3. DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA À POLITIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
A frustração em geral do meio político tem implicado tanto na condução das demandas de natureza política à jurisdição como, em sentido contrário, a adoção da postura política pelo Judiciário, como bem caracteriza o ativismo judicial. Disso decorre que a legitimação das reivindicações coletivas tem se dado mais sob a forma processual do que política, decorrente da perda de prestígio do político e de uma reorientação das expectativas políticas com vistas à justiça, pois é a ela que a opinião pública dirige agora suas demandas (GARAPON, 2001). A justiça passa a encarar, assim, o espaço público neutro, o direito, a referência da ação política, e o juiz, o espírito público desinteressado.
O movimento se dá tanto com a extensão da competência da justiça em detrimento do Poder Executivo, como marca indelével da superação do Estado Social, como também pela atração que a jurisdição exerce em função do raciocínio político. Daí porque a politização da razão judiciária não tem outro equivalente senão a judicialização do discurso político, posto que as reivindicações políticas se exprimem mais facilmente em termo jurídicos do que ideológicos.
Esses dois fenômenos – desnacionalização do direito e exaustão da soberania popular – ilustram o núcleo da evolução hoje vivida, a saber, a migração do centro de gravidade da democracia para um lugar mais externo, sendo que a judicialização da vida pública comprova esse deslocamento: é a partir dos métodos da justiça que nossa época reconhece uma ação coletiva justa. Daí a afirmação de Willis Santiago Guerra Filho de que "o objeto da ciência jurídica não seria propriamente normas, mas sim os problemas a que elas cabe viabilizar a solução" (GUERRA FILHO, 1998).
O dúplice movimento apontado – judicialização da política e politização do Judiciário – só pode ser demonstrado também como consequência da disseminação da jurisdição constitucional, sobretudo em seus aspectos substantivos, eis que a carga de pretensões irrealizadas, enunciadas pelo texto constitucional, exige a tomada de posição indistinta para sua realização. Afinal, se o Estado Liberal era identificado com o Poder Legislativo, o Estado Social com o Poder Executivo, o Estado Democrático de Direito está mais do que qualquer outro identificado com o Poder Judiciário, sendo que a importância aqui está ao se identificar o tendência convergente do sistema, material e formalmente, num contexto que não se cinge à mera inter-comunicação sistêmica.
4. DA CONVERGÊNCIA DOS SISTEMAS COMO HIPÓTESE DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO
Embora identificável, até aqui, elementos idôneos da aproximação do processo em direção à Constituição, que poderia ser inferido como sendo a constitucionalização do processo, há um trilhar em sentido diverso que aponta para a aproximação da Constituição em direção ao processo, em sua dimensão instrumental substantiva (processualização da Constituição), assim destacado por Willis Santiago Guerra Filho:
(...) quer dizer, do que leva à estreita associação entre Constituição e processo hoje em dia, quando esse se torna um instrumento imprescindível na consecução daquela. Colocamo-nos, assim, diante de um duplo movimento em sentidos opostos, nomeadamante, uma materialização do direito processual, ao condicioná-lo às determinações constitucionais, e, ao mesmo tempo, uma procedimentalização ou ‘desmaterialização’ do direito constitucional, à medida que o processo se mostre indispensável para a realização da ‘Lei Maior’ e, logo, também das ‘menores’, ou ordinárias (1998).
Se antes desse movimento circular era possível afirmar a dicotomia entre o processo civil e o processo penal, tal como fizeram Francesco Carnelutti, Ovídio Baptista da Silva e Flávio Gomes (2002), e Rogério Lauria Tucci (2003), ao defenderem a inexistência de uma teoria geral do processo, sustentando a plena desvinculação da teoria geral do processo civil com a teoria geral do processo penal, a aproximação da técnica processual da mesma matriz condicionadora, qual seja, constitucional, implica no reconhecimento de que a técnica não é mais tão distinta quanto aludia Silva e Gomes:
Esta peculiaridade, comum a todo fenômeno jurídico, mostra-se ainda mais visível quando se trata do direito processual, dado que este ramo da ciência jurídica tem de tratar, necessariamente, de casos individuais, onde a construção de regras gerais mostrar-se-á sempre uma tarefa limitada e precária (2002, p. 9).
Também para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho não existiria uma teoria geral do processo, pois, sustenta, no processo penal não existe lide como conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, afirmando a incompatibilidade estrutural para composição do processo civil e do processo penal. Segundo Coutinho, a construção da teoria geral do processo civil se deu a partir de Liebman, sendo impossível compartilhar da mesma visão em relação ao processo penal, tendo recentemente reiterado posição firmada há mais de vinte anos:
Imperioso, porém, negar peremptoriamente a chamada teoria geral do processo, (...)
