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A cognição judicial no processo civil brasileiro

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14/12/2010 às 06:34
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4.Conclusões

1.O termo cognição é uma palavra equívoca. Neste trabalho ela foi empregada para representar o ato volitivo e intelectivo do julgador ao apreciar uma demanda que lhe é formulada. Cognição, pois, foi entendida como o juízo de valor que o magistrado realiza sobre os pressupostos autorizadores do julgamento do mérito e sobre as pretensões apresentadas no processo com o fim de decidi-las, utilizando-se, para a formação de seu convencimento, da consideração, da valoração e da análise das provas e alegações produzidas pelas partes.

2.A cognição materializa-se, corporifica-se, na motivação da sentença. É neste momento que o julgador apresenta os argumentos jurídicos e fáticos que o conduziram a aceitar determinadas premissas em detrimento de outras.

3.A delimitação do objeto de estudo da cognição, outrossim, é ponto de divergências doutrinárias. Não há consenso entre os estudiosos, destacando-se três correntes:

a)sustenta que o objeto da cognição é um binômio de questões (pressupostos processuais e condições da ação);

b)apregoa que a cognição abrange a análise de um trinômio de questões (pressupostos processuais, condições da ação e mérito da causa); e

c)defende que o enfoque da cognição seria um quadrinômio de questões (pressupostos processuais, supostos processuais, condições da ação e mérito).

04.A corrente predominante em nosso ordenamento jurídico é a que se filia ao trinômio de questões.

Os pressupostos processuais, primeiro elemento de cognição judicial, são indispensáveis à válida constituição (formação) e ao regular desenvolvimento da relação jurídico-processual. Podem ser divididos em:

a)Pressupostos de existência (petição inicial, jurisdição e citação);

b)Pressupostos de validade (petição inicial apta, órgão jurisdicional competente, juiz imparcial, capacidade de agir, capacidade de ser parte, capacidade postulatória); e

c)Pressupostos processuais negativos (litispendência, coisa julgada, perempção e convenção de arbitragem).

05.As condições da ação, por sua vez, são imprescindíveis à obtenção de uma decisão de mérito. Nesta seara, sem desconhecer a importância em outros campos da dogmática processual civil, destaca-se a grande influência de Enrico Tullio LIEBMAN.

O posicionamento consagrado na doutrina é o que arrola três condições da ação (teoria eclética): possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade das partes. LIEBMAN, porém, reformulou seu pensamento e passou a defender a existência de apenas duas condições da ação (interesse de agir e legitimidade das partes) por entender que a possibilidade jurídica do pedido integrava o próprio interesse de agir.

6.O mérito, por fim, seria o terceiro objeto de cognição judicial. Novamente aqui, como sói ocorrer em todos os institutos jurídicos, há várias teorias sobre o quê corresponderia ao mérito.

O legislador pátrio, ao elaborar o Código de Processo Civil, utilizou a terminologia lide para designar o mérito da causa e consignou, ainda, que a lide era o objeto do processo. Esses argumentos estão consignados no item 6 da Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, onde se lê que "...O projeto só usa a palavra lide para designar o mérito da causa... A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes...". Sob esse viés, lide e mérito seriam sinônimos, figurando o mérito como o objeto do processo.

Não obstante, consultando o Código de Processo Civil vislumbra-se que essa correlação não é unívoca. Em inúmeras passagens a palavra mérito é empregada para significar processo (artigos 128, 70ss, 468). Em outras ocasiões foi substituída pela expressão questões de mérito (artigo 330, I, do Código de Processo Civil).

Não há, assim, ao menos no campo legislativo, noção exata do que se deva entender pela palavra mérito, tampouco se podendo afirmar, insofismavelmente, que ele corresponda à lide.

Cada corrente doutrinária atribui ao mérito particular compreensão:

a)Mérito como objeto do processo;

b)Mérito como questões;

c)Mérito como sinônimo de demanda;

d)Mérito como relação jurídica controvertida;

e)Mérito como lide; e

f)Mérito como pretensão.

07.Além de enfocar o objeto da cognição, procurou-se demonstrar as formas pelas quais a cognição pode ser estudada. Demonstrou-se, assim, que essa análise pode dar-se num plano vertical ou horizontal.

