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Caso Ficha Limpa: análise do julgamento do STF

Júlio da Silveira Moreira
Júlio da Silveira Moreira
27/09/2010 às 10:31
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"Um tribunal que atenda a pretensões legítimas da população ao arrepio da Constituição é um tribunal no qual nem o povo pode confiar" – essa é a visão do atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso...

O julgamento da Lei de Ficha Limpa (Lei Complementar n. 135/2010) foi suspenso na madrugada dessa sexta-feira (24/09). O caso em apreço era a candidatura do ex-senador Joaquim Roriz ao governo do Distrito Federal. Roriz renunciou ao mandato de senador em 2007 para fugir do processo de cassação, sendo portanto considerado inelegível para as eleições de 2010, face à alínea "k", do inciso I do art. 1º da referida lei. Assim foi o entendimento do Tribunal Regional Eleitoral correspondente e do Tribunal Superior Eleitoral, antes de a matéria ser levada ao STF em Recurso Extraordinário.

Mesmo sem pedido expresso do recorrente, o presidente do STF alegou que a aplicação não poderia retroagir a fato ocorrente antes da vigência da lei, e propôs a apreciação da sua inconstitucionalidade, sob protestos: "estamos transformando Recurso Extraordinário em Ação Direta de Inconstitucionalidade", disse o Ministro Carlos Ayres Britto, logo antes de exarar o famoso "está me parecendo um salto triplo carpado hermenêutico", criando mais um conceito que será objeto de discussão nas faculdades de Direito nos próximos 30 anos e fará com que mais um milhão de livros seja vendidos com mais uma dessas polêmicas doutrinárias superficiais...

Ironias à parte, o fato é que o presidente do STF propôs a apreciação da inconstitucionalidade e foi vencido, e 6 ministros contra 4 entenderam que a lei é constitucional: as condições de inelegibilidade não são penas ou sanções, mas critérios que devem ser aferidos no momento do registro da candidatura. A lei não pune o ex-senador pela renúncia; apenas cria um novo requisito para o direito ao registro. Votaram contra os ministros Gilmar Mendes, Peluso, Marco Aurélio e Celso de Mello.

Porém, ao apreciar o acórdão do TSE no caso concreto, a polêmica foi se a vedação da candidatura de Roriz poderia ser aplicada já para as eleições correntes, antes de se completar um ano de vigência da Lei da Ficha Limpa. Cinco ministros entenderam que não, pois estaria sendo descumprido o art. 16 da Constituição, que diz que "a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência", e no caso, a lei foi sancionada em junho deste ano.

Mas os outros 5 entenderam que a decisão do TSE é plenamente correta e inatacável, pois se embasa na tese de que

"O prazo de um ano para a aplicação de lei só se justifica nos casos em que há deformação do processo eleitoral. Ou seja, nos casos em que desequilibra a disputa, beneficiando ou prejudicando determinadas candidaturas. Como a Lei da Ficha Limpa é linear, ou seja, se aplica para todos indistintamente, não se pode afirmar que ela interfere no processo eleitoral. Logo, sua aplicação é imediata."

Voltando ao julgamento, uma pergunta não pode deixar de ser respondida. Se 6 ministros já entenderam que a lei não é inconstitucional, por que tanta discussão para dizer que ela não pode ser aplicada? Quem alterou o placar? A resposta está nos votos do ministro Toffoli, que considerou que a lei não é inconstitucional, mas que não pode ser aplicada para as eleições de 2010. Com o empate, os ministros debateram por mais tanto tempo a solução, até suspender o julgamento por prazo indeterminado. Tudo em meio a ironias que revelam o desprezo com que se trata o interesse do povo.

Mas a solução estava ali: aplicar o art. 146 do Regimento Interno do STF, que diz que, no empate causado pela falta de um ministro (no caso, o ministro Eros Grau, que se aposentou), deve-se aplicar solução contrária ao recurso, entendimento reforçado pela Súmula Vinculante n. 10. Conquanto a maioria não decidiu que o recurso deve ser provido, o acórdão do TSE deveria continuar válido.

Com a suspensão do julgamento, o STF consegue cumprir seu papel: afastar o cumprimento da lei de Ficha Limpa sem assumir a responsabilidade pelo seu próprio reacionarismo. O argumento legalista do empate encobre o compromisso político de ministros com certos grupos de poder que foram responsáveis pelas suas indicações.

