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A viabilidade da teoria da argumentação jurídica na aplicação dos direitos fundamentais.

Uma análise a partir da colisão de princípios com base no caso Siegfried Ellwanger (julgamento pelo STF do HC 82.424-2)

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18/03/2011 às 08:48
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III – DA ADMISSIBILIDADE DA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: UM ESTUDO DO CASO SIEGFRIED ELLWANGER (JULGAMENTO DO HC. 82.424 – 2 PELO STF)

3.1. Situando o Caso.

Na etapa anterior à que agora se inicia buscou-se apresentar de forma sucinta os principais aspectos da Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy, cuja instrumentalidade permite uma adequação daqueles à estrutura formal de uma sentença normativa. Ainda se ressaltou a peculiaridade dos hard cases, assim como a necessidade destes de serem submetidos a critérios outros além dos ofertados pelo princípio subsuntivo, de aporte dedutivista.

Já os questionamentos vindouros tentarão demonstrar, através de um caso emblemático na jurisprudência da Suprema Corte Brasileira, que a tese do discurso jurídico enquanto caso especial do discurso racional geral e, principalmente, a regra da ponderação dos princípios são elementos viáveis na busca de uma racionalidade ao se tratar de casos em que houver conflitos entre valores constitucionalmente defendidos.

A decisão judicial aqui coligida, suporte para as observações teóricas que se pretende desenvolver, é o julgamento em Sessão Plenária pelo Supremo Tribunal Federal do habeas Corpus (84.424) em setembro de 2003.

Neste caso, tratou-se de decidir sobre o remédio constitucional impetrado em favor do escritor e editor gaúcho Siegfried Ellwanger contra uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, que não reconheceu a prescrição de processo criminal no qual o paciente fora condenado por crime de racismo por escrever livros, em princípio [51], anti-semitas e pro – nazistas.

A condenação inicial havia sido imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por entender crime de racismo a edição e venda de livro com apologia de idéia preconceituosa (anti-semitismo). Os livros mencionados na sentença foram "Holocausto Judeu ou Alemão? – nos bastidores da Mentira do Século" de própria autoria de Ellwanger, assim como "A História Secreta do Brasil", "os Protocolos dos Sábios de Sião", entre outros.

Como se perceberá no transcrever das próximas páginas, o debate gravita sobre a questão de serem tais produções literárias uma manifestação de pensamento, albergada no direito fundamental de liberdade de expressão, ou se as mesmas configuram prática de racismo, afrontando-se assim a dignidade humana; outro direito fundamental.

3.2. Breve consideração acerca do julgamento Ellwanger sob a ótica da tese do caso

Especial.

De uma forma geral, tomando-se como referência o caso neste capítulo suscitado, não há real necessidade de se proceder a uma análise minuciosa da aplicação das "Regras da Razão (2)" para se aceitar a plausibilidade das mesmas. Isto porque, em suma, elas essencialmente indicam a possibilidade de uma liberdade discursiva dos participantes em um determinado processo jurídico no qual se busca uma tomada de decisão. São, de fato, exigências de igualdade de direitos e de universalidade, comuns a uma teoria procedimental.

Já quanto às Regras de Fundamentação (5), embora aqui também não careçam de uma exaustiva explanação, pode-se afirmar que requerem uma sucinta análise tomando-se em conta um processo de decisão judicial. Ao se postular que "Devem ser respeitados os limites de realizabilidade faticamente dados" esta regra específica mostra uma necessidade do julgador de atentar para as restrições que naturalmente um caso concreto oferece. Logo, o fato trazido pela jurisprudência constante deste capítulo não se afasta desta necessidade. Caso a decisão no julgamento do habeas corpus houvesse sido pelo deferimento, o que não ocorreu, não deixaria de observar os limites fáticos imanentes ao próprio caso.

Impõe-se ainda ratificar que na decisão proferida pelo Supremo não são afastadas as pretensões de correção, uma vez que se busca em todos os votos conformar as justificativas aos pressupostos da lei e aos julgados precedentes de natureza semelhante, por exemplo. Estes dois marcos referenciais tidos como premissas para se alcançar uma justificação correta acrescidos da necessidade de observância da dogmática jurídica é que caracterizam o discurso jurídico de caso especial do discurso racional geral.

