reputação, não só se obriga, nos teores dos cânones 1.618 e 1.938, a dar a devida satisfação e a reparar os danos, como também se torna passível de penas e penitências proporcionadas, inclusive se se trata de clérigo a quem, se for o caso, se deve impor a suspensão ou a privação de ofício e benefício." [29]

No cânone reproduzido, a previsão era para as injúrias verbais e, quanto às reais, havia regra especial, contida no cânone 2.343, com destinação exclusiva ao clero e religiosas quando fossem vítimas da injúria real. E, finalmente, preceituava o direito canônico a reparação civil, conforme cânone 2.210:

"1.o) Ex delicto oritur:

1.o) actio poenalis ad poenam declarandam vel infligendam et ad satisfactionem petendam;" (ação penal de declaração de pena ou imposição e pedido de satisfação);

"2.o) actio civilis ad reparanda damna, si cui delictum damnum intulerit." [30] (ação civil para exigir reparação de danos, se com o delito prejudicou-se alguém).

O mencionado cânone encontrava-se inserido no Título II, que tratava da imputabilidade do delito, das causas que agravavam ou atenuavam sua imputabilidade e dos efeitos jurídicos do delito, pertencente ao Livro Quinto Dos Delitos e das Penas.

Acrescentou Mario Falco, professor da Universidade de Milão, na sua Introduzione allo Studio del Codex Juris Canonici, que, sobre a capacidade jurídica, perante a Igreja, adquirida com o batismo, outras causas exerciam influência sobre a mesma, seja modificando-a seja limitando-a, como as causas naturais e legais. Nestas últimas referia-se, dentre outras, à pena e à condenação penal e à infâmia. O interdito, a suspensão e a infâmia de direito consistiam na privação de determinados direitos, enquanto a pena de excomunhão influía sobre a capacidade jurídica e a capacidade de agir. A infâmia de fato produzia impedimento à ordenação, "exclude dalla dignità, dai benefici, dagli uffici eclesiastici e dal compimiento degli atti legittimi (canone 2.294 § 2.o, 2.256 n. 2), senza però rendere nulli gli atti compiuti contro il divieto." [31]

Além das proteções imanentes à própria atividade da Igreja, esta estabelecia normas de direitos reais e obrigacionais, dilatava-se para o campo das normas de direito privado, cominava pena para transgressores de bens à vida, fama dos fiéis honestos, garantindo-lhes meios coercitivos, através de seus tribunais, para os direitos à vida, integridade pessoal, honra, entre outros. [32]

Desta forma, verificamos a preocupação com os bens espirituais da pessoa humana. A Igreja tinha o poder de jurisdição e governo declarados em cânone, cuja instituição se assentava em bens de ordem religiosa. Mas nem por isso deixou de proteger o bem da honra, conforme extraímos das contribuições de Mario Falco e Wilson Melo.

A visão canônica era mais aguda e reconhecia que essa proteção era necessária para garantir a satisfação espiritual das pessoas, mesmo que tivesse liames religiosos.

Se antes a condenação da infâmia assentava-se num dever de honestidade e honradez, que o indivíduo devia cumprir, diante da comunidade religiosa e de seus concidadãos, sob pena de menosprezo, hoje a conotação dada é para uma honra/direito, que o indivíduo pode exigir diante de terceiros.

O direito canônico atual (Código de 27.11.1983) segue pensamento da doutrina jurídica moderna. Não deixa de enunciar penalidades para clero e leigos, uma vez que ambos formam o conjunto "povo de Deus". Entretanto utiliza expressões e figuras mais amenas como "advertir", "repreender", evitando os nomes utilizados no Código anterior, como "infâmia", "degradação", os quais causariam espanto aos leitores contemporâneos. O cânone 220, inserido no Título I (Obrigações e Deveres dos Fiéis) do Livro II (Do Povo de Deus), na mais acurada doutrina, determina:

"A ninguém é lícito lesar ilegitimamente a boa fama de que alguém goza, nem violar o direito de cada pessoa de defender a própria intimidade."

A reparação do dano causado por qualquer delito está prevista no cânone 1.729, que adota a "constituição de parte civil" no processo penal.

4. Idade média e idade moderna

O cristianismo, é certo, exerceu influência marcante ao assentar os fundamentos morais dos direitos individuais da personalidade. Como bem frisou José Castán Tobeñas, arrimado no que dispôs Luno Peña, o cristianismo

"(...) representa y constituye la más solemne proclamación de los derechos de la personalidad humana, mediante la idea de una verdadera fraternidad universal que implica la igualdad de derechos y la inviolabilidad de la persona en todas sus prerrogativas, individuales y sociales".33

E, mais ainda, dando destaque ao indivíduo como preocupação pilar do direito, ao enunciar que é no homem e não no Estado ou outra entidade que se radica o fim do Direito, como bem formulou Marcel Waline. [34]

Do ensino de Castán Tobeñas continuamos a trazer dados relativos à época que antecedeu a grande tomada de consciência, a preocupação doutrinária para os aqui denominados direitos da personalidade. Ressaltou o autor que, mesmo com a concepção jurídica da Idade Média, fundada na consideração do Direito como ordenação total da vida, durante séculos não houve uma preocupação maior com os direitos naturais. [35]

Foi com o Renascimento, movimento artístico e científico dos séculos XV e XVI, época em que se verificou a necessidade de se afirmar a independência das pessoas e a intangibilidade dos Direitos Humanos, que apareceram as construções jurídicas que contêm essas situações.

Chamando atenção para a conclusão de que os Direitos da Personalidade não são uma criação recente, Giovanni Pugliese destacou a importância da obra De Jure Civile di Donello, que se assentava sobre a distinção entre as duas espécies de Nostrum: in persona cuiusque (em cada pessoa) e in rebus externis, ou seja, nas coisas externas. O Nostrum relativo à pessoa de cada indivíduo se subdividia em quatro elementos: vita, incolumitas corporis, libertas, existimatis. Concluía o autor que muitos pontos da doutrina atual dos direitos em tela já eram fixados claramente no século XVI. [36]

Castán Tobeñas também destacava a importância de outra obra Tractatus de Potestate in se Ipsum, em 1604, do espanhol Baltasar Gómez de Amescúa, em que era defendida a tese de que todo homem, por lei da natureza ou preceitos de Direito Civil, canônico ou real, tem uma potestas in se ipsum.37 Esta primeira monografia sobre a matéria, contendo aquela preocupação, observou Frederico de Castro y Bravo,

"tiene como principal o verdadera finalidad, proclamar el princípio liberal: Todo le está permitido al hombre, respectivo a sí mismo, excepto lo que le está expresamente prohibido por el Derecho". [38]

Outro destaque dado por Castán Tobeñas é a Escola de Direito Natural. Aqui não se trata mais do reconhecimento, mas sim da exaltação dos denominados direitos naturais ou inatos ou ainda essenciais, fundamentais, absolutos, ocorrida a partir do século XVIII. Para esta escola, estes direitos são conaturais ao homem, nascem com ele, correspondem à sua natureza, estão unidos indissoluvelmente ao mesmo e preexistem ao seu reconhecimento pelo Estado. [39]

O certo é que, na Idade Média, os direitos da personalidade permaneceram no olvido e houve apenas o seu reconhecimento dentro de uma concepção universal do Direito. No Renascimento e séculos seguintes sobressai-se a concepção da pessoa humana, individual e separada da coletividade. Mas, sobre a primazia do elemento individual, chamava atenção Tobeñas:

