RESUMO: O presente texto busca analisar a existência do poder geral de cautela da Administração Pública no âmbito do processo administrativo, assim como discorrer a respeito dos requisitos para o seu exercício. Pretende-se identificar ainda a compreensão desse assunto pela doutrina e pela jurisprudência pátrias.
SUMÁRIO: 1. Poder geral de cautela da Administração Pública. 2. Requisitos para o exercício do poder geral de cautela pela Administração Pública. 3. Desnecessidade de contraditório prévio. Referências.
I. Poder geral de cautela da Administração Pública.
No âmbito do Código de Processo Civil, o poder geral de cautela se encontra positivado nos artigos 273 ("antecipação da tutela pretendida", uma vez presente "fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação") e 798 ("poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas", uma vez presente "receio" de "lesão grave e de difícil reparação").
Importa destacar que o poder geral de cautela é inerente ao exercício da atividade decisória. Entre outros, vide acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADI-MC n. 4 [01] e pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ no Agravo Regimental na Medida Cautelar n. 8.752/RJ [02] e na Medida Cautelar n. 3.791/MG [03].
Daí que, antes mesmo da edição da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, já resultaria natural que o poder geral de cautela fosse exercido igualmente na atividade decisória administrativa.
Com a edição da Lei n. 9784/1999, foram editados dois dispositivos relativos ao exercício do poder geral de cautela pela Administração Pública.
De um lado, o artigo 61, parágrafo único, consagrou a positivação do poder geral de cautela especificamente no âmbito da interposição de recurso administrativo.
Art. 61. Salvo disposição legal em contrário, o recurso não tem efeito suspensivo.
Parágrafo único. Havendo justo receio de prejuízo de difícil ou incerta reparação decorrente da execução, a autoridade recorrida ou a imediatamente superior poderá, de ofício ou a pedido, dar efeito suspensivo ao recurso.
De outro lado, o artigo 45 do mesmo diploma positivou o poder geral de cautela de forma genérica na esfera administrativa.
Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.
A respeito do poder geral de cautela da Administração Pública, Osório (2010, p. 98) [04] defende sua inserção no conceito de poder de polícia administrativa, porém com viés preventivo. Para esse autor, há diferença sensível entre as medidas de polícia acauteladoras e as sanções administrativas, cada qual submetida a regime jurídico diverso. Enquanto as primeiras se destinam a evitar a ocorrência de violação à ordem jurídica, as segundas se prestam a reprimir a violação já perpetrada.
No mesmo sentido, Mello (2010, p. 859) [05] anota que as medidas cautelares se destinam a "prevenir danos sérios ao interesse público ou à boa ordem administrativa", e, diferentemente das sanções administrativas, não possuem a finalidade de intimidar ou punir infratores, mas, sim, "a de paralisar comportamentos de efeitos danosos ou de abortar a possibilidade de que se desencadeiem".
2. Requisitos para o exercício do poder geral de cautela pela Administração Pública.
O artigo 45 da Lei n. 9.784/1999 trata de modo lacônico a respeito dos requisitos para o exercício do poder geral de cautela, mencionando apenas que tal se dará "em caso de risco iminente" e mediante motivação.
Segundo Barros (2005, p. 120) [06], tendo em vista que a Lei n. 9.784/1999 não trata com a devida suficiência a respeito dos requisitos do poder geral de cautela, "a concessão de medidas cautelares é sempre possível por aplicação subsidiária do processo civil, através dos arts. 273 e 796 e seguintes".
Com base nessa analogia com o Código de Processo Civil, Barros (2005) aponta como requisitos (i) a verossimilhança das alegações, (ii) a comprovação das alegações, (iii) o risco de dano ou de perecimento de direito e (iv) a irreversibilidade do dano.
Em posicionamento similar, Franco (2008, p. 146) [07] defende que são dois os requisitos para a concessão de medida cautelar em processo administrativo: a demonstração de existência do direito a ser tutelado e da situação de urgência.
Em resumo, os requisitos seriam os já conhecidos fumaça do bom direito e perigo na demora.
3. Desnecessidade de contraditório prévio.
O artigo 45 da Lei n. 9.784/1999 dispensa a manifestação do interessado anteriormente à adoção da medida cautelar para arrostar o risco iminente.
No entanto, tal disposição merece ser interpretada restritivamente, sob pena de violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
De fato, a adoção da medida acauteladora sem a prévia oitiva do interessado apenas se tornará viável quando o prazo a ser despendido com tal diligência significar a irremediável materialização do dano.