Diversamente da exposição acima traçada, a que procura demonstrar a pertinência da técnica da ponderação dos princípios no caso aqui sob estudo, requer uma abordagem minuciosa das regras de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Isto se fará nas linhas que se segue.

3.3. A aplicabilidade da técnica da ponderação dos princípios no julgamento do HC.

8424-2 pelo Supremo Tribunal Federal.

Os votos para o estudo que se pretende propor foram escolhidos a partir da repercussão que obtiveram, assim como da notória estrutura didática em que foram apresentados. Por conta dos limites inerentes ao tipo de trabalho aqui proposto, não se lançou mão de uma investigação exaustiva dos proferimentos emitidos por cada um dos Ministros da Suprema Corte. Para a demonstração da pertinência da Teoria defendida ao longo das páginas a esta precedentes, buscar-se-á um estudo de cunho mais qualitativo do que quantitativo da decisão do Supremo Tribunal Federal. A análise que se segue tem como escopo tomar os votos dos Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes e Marco Aurélio como referencial para as considerações acerca da aplicabilidade da ponderação dos princípios enquanto meio eficiente para solucionar conflitos entre direitos fundamentais.

O princípio da proporcionalidade e suas três máximas (adequação, necessidade e proporcionalidade estrita), assim como a Lei de Colisão serão os elementos teóricos investigados a partir do conteúdo exarado em cada voto relativo julgamento do HC supracitado.

A partir do caso concreto aqui trazido, poder-se-á examinar se a decisão contida nos votos, seja "condenando" Ellwanger por racismo, seja entendendo que este essencialmente se utilizou da liberdade de expressão, atendeu às máximas do princípio da proporcionalidade.

Ao se perscrutar as considerações feitas pelo Ministro Celso de Mello, vê-se que a ponderação dos princípios constitucionais é objeto real das preocupações da Suprema Corte. Neste sentido dispõe ele em seu importante voto:

É inquestionável que o exercício concreto da liberdade de expressão pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais, igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas, em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição. [52]

Deste excerto, clara fica a constatação da possibilidade fática de choque entre direitos, inclusive de mesmo nível, haja vista constarem da proteção máxima constitucional. Conforme exarado em capítulo anterior, a colisão ocorre em virtude do exercício prático dos direitos assegurados. Portanto, em um caso concreto.

O mesmo Ministro, dando continuidade ao seu raciocínio, mostra a necessidade da criteriosidade no uso da ponderação, conforme expõe:

Entendo que superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar (...) em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais (...).

Nestas considerações visualiza-se, indiretamente, a menção aos critérios reunidos sob o princípio da ponderação. Na máxima da adequação subentende-se que o meio do qual se pretende lançar mão deve ser o mais poupado possível em ralação a "direitos fundamentais que enseja". Quando Celso de Mello explica que a escolha por um direito que venha preponderar não deve importar um esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, reafirma a primeira máxima acima referida.

Mas para que determinado direito-princípio prepondere em relação a outro, deve-se, segundo a Lei de Colisão, observar o caso concreto e suas circunstâncias (C). Segundo o voto em análise, poderia ser elaborada a seguinte expressão: o P1(dignidade humana) sob certa circunstância (C) precede o P2(liberdade de expressão). Assim C → R, ou seja, a partir de certa circunstancia - a percebida no caso da publicação dos livros –, a Regra (sentença normativa) deve ser a mais adequada.

Celso de Mello entendeu que a circunstância não era de simples liberdade de expressão, mas transcendia para a "ofensa aos valores de igualdade e de tolerância". Ao se fazer a ponderação concreta de bens e valores sobressaiu-se o da dignidade da pessoa humana.

Como se percebe, neste primeiro voto estudado, há aplicabilidade da Teoria da Argumentação Jurídica para o problema apresentado.

Passa-se, então, para o estudo do voto do Ministro Gilmar Mendes.

