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Do significado e da amplitude da expressão "ação governamental" para fins de aplicação do artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal em processos licitatórios

23/10/2010 às 14:00
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Em 04 de maio de 2000 foi editada a Lei Complementar nº 101, usualmente denominada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Através dela, procurou-se conferir mais transparência à atividade financeira e administrativa do Estado, definindo um maior nível de responsabilização do gestor com o trato da coisa pública. Acerca dos avanços perpetrados pela LRF, impende colacionar trecho de estudo promovido no artigo "A Lei de Responsabilidade Fiscal em linhas gerais" [01], in verbis:

A L.R.F traz uma mudança institucional e cultural na gestão do dinheiro da sociedade. Através da introdução da restrição orçamentária na legislação pátria, rompe-se o liame da história político-administrativa da nação não se aceitando mais o convívio com administradores irresponsáveis, que em qualquer nível de governo, ao anematizarem suas administrações de hoje, eivam as futuras com mais impostos, menos investimentos ou mais inflação.

A L.R.F coíbe a postura danosa de gestores que gerenciam cofres públicos gastando mais do que arrecadam, deixando dívidas para seus sucessores e assumindo compromissos que sabem, de aviso prévio, não poderão adimplir. Portanto, o aumento de gastos deve estar coligado e diretamente proporcional a uma fonte de financiamento correlata.

Ocorre que diversas dúvidas jurídicas surgiram a partir da edição da LRF, das quais se destaca qual seria o significado e abrangência da expressão ação governamental para fins de aplicação do artigo 16 da referida norma. Dessa feita, objetivando aclarar o presente estudo, penso que seja importante trazer à baila, desde logo, o dispositivo da LC nº 101/2000 que se almeja delimitar a abrangência, in litteris:

Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:

I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subseqüentes;

II - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 1º Para os fins desta Lei Complementar, considera-se:

I - adequada com a lei orçamentária anual, a despesa objeto de dotação específica e suficiente, ou que esteja abrangida por crédito genérico, de forma que somadas todas as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício;

II - compatível com o plano plurianual e a lei de diretrizes orçamentárias, a despesa que se conforme com as diretrizes, objetivos, prioridades e metas previstos nesses instrumentos e não infrinja qualquer de suas disposições.

§ 2º A estimativa de que trata o inciso I do caput será acompanhada das premissas e metodologia de cálculo utilizadas.

§ 3º Ressalva-se do disposto neste artigo a despesa considerada irrelevante, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias.

§ 4º As normas do caput constituem condição prévia para:

I - empenho e licitação de serviços, fornecimento de bens ou execução de obras;

II - desapropriação de imóveis urbanos a que se refere o § 3o do art. 182 da Constituição.

Sendo cediço que a LRF estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, a grande discussão criada versa sobre a abrangência da aplicabilidade do artigo 16 alhures transcrito aos processos licitatórios. Mais precisamente, em quais procedimentos a estimativa do impacto orçamentário-financeiro e a declaração do ordenador da despesa, previstos nos incisos I e II do caput do supracitado artigo 16, seriam necessárias.

Da leitura acurada da norma alhures transcrita, denota-se a intenção do legislador em não aplicar os requisitos da norma para toda e qualquer despesa. Se assim não fosse, não existiriam motivos para citar diversos tipos de expressão. Ao tratar da questão em comento, Ivan Barbosa Rigolin [02] pronuncia-se sobre a existência da controvérsia, nos seguintes termos:

Em absoluto, ação governamental não pode ser qualquer despesa pública, ou se fora isto, "despesa pública", estaria escrito na LRF em lugar daquela expressão; como está escrito, literalmente, em outros momentos, como na denominação do próprio Capitulo IV da lei, ou em artigos como os arts. 15 a 17, incontáveis vezes, sob a dicção pura e simples de "despesa", o que está a significar despesa pública em todos os casos.

Se ação governamental fora qualquer despesa, não teria sido dividido o Cap. IV da LRF em art. 16, com sua ação governamental, e art. 17, com sua despesa obrigatória de caráter continuado. Não precisaria o legislador ter partido o conceito em dois diversos, como aliás nem precisaria ter instituído qualquer dos dois conceitos: bastaria ter mencionado "despesa", será precisar delimitar conceitos novos como ação governamental e despesa obrigatória de caráter continuado, se fora para falar de despesas publicas indiferenciadamente.

Evoluindo-se a discussão para delimitação do âmbito da expressão, uma resposta precisa passa por um exame cuidadoso da delimitação do que se considera "criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa". Carlos Pinto Coelho Motta [03] faz a distinção entre despesas de manutenção – relativas ao prosseguimento de serviços já existentes ou compras rotineiras e programadas – e a categoria que implica criação, expansão ou aperfeiçoamento da ação governamental e que acarreta, ao mesmo tempo, aumento de despesa. Faz ainda a distinção entre uma atividade (operações contínuas e permanentes, cujo produto é a manutenção de uma ação do governo) e um projeto (limitado no tempo e seu resultado pode ser uma obra acabada ou a instalação de um novo serviço ou utilidade, que se identifica precipuamente com a "criação, expansão ou aperfeiçoamento da ação governamental" de que trata o art. 16 da LC nº 101/2000 e acarreta, efetivamente, "aumento de despesa").