"Ojala acierte nuestra doctrina a construir una teoría de los derechos de la personalidad, fundada en concepciones armónicas que logren la compenetración de las ideas de comunidad y de persona en un orden de valores morales donde ha de tener mucho juego el principio del bien común y que, dejando a salvo la autonomía del hombre como ser de fines sepa integrar al individuo dentro de organismos sociales que, sin anularlo, le protejan." [40]

5. Revolução francesa – domínio do direito público

A exaltação desses direitos naturais (inatos) transformou-se em reivindicação de caráter político, que se incorpora ao domínio do direito público, culminando com o movimento revolucionário francês, que se alicerçou na doutrina dos direitos do homem e do cidadão. A Assembléia Constituinte Francesa, em agosto (20-26) de 1789, consagrou a idéia dos direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem. O preâmbulo dessa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão firma:

"Les represéntants du peuple français, constitués en Assemblée Nationale, considérant que l’ignorance, l’oubli ou le mépris des droits de l’homme sont les seuls causes des malheurs publics et de la corruption des gouvernements, ont résolu d’exposer, dans une Déclaration solennelle, les droits naturels, inaliénables et sacrés de l’homme..."

Destarte, ao proclamá-los, com caráter genérico e vago, a Declaração deixou ao legislador uma grande latitude para definição dos contornos e conseqüências dos tão festejados direitos. A célebre declaração destacou os direitos à igualdade, liberdade, segurança, propriedade e resistência à opressão. Isto se explica pelo fato de que a Revolução Francesa pretendeu acabar com o opressor sistema feudal e, com isto, fortalecer o indivíduo perante o Estado. O direito à honra não fora mencionado, como ainda não o é em várias legislações. Até então, cuidou-se da proteção dos direitos do homem, ou seja, relações de direito público, que são protegidas contra o poder e o arbítrio estatal.

Embora encerrasse o triunfo da escola de Direito Natural (os direitos da pessoa não são criados pelo Estado, mas reconhecidos por ele), este resultou passageiro, por oposição imediata da escola histórica, para a qual a idéia dos direitos do homem estava assente no progresso revelado pela experiência. Todavia, ocorreu que, àqueles direitos reconhecidos como pre-existentes ao Estado, com a evolução deste, foi-lhes dada força jurídico-positiva, que atribui ao indivíduo, pelo simples fato da existência, certos direitos subjetivos, que podem ser considerados inatos.

Com a oposição feita pela escola histórica e pelo positivismo jurídico, foi rechaçada a idéia desses direitos inatos, o que fez com que pandectistas e civilistas sentissem a necessidade de dar-lhes outro enfoque e vestiduras, levando-os para o campo do direito privado,

"(...) admitindo la existencia de unos derechos que se ejercitan sobre la propia persona o sus cualidades o atributos, asegurando el goce de nuestros bienes internos, de nuestras energías físicas y espirituales. Tal es el origen de la concepción de los derechos de la personalidad como una nueva especie de derechos privados". [41]

Em suma, os direitos da personalidade, embora fossem uma categoria desconhecida dos ordenamentos antigos e constituam uma elaboração dogmática do século XX, as idéias nas quais se alicerçam são de muito tempo conhecidas. Vimos que, no direito romano, a sua proteção, embora limitada, era feita por meio da Actio Injuriarum e Lex Cornelia. O Cristianismo, ao pregar a igualdade dos homens, deu-lhes suporte moral. A filosofia escolástica proporcionou-lhes o suporte técnico, ao considerar que o homem possui bens em sua pessoa, além dos bens externos. Mas essas idéias, conforme observou José Madridejos Sarasola, escassa influência tiveram sobre os civilistas, em virtude do método da glosa e do comentário, que se ligava aos textos do direito justiniano. [42]

Novo rumo foi dado à doutrina pela escola jusnaturalista, ao considerar a existência de direitos privados naturais pertencentes ao homem, independentemente de tutela jurídica e do Estado. Assim considerados, tais direitos tinham caráter político.

Esta conotação e a derrocada do jusnaturalismo tiveram a reação civilista, que passou a considerá-los pertencentes ao direito público. Só com a doutrina do século XX é que se dissipou a confusão gerada entre os direitos da personalidade e os direitos do homem, ou seja, entre a proteção da personalidade no aspecto civil e os direitos do homem de caráter público, encontrando-se como ferrenhos defensores Ravá – 1900, Fadda y Bensa – 1902, Gierke, Degni – 1939 e De Cupis – 1939. [43]

Em síntese, os autores mencionam como alicerces da teoria dos direitos da personalidade o Cristianismo, a Escola de Direito Natural e o Iluminismo, que valorizaram o homem diante do Estado.

6. Séculos XIX e XX – nova espécie de direitos privados

O grande avanço, a conscientização dos civilistas com esta espécie de direitos ocorreu nesta época. A partir de então, os mencionados direitos constituem a grande missão do direito civil; farta literatura encontra-se à disposição dos estudiosos do tema, mas a teoria destes ainda não se mostrou uniforme, havendo divergência de opiniões quanto ao seu conceito, natureza, conteúdo e extensão.

Apesar das dificuldades que se interpõem no caminho dos povos, estes continuam a evoluir em vários aspectos. Hodiernamente, é ponto pacífico entre os doutrinadores que o respeito à personalidade humana, em suas manifestações tanto físicas quanto espirituais, ganhou acentuado relevo e tem-se espalhado numa grande área de aplicação. E este respeito torna-se mais necessário em decorrência da complexidade da vida moderna, cujos incrementos científicos e técnicos propiciam inúmeras ocasiões de lesão aos direitos da personalidade.

Giuliano Vassali chamava atenção a este propósito:

"Allo stato e alla comunità internazionale, le forme sino ad oggi più evolute o almeno più organizzate di vita umana, compete ancora una volta il compito di disciplinare l’uso dei progressi tecnico entre rigorosi schemi giuridici." [44]

Cresceu de forma significativa, no século XX, o movimento em favor do reconhecimento legislativo dos direitos da personalidade. Em Estocolmo, a Conferência dos juristas nórdicos (22 e 23.05.1967), em seu preâmbulo, ditava que a vida privada dos indivíduos deve ser inviolável e a sua proteção estender-se a "todo ataque à integridade física ou mental, à liberdade moral ou intelectual e também à Honra e reputação dos indivíduos". [45]

Um pouco mais tarde, em 1969, o IV Congresso Nacional de Direito Civil, realizado em Córdoba, recomendou a incorporação na legislação espanhola dos direitos da personalidade.

Estas recomendações encontravam sua razão de ser na necessidade de existência de norma positiva, para assegurar ao lesado o direito de ação. A respeito, comentou Ordoqui Castilla:

"En la actualidad el descubrimiento no está por cierto en constatar la existencia de los derechos de la personalidad sino en advertir, mas bien, el verdadero alcance y significación que los mismos tienen, y la necesidad de que el ordenamiento jurídico brinde instrumentos eficaces que posibiliten una tutela efectiva de los mismos."