Assim, com um sistema diverso, um princípio unificador diverso, um conteúdo do processo diverso, e uma diversidade estrutural em cada elemento da trilogia fundamental (jurisdição/ação/processo), não há que se cogitar sobre uma teoria geral. Com denominadores comuns diferentes, não cabe uma teoria, muito menos geral. Como referi há 20 anos, "sem embargo disso, per faz et nefas, a teoria geral do processo civil, a cavalo na teoria geral do processo, penetra no nosso processo penal e, ao invés de dar-lhe uma teoria geral, o reduz a um primo pobre, uma parcela, uma fatia da teoria geral. Em suma, teoria geral do processo é engodo; teoria geral é a do processo civil e, a partir dela, as demais." Ela, todavia, serve: para reter o desenvolvimento democrático do processo penal porque encobre o núcleo do problema de seu sistema (2007, p. 11).
Já os instrumentalistas, da escola processual paulista, acolhem a existência de uma teoria geral do processo (GRINOVER, 1999), estruturada com fundamento no tripé jurisdição – ação – processo, tendo a jurisdição como base institutiva sistematizada, que vê o processo como instrumento de pacificação social, colocando o processo como forma de realização da jurisdição, tendo como marco teórico a teoria do processo como relação jurídica.
O mero paralelismo entre a disciplina do processo e o regime constitucional já vem sendo há muito reconhecido pelos processualistas clássicos, ainda que beirando a subsidiariedade. Assim é que para Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, todo o direito processual, como ramo do direito público, tem suas linhas fundamentais traçadas pelo direito constitucional, que fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, que garante a distribuição da justiça e a efetividade do direito objetivo, que estabelece alguns princípios fundamentais.
Antigos e conceituados doutrinadores já afirmavam que o direito processual não poderia florescer senão no terreno da liberalismo e que as mutações do conceito de ação merecem ser estudadas no contraste entre liberdade e autoridade, sendo dado destaque à relação existente entre os institutos processuais e seus pressupostos políticos e constitucionais. Hoje acentua-se a ligação entre o processo e Constituição no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera fechada do processo, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico: é esse o caminho, foi dito com muita autoridade, que transformará o processo, de simples instrumento de justiça, em garantia de liberdade (CINTRA, 2008, p. 84).
Sem que tal convergência implique em massificação do processo, como poderia parecer, é de constatar que, embora diversos os ramos, o tronco comum é um só, ou seja, o poder, o que gera a unidade nos grandes princípios, no entendimento das garantias constitucionais do processo, na interação funcional dos institutos, sem que isto signifique admitir soluções igualadas em todos os setores (DINAMARCO, 1987, p. 100/03), arrematando José Figueiredo Dias que qualquer conclusão pessimista quanto à viabilidade de uma Teoria Geral do Processo não deve obstar que se reconheça a importância de uma consideração comparativa dos diversos tipos de processo (DIAS, 1974, p. 52/7).
Aliás, a unidade processual foi uma das intuições de Carnelutti, quando afirmava que o direito processual é uno, distinguindo-se o processo penal e o processo civil não por suas raízes, mas porque, sem dois grandes ramos, logo, deles deriva um tronco comum (GIORGIS, 1991, p. 76). Previa o tempo, alude José Carlos Teixeira Giorgis,
(...) em que se levará em consideração tal verdade no ensino universistário, advertindo que um dos graves problemas do ordenamento jurídico se encontra na cisão do processo civil e penal e no acoplamento deste ao Direito Penal.
Ao encaminhar-se para conclusão unitária, em conhecido trabalho, Carnelutti observa que, no fundo, o ambiente do processo civil já se revela uma impressão de superioridade.
Escrituras cuidadosas, discussões rebuscadas, e, sobretudo, pessoas esquisitas...
Ao contrário, o processo penal é inquieto, turbulento, um verdadeiro reino de andrajosos.
O processo civil, na grande maioria dos casos, é um processo de possuidores, pois, quanto um dos dois sujeitos não possui, pelo menos aspira possuir. É o processo do meu e do teu, a aposta do jogo é a propriedade.
No processo penal, em troca, se trata da liberdade, que é uma verdadeira aposta no processo.
Nisto reside a distinção entre os dois processos: no civil, discute-se sobre o ter ou haver, e no penal sobre o ser! (GIORGIS, 1991, p. 76/77).