Nessa hipótese excepcional, estará configurada a colisão de direitos: de um lado, o direito sob risco de perecimento; de outro, o direito do interessado a se manifestar previamente à tomada de providência gravosa.
Sendo assim, será possível a relativização – ou postergação – do direito de manifestação prévia com a finalidade de se evitar o perecimento de direito que se encontra sob risco iminente
Nessa hipótese, os princípios do contraditório e da ampla defesa restarão mitigados e deverão ser exercidos em momento posterior à adoção da medida cautelar.
Segundo Moreira (2003, p. 295) [08], "não há supressão do contraditório, mas inversão temporal na incidência do princípio".
No mesmo sentido, Lima (2005, p. 65) [09] pontua que "primeiro, remedia-se o risco; depois, atende-se ao contraditório e à ampla defesa".
Mello (2010, p. 859) [10] registra que é legítima a adoção de medidas cautelares sem contraditório prévio, até mesmo em razão de sua natureza não sancionatória. No entanto, caso a providência cautelar seja medida prévia à imposição de sanção administrativa, esta última apenas poderá ser imposta depois de oferecida oportunidade de defesa.
Referências
BARROS, Wellington Pacheco. Curso de processo administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
FRANCO, Fernão Borba. Processo administrativo. São Paulo: Atlas, 2008.
LIMA, Arnaldo Esteves. O processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010.
MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a Lei n. 9.784/1999. São Paulo: Malheiros, 2003.
OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
Notas
- AÇÃO DIRETA DE CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º DA LEI N 9.494, DE 10.09.1997, QUE DISCIPLINA A APLICAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. MEDIDA CAUTELAR: CABIMENTO E ESPÉCIE, NA A.D.C. REQUISITOS PARA SUA CONCESSÃO. [...]. 5. Em Ação dessa natureza, pode a Corte conceder medida cautelar que assegure, temporariamente, tal força e eficácia à futura decisão de mérito. E assim é, mesmo sem expressa previsão constitucional de medida cautelar na A.D.C., pois o poder de acautelar é imanente ao de julgar. Precedente do S.T.F.: RTJ-76/342. [...]. (ADC-MC 4, SYDNEY SANCHES, STF).
- MEDIDA CAUTELAR. RECURSO ESPECIAL. EFEITO SUSPENSIVO. NEGATIVA. PREJUDICIALIDADE. JUÍZO. PRESIDÊNCIA. TRIBUNAL DE ORIGEM. NÃO OCORRÊNCIA. [...]. 3 - Além disso, a tutela cautelar deita raízes, em última ratio, no Poder Geral de Cautela, inerente a todo e qualquer Juízo, seja ele monocrático ou colegiado, e exercido por aferição individualizada, em cada caso concreto, informada pela livre convicção. (AGRG na MC 8.752/RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 02/09/2004, DJ 20/09/2004 p. 294).
- PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR PARA ATRIBUIR EFEITO SUSPENSIVO A ACÓRDÃO DE SEGUNDO GRAU. AÇÃO ORDINÁRIA. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. SERVIÇOS DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL. INEXISTÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS DO FUMUS BONI JURIS E DO PERICULUM IN MORA. [...]. 2. A adoção de medidas cautelares (inclusive as liminares inaudita altera pars) é fundamental para o próprio exercício da função jurisdicional, que não deve encontrar obstáculos, salvo no ordenamento jurídico. Portanto, o poder geral de cautela há que ser entendido com uma amplitude compatível com a sua finalidade primeira, que é a de assegurar a perfeita eficácia da função jurisdicional. Insere-se, aí, sem dúvida, a garantia da efetividade da decisão a ser proferida. [...]. (MC 3.791/MG, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/02/2002, DJ 18/03/2002 p. 173).
- As medidas de polícia, ademais, diferentemente do que ocorre com as sanções, podem ter um caráter preventivo, perseguindo o bem comum, a consecução da boa ordem no uso dos bens e serviços públicos, visando o exato cumprimento da lei e das disposições normativas pertinentes. Exemplos de medidas de polícia são o fechamento de locais e retirada de produtos de circulação.
certo é que o parentesco das medidas de polícia com as sanções administrativas é forte, podendo produzir confusões. Um critério adequado diz respeito à funcionalidade cautelar ou punitiva. Quando uma medida é aplicada com objetivo acautelatório, para preservar direitos ou provas, certamente estaremos diante do poder de polícia, que se reveste de uma dimensão processual direcionada à legitimação da tutela urgente de interesses difusos ou coletivos, através da atuação do Poder Público. As medidas punitivas buscam uma resposta estatal dotada de maior estabilidade, dando resolução a problemas que se revistam de natureza litigiosa.