Buscou subsídio no que assinalara Narvaja em sua obra La nación tiene Código Civil, 1869:

"Ninguna Constitución se basta a sí misma; ninguna se ejecuta por sí sola. Generalmente es un simple código de principios que debe ser la base de otras leyes destinadas a poner en ejecución esos principios." [46]

7. Necessidade de tutela específica

Durante séculos a atenção dos juristas voltou-se para os bens que a pessoa possuía fora de seu ser, que pareceram ser os únicos objetos de seu direito, e, só na era atual esta preocupação voltou-se para seus bens interiores, atingindo seu ponto culminante no século XX. De Cupis advertia para a necessidade da tutela civil desses bens e vários outros autores seguiram-no. "La persona è al centro del diritto; e il diritto civile è il suo primo centro d’irradiazione." [47]

Nas legislações antigas, a proteção da honra dava-se instrumentalizada pelo Direito Penal. Jorge S. Antoni lecionou que a honra fora reconhecida e objeto de proteção legal desde épocas imemoráveis e que, no campo penal, por meio das figuras da injúria e calúnia, era feita a sua tutela. No campo do Direito do Trabalho e do Direito Comercial existe uma proteção especial da honra do empregado e do empregador, justificando ou não uma despedida/demissão indenizável. Do ponto de vista civil, a honra vinha sendo protegida, porém, de modo geral, vinculada ao Direito Penal, nas figuras da injúria e da calúnia, pois não existia norma geral de direito privado que cuidasse deste amparo; em alguns casos, além da sanção criminal, havia ensejo à indenização. [48]

Esta vinculação acarretava uma proteção limitada, a exemplo do que ocorreu na legislação italiana, visto que há casos de lesão à honra que se situam fora dos pressupostos penais da injúria, calúnia, e difamação, isto é, além da configuração delitual.

A sua completa colocação sob normalística civil torna-se imprescindível, preservando a pessoa de invasões ilícitas de outrem, assegurando a expansão da individualidade espiritual do homem.

Sob a normalística constitucional, os bens espirituais são salvaguardados por princípios elementares, visando, em geral, à liberdade, segurança etc., mas, comumente, atendendo à ordem político-social. Nas relações entre as pessoas, a proteção ao bem da honra foi feita de maneira acanhada, não recebendo um tratamento sistemático e específico pelas legislações. No decorrer dos tempos, alguns aspectos parciais da honra foram protegidos, dependendo da evolução moral dos povos. O exemplo disto está no Código brasileiro, de 1916, cujo artigo 1.548 tutelava a honra da mulher. Só com o advento da Constituição Brasileira de 1988 foi que esse direito recebeu proteção inquestionável (art. 5.o, X). Na última década, a jurisprudência desempnhou papel vital, elaborando a referida tutela.

A proteção prevista parcialmente não satisfaz. Arrimado em Gangi, Castán Tobeñas afirmava que, no campo civil, a honra atinge uma grande amplitude. Os autores costumam considerar que ela abraça "todas las manifestaciones del sentimiento de estima de la persona (honor civil, honor comercial, honor científico, literario, artístico, profesional, político etc.)", permitindo ao ofendido a ação de ressarcimento dos danos, como também a cessão do ato danoso ou supressão do meio de instrumentalização do ato. [49]

No seu reconhecimento pelo direito privado, passo importante foi dado pela legislação espanhola. O Fuero de los Españoles, de 1945, em seu artigo 4.o, reconhece que todo cidadão tem direito à sua honra não só pessoal, mas ainda familiar, e qualquer ultraje, em qualquer situação, acarreta responsabilidade. Complementado pelo que dispõe o artigo 1.902 do Código Civil espanhol, não há dúvida de que, naquele ordenamento jurídico, a tutela da honra seja independente da penal, podendo receber aplicação além dos limites desta e a perseguição do dano não patrimonial. Acrescente-se a essas disposições a Lei Orgânica n. 1 de 05.05.1982, que dispõe sobre a proteção civil da honra, da intimidade e da própria imagem.

A jurisprudência espanhola do primeiro quarto do século XX não deixou por menos. Famosa sentença de 06.12.1912 cuidou de proteger a honra da mulher; sentença de 12.03.1928 reiterava que se tratava de justiça e eqüidade reparar prejuízos relativos à honra, principalmente se se tratasse de honra da mulher; outra decisão, de 14.12.1917, considerava a honra profissional do médico; em 31.03.1930, a decisão era a favor da reparação de danos ocasionados ao crédito e boa fama do comerciante; mais tarde, em 25.06.1945, outra decisão confirmava a indenização de atentados à honra mercantil. Esta última anunciava que o dano moral poderia ser estimado independentemente daqueles de natureza material. [50]

Além dos casos mencionados acima, Tobeñas referiu-se à clássica ação de jactância (Lei Hipotecária espanhola), oriunda da doutrina dos glosadores, cuja finalidade principal era a proteção do crédito e reputação contra difamações. A legislação das Partidas (Lei 46 da Partida III) dizia que o ofendido por palavras, maldizeres, podia requerer a prova daquelas alegações em juízo. Embora não se referisse à indenização, permitia, além da prova da verdade, que o ofensor fizesse emenda. Após a determinação do juiz para que o ofensor comparecesse em juízo para demandar, e este não comparecendo, a questão era considerada coisa julgada e nem mesmo terceiros poderiam referir-se mais àqueles fatos difamantes. [51]

Apesar dos casos esparsos de tutela da honra, esta não recebeu, por sua vez, na maioria das legislações, o tratamento legal, norma geral definidora e abrangente, do qual necessitava. Não é possível que as pessoas continuem na sua marcha progressiva – aduzia Cifuentes – espiritual, estética e moral, que sustentem um valor ético sem manchas, que mantenham a paz e a dignidade e que a circulação de riquezas e bem-estar econômico se consolidem, se ainda não existe a completa tutela da honra (da auto-estima e boa fama). As arquetípicas construções da injúria e calúnia não são suficientes. [52]

A proteção civil da honra, nas legislações, deu-se, até há pouco, por meio de algumas disposições específicas, com previsão de determinados casos, o que permite afirmar a existência desse direito subjetivo e, para casos que extrapolam a figuração da calúnia e injúria, tem-se utilizado a analogia para uma proteção mais completa. No Direito Civil brasileiro, apesar de inexistir norma geral abrangente, reconhecedora de total proteção da honra, o artigo 1.547 do estatuto anterior, no capítulo que cuidava da liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos, determinava reparação do dano causado ao ofendido por injúria ou calúnia. Não fosse possível a prova do prejuízo material, haveria o pagamento em dobro da multa, em grau máximo, da pena criminal respectiva.

A utilização da analogia fez-se necessária. Tecendo considerações sobre as legislações argentina e italiana e, na esteira de De Cupis, Cifuentes apontou a falta de norma expressa e geral, e acrescentava:

"Si para algunas hipóteses la ley ha proveído al honor de una tutela autónoma, lo que se explica por su carácter y exigencias particulares, ello no es excepcional ni excluye dicha analogía." [53]

Não resta dúvida, entre os pouquíssimos autores que abordaram o presente tema, de que o tratamento da honra, na esfera civil, ainda merece uma melhor guarida, desvinculado da legislação penal. Esta dependência aconteceu em algumas legislações, como no antigo Código Civil português, BGB, Código Civil italiano etc. Sobre o direito português, comentou Cunha Gonçalves:

"A proteção do direito de honra não está, porém, eficazmente organizada nas leis portuguesas, sobretudo no concernente às compensações pecuniárias e à rapidez dos litígios." [54]

Quanto ao direito alemão, a jurisprudência só reconhecia esta proteção dentro dos limites do § 823, II, do BGB e das normas especiais de proteção (§ 185 et seq. do Código Penal e § 824 BGB).