Após as distinções citadas, o autor aduz que "uma conclusão interpretativa de grande consistência – confirmada finalmente pelo Tribunal de Contas da União – atribui apenas às despesas relacionadas com projetos o cumprimento dos requisitos dos arts. 16 e 17. Despesas pertinentes a atividades estariam deles dispensadas".

Por meio do Acórdão TCU nº 883/2005, da Primeira Câmara, a Excelsa Corte de Contas espancou dúvidas sobre o discutido entendimento de aplicação do multicitado artigo 16 a todos os processos de licitação. Vejamos:

4.21. O corolário dessa construção hermenêutica seria o de que nem todas as despesas públicas, independentemente de valor, sujeitam-se à exigência de figuração no demonstrativo de impacto orçamentário-financeiro exigido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, cuja preocupação seria apenas com a despesa que afete o resultado fiscal, ainda que futuramente. Já as despesas contínuas, mormente as relacionadas a serviços de manutenção e funcionamento do setor público, por não serem criadas ou aumentadas em suas renovações contratuais ou licitações anuais, não se sujeitariam aos preceitos dos arts. 16 e 17, em virtude de não constituírem gastos novos (foram criadas no passado e, portanto, já fizeram parte de leis orçamentárias pretéritas) e porque previstas na lei orçamentária vigente por força do dispositivo das LDO determinando que os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público da União terão como limites de despesas correntes e de capital, para efeito de elaboração dos respectivos orçamentos, o conjunto de dotações fixadas na lei orçamentária anterior.

(...)

13. Inicialmente, vale ressaltar que as normas em comento estão inseridas no Capítulo IV - Da Despesa Pública, na Seção I - Da Geração de Despesa, a qual possui, ainda, uma Subseção que trata de forma mais pormenorizada das Despesas Obrigatórias de Caráter Continuado. Completando o referido capítulo, temos a Seção II - Das Despesas com Pessoal e a Seção III - Das Despesas com a Seguridade Social.

14. Pela leitura do citado normativo, verifico que o demonstrativo do impacto financeiro previsto no inciso I do art. 16 deve ser elaborado tão-somente quando houver criação, expansão ou aperfeiçoamento de uma ação governamental que acarrete aumento de despesa. A manutenção das ações governamentais em seu estado rotineiro ou a não elevação dos gastos refogem da obrigação prevista no citado inciso.

15. Além disso, entendo que a exigência de que referido demonstrativo contemple o impacto no exercício em que a ação deva entrar em vigor e nos dois exercícios subseqüentes abarca duas idéias. A primeira, é a de que o orçamento vigente não contemplava tais despesas, de modo que a decisão de criar, expandir ou aperfeiçoar determinada ação governamental surgiu quando já vigente a Lei Orçamentária e, por tal razão, a exigência de que seja previsto o impacto no exercício que tais despesas entrarão em vigor. A segunda indica a continuidade dos gastos, que impactarão nos orçamentos subseqüentes, razão pela qual a lei exigiu a estimativa desse impacto nos dois exercícios posteriores àquele em que a ação entrou em vigor.

16. Quanto à primeira situação, parece-me evidente que se determinada despesa já está autorizada na Lei Orçamentária em vigor, seu impacto orçamentário-financeiro já se encontra estimado, pois já está fixado na lei. Não vejo razão prática para que o gestor, ao implementar o que está legalmente autorizado, estime o impacto de uma despesa já prevista, pois tal impacto já foi incorporado ao orçamento.

17. O caso em comento pode ser utilizado como exemplo nessa interpretação. A aquisição de equipamentos de informática pela Câmara dos Deputados mereceu a devida previsão na LOA, de maneira que seu impacto orçamentário já foi estimado na elaboração do orçamento. Por outro lado, o tipo de aquisição em tela não tem caráter continuado, ou seja, não repercute nos orçamentos dos anos subseqüentes, portanto, não apresentará nenhum impacto nos exercícios posteriores. Realizado o gasto, se extingue a despesa prevista no orçamento corrente. Tais características são típicas das compras de bens, serviços e obras pela Administração Pública.

18. No entanto, existem ações governamentais que não se exaurem com a realização de determinada despesa, pois elas possuem caráter de continuidade, como as políticas públicas, os programas de governo, no âmbito dos quais são desenvolvidas diversas ações, cada qual com seus gastos. Tais programas, para que atinjam seus objetivos, demandam tempo maior de implementação, não se exaurindo, como os gastos relativos às compras de bens, de forma instantânea.