Tecendo observações sobre o conflito entre os direitos atinentes ao caso, diz:

(...) a tipificação de manifestações discriminatórias, como racismo, há de ser fazer com base em um juízo de proporcionalidade. O próprio caráter aberto – diria inevitavelmente aberto – da definição do tipo, na espécie, e a tensão dialética que se coloca em face da liberdade de expressão impõe a aplicação do princípio da proporcionalidade. [53]

No que se refere ao acima exarado, as elucidações relativas à necessidade do uso da ponderação feitas na explanação do Ministro Celso de Mello também se aplicam, não havendo necessidade de repeti-las.

Já para a seguinte consideração:

O princípio da proporcionalidade. Nesse contexto, ganha relevância a discussão da medida de liberdade de expressão permitida sem que isso possa levar a intolerância, ao racismo, em prejuízo da dignidade humana, do regime democrático, dos valores inerentes a uma sociedade pluralista. (...) Da mesma forma, não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão, no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da igualdade e dignidade humana. [54]

Pode-se abstrair o entendimento de que o limite que deve ser imposto (por meio de uma sentença normativa) ao exercício de um direito deve permitir a efetivação do outro em conflito. Quer dizer: procura-se afastar medidas restritivas que não detenham a condição de viabilizar a concreção de um direito contraposto. Isto é a máxima da adequação conforme exposto em capítulo anterior.

Gilmar Mendes, que votou pelo indeferimento do habeas corpus, optou por uma decisão limitadora do direito de liberdade de expressão que fizesse preponderar o direito da dignidade humana. Contudo, não o fez por entender ser este superior ao primeiro. Enfatize-se que na teoria da ponderação dos princípios não existe um catálogo pré-fixado em que se mensuram os valores constitucionalmente protegidos, a saber, princípios fundamentais. O integrante da Suprema Corte procedeu pautado na análise feita da circunstância (C) do caso concreto. A partir desta é que expôs o princípio que julgou preponderante.

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Para corroborar a tese de que não apenas os instrumentos descritos por Robert Alexy na sua teoria da ponderação são aqui utilizados, como também há uma identificação com os mesmos por parte do Ministro cujo voto ora se analisa, apresente-se o seguinte trecho:

A máxima da proporcionalidade, na expressão de Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986), coincide igualmente como chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal como o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. [55]

Também de grande importância para a finalidade buscada por esta etapa do trabalho são as seguintes afirmações do Ministro Gilmar Mendes ainda constantes do seu voto:

(...) cumpre indagar se a decisão condenatória atende, no caso, às três máximas parciais da proporcionalidade.

É evidente a adequação da condenação do paciente para se alcançar o fim almejado, qual seja, a salvaguarda de uma sociedade pluralista, onde reine a tolerância. Assegura-se a posição do Estado, no sentido de defender os fundamentos da dignidade da pessoa humana (...) o princípio do repúdio ao terrorismo e ao racismo, que rege o Brasil nas suas relações internacionais (art. 4º, VIII), e a norma constitucional que estabelece ser o racismo um crime imprescritível (art. 5 º. XLII)

Neste ponto há a explicita demonstração da técnica utilizada para se chegar ao raciocínio do indeferimento do Habeas Corpus impetrado. Reputa-se, portanto, na concepção do Ministro, uma medida adequada restringir a liberdade de expressão, em favorecimento da dignidade humana com base nos elementos fáticos descritos no acórdão.

Em seguida, citando a máxima da necessidade, assevera-se:

Também não há dúvida de que a decisão condenatória, tal como proferida, seja necessária, sob o pressuposto de ausência de outro meio menos gravoso e igualmente eficaz. Com efeito, em casos como esse, dificilmente vai se encontrar um meio menos gravoso a partir da própria definição constitucional. Foi o próprio constituinte que determinou a criminalização e a imprescritibilidade da prática do racismo. Não há exorbitância no acórdão.

Neste posicionamento percebe-se que não há, segundo Gilmar Mendes, outra maneira por meio da qual a sentença normativa possa trazer menor lesão ao direito de liberdade de expressão para se priorizar o valor dignidade humana. Por isso, diz-se meio "mais suave" em virtude de causar o menor dano ao direito contraposto ao que se prioriza.