No tocante à legislação argentina (antiga), o artigo 1.078 determinava: "Se el hecho fuese un delito del derecho criminal, la obligación que de él nace no solo comprende la indemnización...". Entretanto, a modificação trazida ao aludido artigo, pela Lei n. 17.711/68, demonstrou a preocupação, no âmbito privado, com os danos extrapatrimoniais, independentemente de vinculação ao direito criminal.

Embora reconhesse não haver dúvida quanto à tutela desses bens espirituais no direito privado, Frederico Castro Y Bravo, ao chamar atenção para esta proteção civil, lembrou que, apesar de constituírem um estudo recente, este dava-se em ritmo crescente, eis que as previsões penais são insuficientes e também devido ao caráter mais programático que eficaz das declarações de direitos do homem.

"De ahi, que la conciencia social haya sentido la necesidad de que se vivifique y acreciente la sanción civil, mediante la generalización de las indemnizaciones pecuniarias de los daños y perjuicios inferidos a tales bienes." [55]

Tratando especificamente da honra, Santos Cifuentes enfocou que este é um dos principais bens espirituais do homem, que o coloca dentro de seus mais preciosos dotes. É uma qualidade moral, que pode ser lesada ou diminuída, mas que o homem defende com a mesma força de quem se encontra entre a vida e a morte. [56]

8. Omissão do direito civil

Como já foi visto, a evolução da teoria dos direitos da personalidade teve suas bases no Direito Público, com as declarações de natureza política, que irromperam a partir do século XVIII. De Cupis, como vários autores, alertou que nem sempre foram formuladas regras jurídicas expressas a respeito desses direitos. Os códigos civis que sucederam essas declarações não deram aos mencionados direitos a devida proteção, por meio de normas específicas. O primeiro deles, o Código Napoleão, fruto da revolução, imbuído de idéias individualistas, não chegou a prescrever expressamente uma disciplina particular para os direitos da personalidade. [57]

Este código foi cognominado de "Código dos ricos", em virtude de sua preocupação com os bens materiais. Ordoqui Castilla acentuava que, apesar de o mundo moderno proclamar a liberdade e igualdade dos homens, não se preocupou com a pessoa, centralizando a atenção do direito privado na regulação da livre circulação dos bens econômicos. Citava a advertência de Perau, que reconhecia a necessidade de modificação do Código Napoleônico, em relação aos direitos da personalidade, a fim de que este não mais recebesse o estigma de "Código dos bens". [58]

O artigo 1.382 do Código Civil francês, que regula a reparação do dano, foi criticado pela sua má redação. Dentre outros, expressou-se Julliot de la Morandière que, em relação à técnica atual, o Código Civil francês é mal redigido e que em 1804 o legislador não teve preocupação com a personalidade nas relações entre indivíduos, e a proteção da mesma se dava apenas contra o Estado. [59]

Só no terceiro quartel do século XX, é que a Comissão de Reforma do Código Civil francês aprovou um projeto intitulado "Os direitos da personalidade", contendo 11 artigos e publicado em 1950-1951, mas que até o final da década de 1990 não chegou a se transformar em lei. Nas décadas de 1970 a 1990, alguns direitos da personalidade foram inseridos, por leis, mas não houve tratamento sistemático.

Em brilhante tese apresentada para o concurso de professor titular do Departamento de Direito e Processo Civil e Comercial da Faculdade de Direito da UFMG, o Professor Milton Fernandes apontou a falha do Direito Civil quanto à proteção dos direitos da personalidade e registra:

"O excepcional destaque atribuído à matéria pelos publicistas contribuiu para que os privatistas a considerassem, nesta fase, exclusiva do direito constitucional, administrativo ou penal. Assim despreocupados, não se sentiram no dever de estudá-la, contribuindo para seu aprimoramento." [60]

Criticando a nota publicada pelo Diário El Dia (15.07.1984) do comentário do Dr. Eduardo Vaz Ferreira, a respeito da Comissão Revisora do Código Civil de Montevidéu, Ordoqui Castilla afirmou que não bastava se conformar com a proteção genérica dada pela Constituição da Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição da República, mesmo sabendo-se que esta é de ordem hierárquica superior. Estas encerram princípios que constituem a base de outras leis, destinadas à execução daqueles. [61]

Alguns anos depois, entrava em vigor o Código Civil italiano (1865) e seguia os mesmos rumos do Código Civil francês, recebendo dos doutrinadores a crítica por conter, no artigo 1.151, previsão genérica da ressarcibilidade do dano causado por ato ilícito.

O BGB, importante codificação que entrou em vigor ao raiar do século XX, não ficou a salvo das censuras, por conter regulamentação casuística sobre os direitos da personalidade, não formulando tratamento geral, considerando-se principalmente o avanço da doutrina neste sentido. O parágrafo 823 previu a proteção do direito ao nome, à vida, ao corpo, à saúde e à liberdade.

Mesmo com a bandeira de Gierke e Köhler, no final do século XIX, a favor de um direito geral da personalidade, após a entrada em vigor do BGB, o Tribunal do Império decidiu que não havia, no sistema positivo do direito civil alemão, o reconhecimento de um direito subjetivo geral da personalidade. [62] A proteção dos diversos direitos da personalidade, não mencionados na lei civil, vinha sendo feita sob normalística penal.

Limongi França reconhecia que, a despeito do avanço doutrinário, esses Direitos não receberam, nas legislações dos povos cultos, um grau de evolução que pudesse ser considerado definitivo. A primeira lei, segundo noticiou, a tratar especificamente de um direito privado da personalidade, foi a lei Romena, de 18.03.1895, cuidando do direito ao nome. Mesmo assim, os direitos da personalidade não receberam um tratamento geral. [63] Podemos ainda citar a lei belga, de 1886, sobre direito do autor.

O Código Civil português de 1867 pecou pela mesma ausência de proteção geral dos direitos da personalidade. Regulava especificamente alguns direitos, como a liberdade de associação, existência, apropriação e defesa (arts. 359 et seq.).

Nestas deficiências incorreram posteriores legislações européias. Só com o advento do Código Civil italiano de 1942, onde a disciplina desses direitos recebeu certa sistematização, é que as legislações subseqüentes passaram a dar aos direitos da personalidade um melhor tratamento, como se deu com o atual código civil brasileiro.

9. Instrumentos internacionais de proteção à honra

Não é opinião unânime, mas autores houve que sustentaram serem os direitos da personalidade os mesmos direitos do homem. À parte esta divergência doutrinária, o certo é que os aludidos direitos constituíram preocupação jurídica a partir da proclamação dos direitos do homem pela Revolução Francesa. Esta tomada de consciência, observou Roger Nerson, "partie du droit public avec les Déclarations des Droits de l’Homme, s’étend maintenant au droit privée" (omissis). [64] Seguiu após isto um percurso de evolução doutrinária e jurisprudencial. No século XX, após as aberrações cometidas em nome do nazismo, levantou-se a preocupação de proteger a pessoa humana. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em resolução da III sessão ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas (10.12.1948, assinada pelo brasil em 10.12.48), reafirmando, em seu preâmbulo, a preocupação com o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana, proclamou em seu artigo 12:

"Ninguém será sujeito a interferência, na sua vida privada, na de sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação.

Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques."