Também para José Frederico Marques, discípulo de Liebman, o processo, como instrumento compositivo de litígios, é um só, quer quando tenha por objeto uma lide penal, quer quando trate de uma lide não-penal, e que, como instrumento da atividade jurisdicional do Estado, não sofre mutações substanciais quando passa do campo de justiça civil para o penal. "Uno, portanto, é o Direito Processual pelo que pode ser construída uma Teoria Geral do Processo com os postulados e linhas mestras construídas segundo a metodologia da Dogmática do Direito" (MARQUES, 1980, p. 36). Daí também porque, para René Ariel Dotti, as categorias dogmáticas do processo penal não devem perder o contato com os valores que o processo se destina a amparar, pois a supremacia das categorias lógicas tão marcantes na prestação jurisdicional através do processo civil (avaliação das provas, restrições de capacidade de meios, reconhecimento de indícios, etc) é muito distinta da ocorrente no processo penal, pois quando se trata de infligir uma pena a verdade convencional não é o bastante (DOTTI, 1987, IX).
Muito além do paralelismo, seja num ou noutro caso, a assunção da garantia do devido processo legal em sentido substancial (substantive due process of law), construído ao longo da experiência constitucional norte-americana5 e alemã, incorporado pela Constituição Federal de 1988 ao ordenamento jurídico nacional, implicou na perda da posição central da lei como fonte do direito, passando a ser subordinada à Constituição6, não valendo, por si só, mas somente se conformada com a Constituição e, especialmente, se adequada aos direitos fundamentais (CAMBI, 2007).
A supremacia da Constituição sobre a lei e a repulsa à neutralidade da lei e da jurisdição encontram, no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, um importante alicerce teórico. Ao se incluir no rol do artigo 5º a impossibilidade da lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito, consagrou-se não apenas a garantia de inafastabilidade da jurisdição (acesso à justiça), mas um verdadeiro direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada (acesso à ordem jurídica justa) (MARINONI, 1997, p. 20).
A convergência dos vetores processuais, envolto no líquido amniótico constitucional, pode levar a um modelo mínimo de processo, num modelo constitucional de processo que não se limite ao processo civil, mas seja compreendido como gênero, que tem no processo a espécie, e na qual o provimento é preparado em simétrica paridade pelos afetados, como sustentou Elio Fazzalari (2006).
Se a tônica da pós-modernidade se lastreia na hermenêutica dos princípios constitucionais, então a justificativa para a dicotomia entre o processo penal e o processo civil não pode mais prevalecer. A propósito, Ronald Dworking enfrenta um problema interpretativo para compreensão do direito como integridade, no caso McLoughlin, que serve para indicar um caminho para a hipótese proposta. Para o autor, a divisão do direito em áreas específicas – Direito Civil, Direito Penal, Direito Administrativo, Direito do Trabalho e Direito Tributário – segue uma definição tradicional que reflete princípios morais amplamente aceitos pela opinião pública, cuja demonstração é ainda mais fácil a partir da clara distinção entre Direito Civil e Direito Penal, como ilustram Flaviane de Magalhães Barros e Fabrício Santos Almeida (2007), de tal modo que a interpretação do direito deve se dar como elemento de integridade, respeitando as diferenças relativas à prioridade local, salvo quando os limites tradicionais de divisão do direito em áreas se mostrar mecânico ou arbitrário. Assim,
Se um juiz aceita o direito como integridade considera que duas interpretações se ajustam, cada uma na área de seu interesse imediato, bem o suficiente para satisfazer as limitações interpretativas, então ampliará o alcance de seu estudo numa série de círculos concêntricos para incluir outras áreas do direito e, assim, determinar qual das duas melhor se adapta ao âmbito mais abrangente. Mas respeitará, normalmente, a prioridade da área do direito, na qual desponta seu problema imediato; considerará de menor valor, rigorosamente, algum princípio como uma interpretação aceitável do direito de acidentes se ele for estranho a esse ramo do direito, mesmo que se ajuste bem a outras áreas. A topologia das áreas é, como vimos, parte do seu problema interpretativo, e os seus julgamentos sobre os limites das áreas pode ser polêmico e, todo modo, irá modificar-se com a evolução do direito. No entanto, restrições específicas aplicam-se a seus julgamentos sobre os limites: devem, em princípio, respeitar opiniões públicas e profissionais estabelecidas que dividem o direito em áreas importante de conduta pública e privada (DWORKING, 1999, p. 481).
A afirmação inequívoca da plenitude da jurisdição constitucional, alastrando-se de modo irresistível pelo ordenamento e minando o anacrônico encapsulamento do direito processual, contribui para a formação de similaridades sucessivas entre o processo civil e o processo penal, num movimento que pode conduzir a construção de uma teoria geral do processo, desta vez não pela sua gênese, mas sim pela sua refundação em conformidade com a Constituição.