No plano horizontal a cognição espelha a extensão ou a amplitude com que a matéria controvertida pode ser analisada pelo Estado-juiz. No plano vertical a cognição indica a profundidade com que o juiz pode analisar a relação jurídico-processual deduzida em juízo. Quanto mais profunda a análise dos pontos a serem decididos, maior será a certeza do julgador ao prolatar a decisão.

Tem-se, pois, que a cognição no plano horizontal pode ser parcial (ou limitada) e plena. No ângulo vertical a cognição é superficial (ou rarefeita), sumária e exauriente.

08.A cognição também foi estudada quando atrelada a alguns institutos específicos, a saber, a tutela antecipatória e a técnica de resolução liminar do processo baseada no artigo 285-A do Código de Processo Civil.

09.Aplicada às tutelas antecipatórias, a cognição varia de acordo com o fundamento pelo qual o magistrado deferiu o pedido.

Quando concedida com respaldo na fumaça do bom direito e no perigo de demora (inciso I), a tutela antecipatória, ante a sumariedade da decisão, é fruto de uma cognição sumária, porém plena. Plena porque o julgador não tem amarras no plano horizontal, e sumária porque é possível que o requerido demonstre, ao longo da instrução processual, que o requerente não fazia jus ao bem da vida pretendido, a despeito de inicialmente concedido (o que só foi possível com o exaurimento da cognição).

10.Se o fundamento legitimante da tutela antecipatória for o abuso do direito de defesa (inciso II do artigo 273 do Código de Processo Civil), a cognição, no plano vertical, será sumária pois, apesar de o requerido ter extrapolado nas prerrogativas para o exercício de seu direito de defesa, ainda é possível que, ao final, reste demonstrado que o requerente não faz jus à tutela do direito pretendida.

No plano horizontal, a cognição judicial pode ser parcial ou plena, a depender da natureza da pretensão deduzida em juízo, vez que é esta natureza que norteia a cognição neste plano e não a profundidade com que as matérias são analisadas.

11.Na tutela antecipatória deferida com base em pedido incontroverso tem-se cognição exauriente e parcial. Exauriente porque a parte adversa sequer contesta a existência e titularidade daquela parcela do direito reconhecido. Parcial porque o julgador está adstrito aos limites em que o pedido tornou-se incontroverso. Não lhe é dado antecipar, sob este fundamento, nada que transcenda o âmbito da incontrovérsia.

12.A tutela antecipatória concedida na sentença é, inquestionavelmente, resultado de cognição exauriente e plena. Em verdade, o julgador concede a tutela antecipatória neste momento como técnica de julgamento para garantir imediata efetividade à sua decisão, vez que este capítulo não está sujeito a recurso dotado de efeito suspensivo automático.

13.Por fim, a cognição nas decisões proferidas com adminículo no artigo 285-A, do Código de Processo Civil, é exauriente e parcial. Exauriente porque o julgador decide definitivamente o conflito de interesses contrapostos sem qualquer necessidade de dilação probatória. Parcial porque o magistrado está limitado, por lei, a decidir demandas que versem unicamente sobre matéria de direito. É vedado ao julgador, com base nesta técnica de julgamento, decidir pretensões que demandem instrução probatória ou mesmo que acarretem um julgamento favorável ao autor.

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14.A correta compreensão da abrangência da cognição judicial, tanto no que concerne àquilo que deve ser analisado (trinômio de questões) quanto ao que se refere à extensão desta perquirição, contribui para a efetividade da tutela jurisdicional.Essa efetividade, anote-se, não está necessariamente atrelada à cognição exauriente e plena. É possível, e as vezes necessário, que a tutela de um direito seja autorizada apenas com base em cognição sumária, perdurante tal situação até a prolação da sentença de mérito. Não se vislumbra, por isso, afronta aos direitos das partes. O que se almeja é a efetiva proteção de um direito, ainda que fundamentado num juízo de verossimilhança. Quando se aumenta a profundidade da cognição perde-se em celeridade de tutela.


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Sobre o autor
Murilo Carrara Guedes

Escrivão Criminal, especialista em Direito Processual Civil pela ABDCONST - Associação Brasileira de Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Murilo Carrara. A cognição judicial no processo civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2722, 14 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18025. Acesso em: 18 abr. 2024.

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