Naquela mesma época, a declaração americana dos direitos e deveres do homem, aprovada na ix conferência internacional americana, em bogotá, em abril de 1948, dava ampla proteção à honra:

" Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra os ataques abusivos à sua honra, à sua reputação e à sua vida particular e familiar".

A Terceira Convenção de Genebra, relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra, de 12.08.49, que entrou em vigor, na ordem internacional, em 21.10.50, preocupou-se com a matéria, no art. 14:

"Os prisioneiros de guerra têm direito, em todas as circunstâncias, ao respeito de sua pessoa e da sua honra"

A Convenção Européia dos Direitos do Homem, elaborada pelos países interligados economicamente pelo Mercado Comum e por ideais filosóficos cristãos (aprovada em Roma, em 04.11.1950), não trata em especial do bem da honra, mas seu artigo 8.o refere-se ao "direito ao respeito à vida privada e familiar".

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia Geral da ONU, em 16.12.1966, e ratificado pelo Brasil, em 24.01.1992, contém, em seu artigo 17, reafirmação da proteção da honra:

"§ 1º Ninguém será objeto de imiscuições arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, da sua família, no seu domicílio ou da sua correspondência nem de atentados ilegais à sua honra e da sua reputação.

§ 2º Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais imiscuições ou de tais atentados."

Precisa a observação de Jacques Velu: no que concerne à honra, o texto desse artigo 17 é mais extenso que o do artigo 8.o da Convenção Europeia, uma vez que cobre o domínio da vida pública e privada do indivíduo. [65]

Em âmbito mais restrito, a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, realizada em São José da Costa Rica, em 22.11.1969, ratificada pelo Brasil, em 25.09.1992, (Decreto n. 678, de 06.11.1992), expressa em seu artigo 5º, § 1.o: "Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral."

E, mais incisivo, o seu artigo 11:

"Proteção da honra e da dignidade –

§ 1.o Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

§ 2.o Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

§ 3.o Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas."

Prevê, ademais, meios de proteção desse direito, contidos no artigo 14:

"Direito de retificação ou resposta:

§ 1.o Toda pessoa atingida por informações inexatas ou ofensivas emitidas em seu prejuízo por meios de difusão legalmente regulamentados e que se dirijam ao público em geral, tem direito a fazer, pelo mesmo órgão de difusão, sua retificação ou resposta, nas condições que estabeleça a lei.

§ 2.o Em nenhum caso a retificação ou a resposta eximirão das outras responsabilidades legais em que se houver.

§ 3.o Para a efetiva proteção da honra e da reputação, toda publicação ou empresa jornalística, cinematográfica, de rádio ou televisão deve ter uma pessoa responsável que não seja protegida por imunidades nem goze de foro especial."

10. O papel da jurisprudência

É inegável o reconhecimento da importância que a jurisprudência teve durante a evolução do direito à honra, como dos demais direitos da personalidade. Não temos uma notícia das primeiras decisões dos Tribunais, atinentes à tutela da honra, no sentido do reconhecimento desta, independentemente das configurações penais. De René Ariel Dotti trazemos um dos clássicos casos da literatura forense, que demonstra a lesão da honra e assegura a autonomia desta em relação ao direito da vida privada. Em 1856, o editor Perrotin publicou as memórias póstumas do Marechal Marmont, Duque de Raguse, cognominado "traidor de Essonnes", devido ao seu comportamento à época dos combates que antecederam a queda de Napoleão, em 1814. O referido marechal afirmava, no tomo VI, que o príncipe Eugênio, vice-rei da Itália, desobedecera às ordens de Napoleão, o que constituíra uma das causas determinadoras da derrota do exército francês. As filhas do príncipe solicitaram ao editor Perrotin a publicação de documentos destinados a rechaçar aquela acusação. Mediante a negativa deste, as sucessoras recorreram à justiça. Não pediram a destruição da obra nem a supressão dos atos narrados, que atentavam contra a memória do pai. Exigiram apenas o direito de publicação de documentos que rechaçavam aqueles fatos. O caso ganhou enorme notoriedade, uma vez que reinava na França, àquela época, Napoleão III, sobrinho do príncipe Eugênio. Os juízes acolheram a postulação das autoras, determinando a inserção da documentação por elas apresentada no final do VI volume. [66]

Um caso bastante lembrado pelos autores, já ocorrido no século XX, é o referente ao filme Juventude Perdida, em que vinha mencionado como exemplo de delinqüência juvenil a "Banda del Barone Campagna" (Foro Italiano, 1949, I, 506). O filme narra episódios acontecidos, em decorrência das mudanças sociais e éticas provocadas pela Segunda Guerra Mundial, que influenciaram o comportamento psicológico dos jovens italianos. Estes passaram a organizar-se em bandos, mesmo aqueles pertencentes à burguesia, que se dedicaram a furtos e outras atividades ilícitas. Fazia parte de um desses grupos Bruno Campagna, que teve trágico fim ao fugir da prisão. O Barão de Campagna, pai do jovem, alegou, em juízo, dupla violação de seus direitos: primeiro, a abusiva menção de seu nome patronímico na frase: La banda del barone Campagna a Napoli; segundo, a reprodução de fatos relativos à morte de seu filho; requerendo, para tanto, a cessação do ato lesivo e ressarcimento de danos já sofridos. Alegara que o episódio poderia acarretar-lhe descrédito e queda de prestígio familiar. O Tribunal de Nápolis, contudo, em sentença de 26.01.1949, recusou o fundamento da ação. [67] Segundo informações de Renato Corrado, a corte justificou sua decisão, observando que a menção da façanha criminal de determinada pessoa, diante do direito de informação, não era considerada injusta, principalmente quando se trata de fatos que deixaram profundas impressões na opinião pública. [68] Os juristas dividiram-se acerca desta decisão. Para De Cupis houve, no caso, ao usar-se genericamente o nome Campagna um atentado direto à honra familiar e gentílica, [69] ao que rebateu Renato Corrado, alegando que a sociedade Lux exercitou seu direito de informação e houve, no filme, referência a apenas um membro da família e não à linhagem ou à família em seu contexto. [70]

Embora a decisão do Tribunal não tivesse acolhido o pedido de proteção da honra, o presente caso bem demonstra, como já se sentia à época, a necessidade de proteção jurídica específica e autônoma desse bem da personalidade e permitiu melhor estudo entre os juristas acerca do direito à honra, ao nome e direito de informação.

Outro episódio bastante publicado é o da célebre Decisão New York Times, do qual nos deu notícia Orlando Soares, [71] e que serviu de orientação para outras decisões de casos análogos, na jurisprudência americana. Em 29.03.1960, o aludido jornal publicou matéria paga, em que eram solicitados fundos para a defesa do líder negro Martin Luther King, que se encontrava preso, sob acusação de sonegação fiscal, pelo estado do Alabama. Esta nota censurava a política de Montgomery, que cercara o campus da universidade negra, no intuito de obstar a marcha dos estudantes em favor dos direitos cívicos e de impedi-los de chegar ao restaurante universitário. Acusava a polícia de ter organizado um atentado contra a residência do líder negro e de o haver preso sete vezes. Embora a nota não mencionasse nenhum nome, cinco personalidades (chefe de polícia, governador do estado, prefeito etc.) acionaram o jornal, reclamando perdas e danos, pleiteando somas que variavam de 500.000 a 1 milhão de dólares. O julgamento em Alabama acolheu a ação, condenando o New York Times. Em apelação, a Suprema Corte americana, em março de 1964, declarou:

"As garantias constitucionais de liberdade de palavra e de imprensa precisam de uma decisão federal que proíba a um funcionário público pedir indenização por uma falsidade difamatória à sua conduta oficial, até que prove que a declaração foi feita com efetiva malícia, isto é, com o conhecimento de que era falsa ou não." [72]

Acolhendo ou não os casos levados a seu julgamento, o certo é que a jurisprudência, com o auxílio de normas constitucionais, construiu a noção ampla, que serve de fundamento à proteção dos direitos da personalidade, que não são previstos especificamente em muitas legislações privadas, como no caso do direito à honra.