Quando se fala que Joaquim Roriz deve ser barrado porque renunciou ao cargo de senador para escapar de processo por corrupção, esconde-se por si a corrupção. É como se o problema foi apenas ter renunciado, e não o fato de ter renunciado porque "supostamente" é mais um corrupto acusado em vários escândalos e até mesmo filmado distribuindo propina, conforme revelou nada menos que a revista Veja.

O julgamento revela mais uma vez o desprezo do tribunal aos interesses mais legítimos do povo. Aí vem o presidente do STF, e fala que "um tribunal que atenda a pretensões legítimas da população ao arrepio da Constituição é um tribunal no qual nem o povo pode confiar"... mas a própria constituição fala que "todo poder emana do povo", então como se pode admitir que o interesse vem do povo, é legítimo e ainda assim não pode ser aplicado?? Mas a frase de Peluso diz algo mais: que a Constituição está contra o povo: ou se aplica a Constituição, ou se aplica o interesse legítimo do povo. E mais! Se o STF é o guardião da Constituição, então o STF viola os interesses legítimos do povo. É o seu presidente quem fala. E Locke e Rousseau, representantes ideológicos da própria burguesia, no século XVIII já diziam que, quando um poder não atende aos interesses do povo, este tem o direito de se rebelar contra o poder.

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ALGO MAIS SOBRE AS ELEIÇÕES

E assim, lá se vai mais uma cena da farsa eleitoral. A Lei de Ficha foi aprovada no Congresso, na fluência de todas as negociações imorais que são próprias daquela casa, até fosse aprovada e sancionada já com menos de um ano das eleições. Agora, há o entendimento que ela não se aplica para as eleições de 2010. Abrir-se-á um novo período, até as próximas eleições, de mais barganhas e mensalões em que as leis eleitorais podem ser novamente mudadas e não aplicadas. Isso só revela que o problema das eleições não é a elegibilidade dos candidatos – isso foge ao problema principal.

Em primeiro lugar, a "ficha suja" dos candidatos não se revela na existência de processos judidiais nem tampouco de condenações contra os mesmos. A maior sujeira da bandidagem política do país está no compromisso com as classes dominantes, na ligação inseparável com grandes empresas e latifundiários (que são inclusive os grandes financiadores das campanhas milionárias), no servilismo ao interesse imperialista estrangeiro que permite um modelo econômico atrelado na agiotagem financeira praticada por órgãos como o FMI, na transferência das riquezas nacionais para o exterior, no sistema agrícola latifundiário monocultor de exportação que só explora, expropria e empobrece o povo brasileiro transformando o país numa semi-colônia. Mas, para a "Justiça" brasileira, isso não é crime. Logo, todos eles são "ficha limpa".

Em segundo lugar, não são a pessoa dos candidatos, mas sim o processo eleitoral, que é corrupto, e assim será qualquer processo eleitoral sob a égide da política imperialista das "eleições livres". Essa política foi arquitetada pelos estrategistas estadunidense na década de 70, e foi responsável pela substituição, nos países subordinados, das ditaduras militares pelas "ditaduras" civis baseadas em "eleições livres" (e corruptas), a partir de uma transição "lenta, pacífica e gradual", ou seja, mudando-se tudo para que nada fosse mudado – especialmente as relações reais de poder concentrado nos grupos políticos das classes dominantes.

A corrupção, a compra direta ou indireta de votos, são inerentes ao processo eleitoral, não é nenhuma moralização das eleições ou reforma política que irá mudar esse fato. Isso de confirma quando, cada vez mais, a apresentação de programas de governo é substituída pela imagem dos candidatos trabalhada pelos marqueteiros. Não se apresentam propostas, mas sim fotos, dos candidatos. Na prática, o que vale é o interesse restrito e imediato de cada grupo de poder – ou seja, compra de votos.

Também não se pode exigir que haja discussão real de propostas, quando se trata na realidade de um partido único das elites. Não há diferença entre os candidatos, porque há um partido único. Por exemplo, não há diferença entre as propostas de Dilma e Serra, afinal todos são "santos" e "heróis". Ronaldo Caiado ataca radicalmente os desmandos do sistema financeiro – e o PSTU também. Mas nenhum candidato – destaque-se: nenhum – ataca a ilegitimidade e a corrupção do processo eleitoral, pois todos fazem parte dele e usam as eleições de alguma forma para o proveito de seu grupo político junto às benesses do Estado.

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Sobre o autor
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Júlio da Silveira Moreira

Advogado. Pós-graduando na Universidade Federal de Goiás (UFG). Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo (International Association of People's Lawyers (IAPL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Júlio Silveira. Caso Ficha Limpa: análise do julgamento do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2644, 27 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17493. Acesso em: 28 mar. 2024.

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