[...]
As chamadas medidas preventivas podem ser compreendidas nesse âmbito. Tais medidas são adotadas antes de se produzir determinados perigos. O objetivo é, justamente, evitar a ocorrência de determinados fatos, impedir que se consume uma violação da ordem jurídica, considerando que há uma antecipação da ilicitude da conduta, a partir de presunções cautelares, para estancar seu prosseguimento, evitando que culminasse numa agressão maior e mais intensa ao ordenamento jurídico. As sanções administrativas, ao contrário, são consequência do cometimento de uma infração administrativa, constituindo uma repressão, uma resposta cabal a um fato ilícito, não apenas cautelar e provisório. O pressuposto é, nessa seara, a realização de um comportamento proibido, representando, enfim, um posterius, em relação às medidas cautelares pertinentes, ao passo que no campo das medidas preventivas outro é o pressuposto, dado que inexiste pretensão de uma resposta cabal a um fato ilícito, mas apenas de uma proteção provisória a direitos.
No entanto, o processo administrativo admite a concessão de medidas cautelares, sempre de caráter provisório, durante a sua tramitação, sem necessidade de que isso se verifique em autos apartados, desde que seja para garantir a eficácia da decisão final. Não há necessidade de se buscar distinção se estas medidas têm a roupagem de liminares, cautelares autônomas ou mesmo de antecipação de tutela, como ocorre no processo civil. Não se pode esquecer que o processo administrativo prima pela formalidade mínima.
Embora as leis que tratam do processo administrativo, quando tratam, não contemplem esta previsão com a devida suficiência, a concessão de medidas cautelares é sempre possível por aplicação subsidiária do processo civil, através dos arts. 273 e 796 e seguintes.
Afinal, sendo o processo um instrumento para a resolução de um conflito, disto não escapa o processo administrativo como espécie que é. Por conseguinte, existindo um processo administrativo em andamento, (a) – prova do bom direito de quem requer, (b) – verossimilhança, (c) justo receio de vir a ser frustrada a decisão final e (d) – a possibilidade de lesão de difícil, incerta ou impossível reparação, a medida cautelar é o instrumento acautelatório até necessário".
Dessa forma, possível determinar, nos processos administrativos, provimento de urgência, quer sejam relativos à antecipação dos efeitos do ato final, quer constituam providência para preservar pessoas ou coisas. Dois são os requisitos para tanto; a demonstração de uma suficiente probabilidade de existência do direito a ser tutelado e de uma situação de urgência que autorize a concessão dessa tutela provisória. Esses requisitos devem ser objeto de uma cognição sumária e, portanto, devem ser demonstrados – e instrumentalizados – em processo administrativo, pouco importando se em processo preparatório ou nos autos de processo já instaurado, ou, ainda, em processo que se inicia com a cognição sumária e posteriormente é utilizado para a cognição exauriente".
Nesta hipótese não há supressão do contraditório, mas inversão temporal na incidência do princípio. O interessado não é intimado anteriormente à concretização da providência acauteladora justamente a fim de viabilizar a realização desta – seja porque a intimação é inviável devido ao curto espaço de tempo disponível para a prática do ato, seja porque a prévia intimação frustraria sua concretização.
De qualquer forma, o contraditório é pleno no momento imediatamente posterior à providência necessária. O interessado tem acesso à providência e seus resultados; podendo questionar, inclusive, a legitimidade de sua adoção.
Destaque-se a imperiosidade da concretização fática absolutamente incontroversa do risco iminente. Deverá ser evento sério, imediato e intransponível no tempo. Somente em casos nos quais haja iminência de danos irreparáveis e a medida acauteladora seja indispensável para os evitar é que a Administração poderia agir sem um prévio processo administrativo regular. Caso assim não seja a providência adotada pela Administração será nula de pleno direito, não podendo gerar qualquer efeito jurídico.
Por outro lado, a motivação deverá ser plena (fundamentos de fato e de direito) e simultânea à "providência". Não será possível sua adoção imotivada para, em vista de seu resultado, ser formalizada a fundamentação do ato".
que não seria, como não é, admissível é manietar a ação administrativa, no aguardo de prévia manifestação do interessado, quando a situação de fato é iminente, urgente. Primeiro, remedia-se o risco; depois atende-se ao contraditório e à ampla defesa.
Eis a exceção, que se justifica ante a iminência do dano, pois a regra constitucional é no sentido de que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (art.5º, LVI, da CF)".