Caminhando com a doutrina, reconheceu a necessidade de, por meio de ações específicas, de natureza negatória e declaratória, negar ou afirmar a existência in casu dos diversos direitos da personalidade.

De igual forma, convém registrar o famoso julgado decidido pela Suprema Corte argentina, na década de 1970, que demonstra a dupla lesão de direitos da personalidade: imagem e honra. O caso teve como personagem um diplomata radicado na Argentina, Eduardo Carrizosa, Secretário da Legación de Colombia, que moveu ação de indenização contra a Sociedade Rural de Palermo. Esta sociedade distribuía nos seus jogos o denominado telegramisión relampago, revelación del destino, onde fora utilizada a fotografia de Carrizosa, contendo os seguintes dizeres: "aunque poseo más capital que ud, no importa para lograr el fin deseado. Espero contestación. Hasta la vista. Chalado" (chalado significa desajuizado). A Corte Suprema da Nação, em competência originária, acolheu a ofensa ao decoro, pouca seriedade e indiscrição, condenando os réus por injúrias. Mencionou os artigos 31 e 72 da Lei n. 11.723, considerou indiscutível a qualificação do artigo 110 do Código Penal e acolheu a indenização por danos, conforme artigos n. 1.068 e n. 1.078 (atualmente modificado), 1.109 e 1.720 do Código Civil. [73]

Importante, sem dúvida, a decisão do Tribunal Supremo da Espanha, em 06.12.1912, num caso de proteção à honra e que, segundo Frederico Castro Y Bravo, foi a que abriu caminho para a proteção dos bens da personalidade. A aludida decisão deu-se sobre um caso de notícia falsa, difundida por um periódico, e ofensiva à honra e bom nome de uma moça. A notícia leviana contava a fuga desta com um religioso, egresso de um convento. O pai da jovem de apenas 15 anos de idade exigia uma reparação no valor de 150.000 pesetas. O Tribunal acolheu o pedido, levando em conta as possíveis conseqüências matrimoniais e não propriamente o dano moral. [74] Afirmava a decisão:

"Considerando que por lo demonstrado antes, no cabe vacilar en preferir el criterio de la sentencia recurrida como mejor, más acomodado y eficaz para la defensa de la honra de los ciudadanos, al que se sustenta en el recurso, pues sobre que la doctrina estabelecida en la sentencia de 6 de diciembre de 1882, dictada en asunto puramente criminal, parte de un supuesto completamente distinto, porque se rifiere al simple honor en sí mismo, la recta razón en consonância con el concepto general del derecho positivo y las enseñanzas de tribunales de otros países respetables por su competencia, no consiente, de acuerdo con el código tradicional transcrito que, cual si se tratava de un derecho ideal sin práctica realidad, quede exento de responsabilidad civil el causador injusto con sus calunnias e injúrias de daños morales que traem en pos de si daños materiales, y que, a no precaverlos e corregirlos, privarian siempre al ofendido de bienes de orden temporal." [75]

Apesar do não-reconhecimento de prejuízos puramente morais, esta decisão abriu novos rumos na mentalidade jurídica espanhola, dotada de um grande conservadorismo.

E dizia, ademais, a decisão do Tribunal:

"Considerando que la estimación de los daños causados como consecuencia de los morales en el orden material no puede diferirse cual se sostiene en el motivo quinto de uno y otro recurso, hasta que el tiempo manifeste cuantos y cuáles se hayan producido, porque sucedería que algunos se realizasen, quedando ilusória la indemnización después que el escaso plazo legal estabelecido para el ejercicio del derecho hubiere transcurrido, siendo por otra parte justo y equitativo que una vez causado el daño se exija cuanto antes su reparación, ya que no puede hacerse sin la debida equivalencia si no procede la estima prudencial de los daños materiales que de él han de derivar, etc." [76]

Wilson Melo anotou que, embora o Tribunal adotasse premissas certas, que esposavam os mais puros elementos da doutrina, a sua conclusão estava errada. Não se concretizava, no caso, pela escandalosa notícia, um prejuízo imediato ou conhecido, no campo patrimonial, para a ofendida e a lesão era de natureza moral. [77]

Na jurisprudência francesa não encontramos passos avançados. Observou Mario Bessone, em artigo publicado em 1973, que ela encontrava-se acanhada e deveria empregar com freqüência e despreocupação decisões mais incisivas, que delineassem a ampla série de garantias da pessoa, que a teoria dos direitos da personalidade não conseguia consolidar. Só nos últimos anos e, em casos excepcionais, é que se viu induzida a modificar aquela atitude de indiferença e reticência. Reclamando contra a ausência de um modelo normativo, que permitia identificar quais os atributos da pessoa que constituem matéria de direito, o referido autor afirmava:

"Una volta delineata la sèrie delle garanzie che in modo più immediato si reconducono a fattispecie de tutela in sede di responsabilità civile, ogni ulteriore selezione degli attributti della persona meritevoli di protezione expone in fatti giurisprudenza e dottrina ai gravi problemi di qualificazione degli interessi che sono inevitabili al momento di valutare quali costituiscano materia de una ‘posizione di diritto’." [78]

11. Proteção da vida privada – o dogma de royer-collard

O dogma de Royer-Collard "La vie privée doit être murée" é aceito pela maioria dos escritores. E com razão. A vida privada do indivíduo está cercada de fatos que só a ele, individualmente, ou à sua família dizem respeito, não podendo estar sujeitos à devassa de olhares, observações, críticas e maledicências de pessoas estranhas. Pela sua própria natureza humana, o indivíduo é portador de falhas, desvios comportamentais, mas que não chegam a afetar a estrutura da sua personalidade. Permitir que tais fatos sejam trazidos ao conhecimento geral das pessoas é alimentar uma fonte sádica e invejosa, que só tem como mira o desprezo e subestimação da pessoa humana. É tripudiar sobre a honra alheia, como bem observou Darcy Arruda Miranda:

"(...) romper os muramentos da vida privada para dali remover certas verdades sem nenhum interesse social, a intranqüilidade pública seria permanente, a honra um boneco de engonço, a reputação uma folha ao vento. E sem os homens honrados as sociedades não sobrevivem. A honra é o oxigênio da sociedade bem formada. Nem a imprensa pode dela prescindir." [79]

No atual estágio de evolução da individualização das espécies de atributos da pessoa, a merecerem tutela, a honra já comporta uma autonomia em relação ao direito à vida privada.

Entretanto, na análise casuística, verifica-se que a lesão da honra muitas vezes ocorre concomitante a uma lesão do direito à vida privada. Por isso entendemos prevalecer, nas proposições desta pesquisa, o dogma de Royer-Collard.