19. Assim, a criação de um programa de governo traz em seu bojo diversas ações que deverão se delongar por outros exercícios, exigindo recursos financeiros para a quitação das respectivas despesas. O gestor, ao acrescer a despesa do Estado, deve ter o cuidado de avaliar a capacidade financeira, atual e futura, de a Administração arcar com a elevação dessas despesas confrontando-a com a previsão de suas receitas, de modo a permitir uma melhor análise sobre a conveniência e a oportunidade de serem iniciadas, expandidas ou aperfeiçoadas ações governamentais que poderão ficar posteriormente comprometidas diante da insuficiência de receitas.

(...)

24. Portanto, na linha do entendimento doutrinário citado, entendo que as despesas ordinárias e rotineiras da Administração Pública, já previstas no orçamento, destinadas à manutenção das ações governamentais preexistentes, prescindem da estimativa de impacto orçamentário-financeiro de que trata o art. 16, I, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Por isso, entendo que a determinação contida no item 1.1, alínea "b" do Acórdão 1817/2003 - Primeira Câmara (Relação 50/2003, Ata 29/2003), feita à Câmara dos Deputados, não deva persistir.

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No mesmo sentido é a Orientação Normativa NAJ-MG Nº 01, de 17 de março de 2009 [04], a qual, ainda que não vinculativa, serve de excelente fonte de consulta:

ATIVIDADES ROTINEIRAS NÃO SE CARACTERIZAM COMO AÇÃO GOVERNAMENTAL. Art. 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Não se aplica o art. 16 da LRF quando a despesa não se referir a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental. Não se considera ação governamental a despesa destinada ao custeio de atividades rotineiras e habituais dos órgãos federais, ainda que haja aumento no custo de tais atividades, em virtude de sua expansão ou aperfeiçoamento.

Por conseguinte, é possível deflagrar o certame licitatório, antes mesmo da aprovação da Lei Orçamentária Anual – LOA, desde que o Administrador, com fundamento no Projeto de LOA e no Plano Plurianual – PPA, tenha a certeza de que contará com receita suficiente para o cumprimento do último estágio da despesa, qual seja, o pagamento do serviço a ser contratado.

Se o Administrador tiver a garantia de que poderá contar com crédito orçamentário e financeiro suficiente para o cumprimento da obrigação a ser assumida pela Administração, poderá deflagrar o certame licitatório. Todavia, para a efetiva contratação (atente-se, para a assinatura do instrumento contratual), deverá contar com a efetiva disponibilidade orçamentária e financeira para fazer frente à despesa que a Administração se obrigará a pagar, ainda que a disponibilidade orçamentária e financeira seja decorrente do denominado duodécimo, previsto no art. 68 da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2010 (Lei n.º 12.017, de 12 de agosto de 2009).

Ademais, frise-se: não se considera ação governamental a despesa destinada ao custeio de atividades rotineiras e habituais dos órgãos federais, ainda que haja aumento no custo de tais atividades, em virtude de sua expansão ou aperfeiçoamento. Nessa linha de raciocínio, insta destacar que, para aferimento da natureza da despesa, um bom parâmetro, ainda que inicial, é a verificação da finalidade da despesa. Em outras palavras, se a despesa se destina ao cumprimento da atividade finalística ou não da Autarquia. Em grande parte dos casos, o custeio de atividades rotineiras e habituais não desaguará em atividade fim do Instituto.

Por tudo dito, concluo que não se aplica o art. 16 da LRF quando a despesa não se referir a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa, não havendo necessidade, portanto, da apresentação de estimativa do impacto orçamentário-financeiro ou mesmo da declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a LOA e compatibilidade com o PPA e com a LDO.


Notas

  1. CORREIA SOBRINHO, Adelgício de Barros; ARAÚJO, Aldem Johnston Barbosa. A Lei de Responsabilidade Fiscal em linhas gerais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 53, jan. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2522>. Acesso em: 20 out. 2010.
  2. RIGOLIN, Ivan Barbosa. Que significa Aça Governamental, no Art. 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal? Sobre a necessidade de clareza das leis. Biblioteca Digital Fórum Administrativo – Direito Público – FA, Belo Horizonte, ano II, nº 11, janeiro de 2002. Disponível em: <www.editoraforum.com.br>. Acesso em: 20 out. 2010.
  3. MOTTA, Carlos. Eficácia nas licitações e contratos, Belo Horizonte: DelRey Editora, 2008.
  4. O NAJ é o Núcleo de Assessoramento Jurídico, componente da estrutura da Advocacia-Geral da União.
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Sobre o autor
René da Fonseca e Silva Neto

Procurador Federal. Coordenador Nacional de Matéria Administrativa da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes - ICMBio. Ex-Coordenador Nacional do Consultivo da PFE/ICMBio. Bacharel em Direito pela UFPE. Especialista em Direito Ambiental. Coautor do livro Manual do Parecer Jurídico, teoria e prática, da Editora JusPodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, René Fonseca. Do significado e da amplitude da expressão "ação governamental" para fins de aplicação do artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal em processos licitatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2670, 23 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17689. Acesso em: 28 mar. 2024.

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