12. Contribuição da doutrina

A doutrina grande contribuição trouxe para a formulação da teoria dos direitos da personalidade. Contudo, essa teoria teve lenta elaboração, e, por influência da teoria da reparação civil por danos morais, que se tem afinado com o pensamento científico de nossos dias, conseguiu, entre nós, após a Constituição da República de 1988, largo impulso. Referindo-se à doutrina espanhola, Castán Tobeñas, nos idos de 1959, reconheceu que a literatura sobre esses direitos era muito extensa, E sua elaboração doutrinal muito imperfeita, reinando grandes disparidades. [80]

Nos antigos registros, preocupados com a formulação da tutela em questão, encontramos a obra do espanhol Baltasar Gómes de Amescúa, de 1609, que defendia a tese de que todo homem tem um potestas in se ipsum, em decorrência de lei natural, dos preceitos de direito civil, canônico ou real. [81] Em pé de página, Tobeñas fez referência à obra de campogrande, los derechos sobre la persona propria, que afirmava estar demonstrada na consciência popular, no século xix, a idéia de que o homem é dono de sua pessoa, como se constata na comédia de Shakespeare O mercador de Veneza.

Outro destaque dos idos de 1892, a que se referiu TOBEÑAS, e que cuidou especificamente da honra, é El honor en la legislación Aragonesa, de Sasera, feito em discurso de abertura de curso, em Saragosa. [82]

Entre os doutrinadores, da mais elevada expressão internacional, que contribuíram para a elaboração da indigitada teoria, iremos deparar com: Gierke, Ferrara, Ravá, Gangi, De Cupis, Windscheid, Campogrande, Kölher, Giorgi, Gareis, Wachter, Bruns, Pugliatti, Rotondi, H. Etienne Perreau (em artigo na Revista Trimestral de Droit Civil, 1907), Roger Nerson (em tese sobre direitos extrapatrimoniais), Jacques Velu, e ainda H. Lehmann (unterlassungspflicht, 1906), o qual reconheceu a existência autônoma do Direito à honra. [83]

Esses direitos da personalidade foram relacionados no decorrer do século XX, por juristas alemães e, por longo tempo, constituíram prerrogativas fundamentais do homem e tratados sob normalística pública e, só nas décadas finais do século XX, ousaram os doutrinadores, principalmente germânicos, italianos, espanhóis e franceses, inseri-los como matéria de direito privado.

Além dos autores e obras já referenciados, destacam-se, outrossim, as obras de Antônio Borrel Maciá (La persona humana, Barcelona, 1953), com tratamento de determinados direitos: sobre o próprio corpo, vivo e morto e direitos sobre o corpo vivo e morto das outras pessoas e ainda a de José Castán Tobeñas (Derecho civil español e foral), que examinou o tema dos direitos da personalidade de modo geral e teceu considerações específicas sobre o direito à honra.

Não resta dúvida, porém, de que os autores italianos mostraran preocupação sistemática em abranger a variada gama dos referidos direitos e até mesmo nos manuais de direito civil encontramos reflexões a este respeito, como em Messineo e Trabucchi. Destaque maior merece o insigne professor de Perugia, Adriano de Cupis, pelas excelentes monografias sobre o tema, cuidando de determinados e específicos direitos da personalidade, que outros autores não se preocuparam em identificar, como o direito à identidade pessoal e o direito à honra. Com todo mérito, a sua obra I diritti della personalità é o melhor estudo que temos sobre o assunto.

Além disso, as próprias revistas italianas estão repletas de artigos sobre o tema, como as Revistas de Diritto Privato, Foro Italiano, Giurisprudenza Italiana, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, tendo como autores os mais aquilatados juristas.

Na doutrina brasileira sobre os direitos da personalidade, além do pioneirismo de Teixeira de Freitas, com Esboço do Código Civil e Orlando Gomes, com o Anteprojeto de Código Civil, que dedicou a esses direitos um capítulo especial, merecem referências as contribuições de, entre outros, Filadelfo Azevedo, com sua tese Direito moral dos escritores; Eduardo Espínola, na sua obra Sistema; Limongi França, na monografia Direito ao nome; Milton Fernandes, A proteção civil da intimidade; Antônio Chaves, em vários artigos, com o exame de alguns desses direitos como o direito à própria imagem, o dano moral; Walter Moraes, igualmente com o direito à imagem; Hermano Duval, em Direitos autorais nas invenções modernas; Wilson Melo da Silva, na tese O dano moral e sua reparação; Pontes de Miranda, com capítulo especial sobre a matéria na sua obra Introdução ao direito civil, v. VIII; Fábio Maria de Mattia; Carlos Alberto Bittar. Após a consagração dos direitos da personalidade e do dano moral pela nossa Carta da República, ao longo de duas décadas, houve uma variada e profícua produção intelectual sobre esses, em obras específicas, manuais e artigos.

Especificamente sobre o direito à honra, inexpressiva é a contribuição doutrinária. Encontramos em alguns Tratados de Direito Civil, na doutrina alienígena, referências esparsas. Apenas a notável obra de De Cupis, Os direitos da personalidade, em capítulo especial, que trata do direito à honra, ao resguardo pessoal e ao segredo, traçou com clareza e objetividade o conceito, cuidou da sanção civil, da tutela civil independente da penal e da defesa contra o descrédito do concorrente.

Na sua esteira, o argentino Santos Cifuentes, em Los derechos personalisimos, 1974, em algumas páginas, dedicou-se ao mesmo tema, mas não chegou a dar maiores contribuições, a não ser quanto ao exame de alguns casos clássicos de configuração da lesão desse direito.

Merecem ainda destaque os estudos do espanhol José Castán Tobeñas. Em Los derechos de la personalidad, 1952, estudou, em item destacado, el derecho al honor, seu conceito, a tutela civil e citou as primeiras jurisprudências deste século sobre aquele direito. No Brasil, Antônio Chaves e Carlos Alberto Bittar deram suas contribuições sobre o tema.

NOTAS

  1. Apud PICARD, Edmond. O direito puro. Lisboa: Bertrand, p. 31.
  2. CASTÁN TOBEÑAS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 5-52. Madrid, jul./ago. 1959.
  3. IHERING, Rudolf von. Actio injuriarum des lésions injurieuses en droit romain (et en droit français). Trad. O. Meulenaere. Paris: Chevalier, 1888, p. 1.
  4. IHERING, Rudolf von. Op. cit., p. 24.
  5. IHERING, Rudolf von. Op. cit., p. 24.
  6. BIONDI, Biondo. Donazione (diritto romano). Novissimo Digesto Italiano, v. 6, p. 230.
  7. Idem.
  8. Op. cit., p. 3.
  9. Cf. BRASIELO, Ugo. Infamia (diritto romano). Novissimo Digesto Italiano, v. 8, p. 641-643.
  10. Cf. BRASIELO, Ugo. Op. cit., p. 642; ROBERTI, Francesco. Infamia (diritto canonico). Novissimo Digesto Italiano, v. 8, p. 643.
  11. Ibidem, p. 641.
  12. Ibidem, p. 642.
  13. SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. Belo Horizonte, 1949, p. 13-16. (Tese livre-docência), Faculdade de Direito da UFMG.
  14. Cf. SILVA, Wilson Melo da. O dano..., cit., p. 14
  15. Cf. IHERING, Rudolf von. Op. cit., p. 3.
  16. IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. Trad. Richard Paul Neto. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1983, p. 47.
  17. SILVA, Wilson Melo da. O dano..., cit., p. 14.
  18. VIARIO, Mario. Onore (diritto penale). Novissimo Digesto Italiano. 3. ed. Torino: Torinese, 1957, v. 11, p. 939.
  19. Cf. PAOLI, Ugo Enrico. Ingiuria e diffamazione (diritto attico). Novissimo Digesto Italiano. 2. ed. Torino: Torinese, 1957, v. 8, p. 683.
  20. Ibidem, p. 683.
  21. SILVA, Wilson Melo da. O dano..., cit., p. 19.
  22. Cf. ROBERTI, Francesco. Op. cit., p. 644.
  23. Cf. ROBERTI, Francesco. Op. cit., p. 644.
  24. Idem.
  25. Idem.
  26. Cf. ROBERTI, Francesco. Op. cit., p. 644.
  27. Idem.
  28. Cf. O dano moral e sua reparação. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 41-42.
  29. O dano moral e sua reparação, 1983, p. 42; Cf. DOMINGUEZ, Lorenzo Miguelez et al. Código de derecho canônico y legislación complementaria. 4. ed. Madrid: La Editorial Católica, 1952.
  30. Cf. SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação, 1983, p. 43; DOMINGUEZ, Lorenzo Miguelez. Op. cit.
  31. FALCO, Mario. Introduzione allo studio del Codex Juris Canonici. Torino: Fratelli Bocca, 1925, p. 127, 130-131.
  32. FALCO, Mario. Op. cit., p. 142-143.
  33. CASTÁN TOBEÑAS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia, n. 192, v. 24, p. 9.
  34. WALINE, Marcel. L’individualisme et le droit. 2. ed. Paris, 1949, p. 37. Apud CASTÁN TOBEÑAS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudência n. 192, v. 24, p. 10.
  35. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudência n. 192, v. 24, p. 27.
  36. Cf. PUGLIESI, Giovanni. Il diritto alla riservatezza nel quadro dei diritti della personalità. Padova: Cedam, 1965, v. 4, p. 1553.
  37. CASTÁN TOBENÃS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación e Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 10.
  38. CASTRO Y BRAVO, Frederico de. Temas de derecho civil. Madrid: Marisal, 1972, p. 7.
  39. CASTÁN TOBENÃS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación e Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 10-11.
  40. CASTÁN TOBENÃS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 62.
  41. CASTÁN TOBEÑAS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 11.
  42. SARASOLA, José Madridejos. Los derechos personalisimos. Revista de Derecho Privado v. 46, p. 270-285. Madrid, abr. 1962, p. 273.
  43. Ibidem, p. 273.
  44. VASSALI, Giuliano. La protezione della sfera della personalità nell’era della tecnica. Milano: A. Giuffrè, 1962, v. 5, p. 684.
  45. Cf. DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: RT, 1980, p. 84.
  46. ORDOQUI CASTILLA, Gustavo. Estatutos de los derechos de la personalidad: en particular derecho a la intimidad. Montevidéu: Acali, 1984, p. 9-10.
  47. DE CUPIS, Adriano. Teoria e pratica del diritto civile. 2. ed. Milano: A. Giuffrè, 1967, p. 75.
  48. ANTONI, Jorge S. Los derechos de la personalidad. Revista Jurídica v. 22, p. 31. San Miguel de Tucumán, 1971.
  49. Cf. CASTÁN TOBEÑAS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 51.
  50. Cf. CASTÁN TOBEÑAS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 51.
  51. Ibidem, p. 52-53.
  52. Cf. CIFUENTES, Santos. Los derechos personalísimos. Buenos Aires: Lerner,1974, p. 281.
  53. CIFUENTES, Santos. Op. cit., p. 285.
  54. CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Tratado de direito civil. Coimbra: Coimbra, 1937, v. 3, p. 15.
  55. Apud CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Op. cit., p. 8.
  56. Op. cit., p. 280-301.
  57. Cf. DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Trad. Adriano Vera Jardim e Antônio Miguel Caeiro. Lisboa: Morais, 1961, p. 21.
  58. Op. cit., p. 10.
  59. Cf. MORANDIÈRE, Julliot de la. Les droits de la personnalité dans le projet français de réforme du Code Civil. Travaux de l’Association Henri Capitant pour la Culture Juridique Française. Paris: Dalloz, 1963, t. 13, p. 170.
  60. FERNANDES, Milton. Proteção civil da intimidade. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 9.
  61. Op. cit., p. 10.
  62. Cf. MATTIA, Fábio Maria de. Direitos da personalidade: aspectos gerais. Revista de Direito Civil v. 3, p. 35-51, jan./mar. 1978, p. 41.
  63. Cf. LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de direito civil. São Paulo: RT, 1966, v. 1, p. 325.
  64. NERSON, Roger. La protection de la vie privée en droit positif français. Revue Internationale de Droit Comparé n. 4, v. 24, p. 737-764. Paris, oct./ déc. 1971, p. 738.
  65. Cf. VELU, Jacques. Le droit au respect de la vie privée. Bruxelas: Presses Universitaires de Namur, 1974, p. 91.
  66. Cf. DOTTI, René Ariel.Op. cit., p. 86.
  67. Cf. PUGLIESE, Giovanni. Op. cit., p. 1560.
  68. Cf. CORRADO, Renato. Diritto al nome e diritto all’onore. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni v. 47, p. 218. Milano: Francesco Vallardi, 1949, parte seconda.
  69. Cf. DE CUPIS, Adriano. Teoria e pratica del diritto civile, cit., p. 110.
  70. CORRADO, Renato. Diritto al nome e diritto all’ onore. Rivista del Diritto Comerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni v. 47, p. 220.
  71. Cf. SOARES, Orlando. Direito de comunicação. 2. ed. Rio de Janeiro: José Konfino, s.d., p. 465.
  72. SOARES, Orlando. Op. cit., p. 466.
  73. Cf. CIFUENTES, Santos. Op. cit., p. 313-314.
  74. Cf. CASTRO Y BRAVO, Frederico de. Op. cit., p. 18; CASTÁN TOBEÑAS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 52.
  75. Apud SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação, cit., 1949, p. 74.
  76. Ibidem, p. 75.
  77. O dano moral e sua reparação, cit., 1949, p. 74.
  78. BESSONE, Mario. Diritto soggetivo e droits de la personnalité: a proposito di un recente saggio. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile v. 3, p. 1179-1187. Milano: A. Giuffrè, 1973.
  79. ARRUDA MIRANDA, Darcy. Comentários à Lei de Imprensa. São Paulo: RT, 1969, v.1, p. 318 (grifos do autor).
  80. CASTÁN TOBENÃS, José. Los derechos de la personalidad. Revista General de Legislación y Jurisprudencia n. 192, v. 24, p. 61-62.
  81. Cf. Ibidem, p. 10.
  82. Idem, ibidem, p. 10 e 48.
  83. Cf. LEHMANN, Heinrich. Tratado de derecho civil Parte general. Trad. José M. Navas. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956, v. 1, p. 624.
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Sobre a autora
Aparecida I. Amarante

Procuradora do Estado de Minas Gerais. Ex-professora-adjunta de Direito da UFMG. Doutora em Direito Civil. Escritora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Aparecida I.. Responsabilidade civil por dano à honra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2492, 28 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14764. Acesso em: 4 dez. 2024.

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Esta é a versão eletrônica do livro "Responsabilidade civil por dano à honra", em 7ª edição revisada, publicada com exclusividade no Jus Navigandi.

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