Em alguns trechos finais de seu voto, ao concordar com a decisão antecedente proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, Gilmar Mendes ainda postula:

A decisão atende, por fim, ao requisito da proporcionalidade em sentido estrito. Nesse plano, é necessário aferir a existência de proporção entre o objetivo perseguido, qual seja a preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista, da dignidade humana, e o ônus imposto à liberdade de expressão do paciente. Não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. Não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcessível para o sistema democrático. Todavia, é inegável que essa liberdade não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, tal como afirmado no acórdão condenatório. (...)

Assim, a análise da bem fundamentada decisão condenatória evidencia que não restou violada a proporcionalidade.

Nestes termos o meu voto é no sentido de se indeferir a ordem de habeas corpus. [56]

O raciocínio que se pode obter das conclusões acima expostas é o de que se buscou aplicar uma relação de custo-benefício com a medida defendida no voto. Ou seja, a medida restritiva propugnada pela sentença normativa deve proporcionar maiores benefícios ao direito tutelado do que prejuízos impostos ao direito que se busca restringir. Nisto consiste a ponderação em sentido estrito. Na essência, meio e fim são analisados quanto a sua (des) proporcionalidade para o caso concreto.

Aprecie-se agora, também sob a ótica da ponderação dos princípios, o voto do Ministro Marco Aurélio.

O primeiro trecho relevante para a análise aqui proposta assim foi estabelecido:

A par de outros enfoques já apreciados nos valores dos ministros que me antecederam, o caso denota um profundo, complexo e delicado problema de Direito Constitucional, e daí o tom paradigmático deste julgamento: estamos diante de um problema de eficácia de direitos fundamentais e da melhor prática de ponderação dos valores. (...) Refiro-me ao intricado problema da colisão entre os princípios da liberdade de expressão e da proteção à dignidade do povo judeu. Há de definir-se se a melhor ponderação dos valores em jogo conduz à limitação da liberdade de expressão pela alegada prática de um discurso preconceituoso atentatório à dignidade de uma comunidade de pessoas ou se, ao contrário, deve prevalecer tal liberdade. Essa é a verdadeira questão constitucional que o caso revela. [57]

De forma bastante clara o Ministro coloca os elementos que devem nortear a decisão a ser tomada pela Suprema Corte brasileira. Indubitavelmente o cerne do problema é o circunstancial choque dos princípios acima alegados no que se refere ao seu exercício pelos respectivos titulares: de um lado, um editor – também escritor de algumas obras – que tem o direito constitucional a exprimir suas idéias e as propor à apreciação pública; de outro, um povo que, como qualquer outro, tem o direito de ter sua dignidade preservada da prática de quaisquer atos ofensivos à sua dignidade.

Não há que se hesitar sobre o fato de que uma vez tomada uma posição em prol de um dos valores em tela, o outro sofrerá certa limitação quanto ao seu exercício. Para justificar qualquer linha decisória, torna-se pertinente lançar mão das regras da ponderação, o que se perceberá em outros excertos expostos abaixo.

Ao demonstrar sua linha de pensamento para o caso concreto, Marco Aurélio assevera:

A única restrição possível à liberdade de manifestação do pensamento, de modo justificado, é quanto à forma de expressão, ou seja, à maneira como esse pensamento é difundido. Por exemplo, estaria configurado o crime de racismo se o paciente, em vez de publicar um livro no qual expostas suas idéias acerca da relação entre os judeus e os alemães na Segunda Guerra Mundial, como na espécie, distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre com dizeres do tipo "morte aos judeus", "vamos expulsar estes judeus do país". (...) O paciente restringiu-se a escrever e a difundir a versão da história vista com os próprios olhos. (...) imaginando-se integrado a um Estado Democrático de Direito, acionou a livre manifestação, a convicção política sobre o tema tratado. Exercitou a livre expressão intelectual do ofício de escritor e editor, conforme previsão nos incisos IV, VIII e XIII do artigo 5º da CF.

O livro deixa claro que o autor tem uma idéia preconceituosa acerca dos judeus. Acredito que, em tese, devemos combate qualquer tipo de idéia preconceituosa, mas não a partir da proibição na divulgação dessa idéia, não a partir da conclusão sobre a prática do crime de racismo. (...) Não é a condenação do paciente por esta Corte – considerado o crime de racismo – a forma ideal de combate aos disparates de seu pensamento. [58]

Nota-se que não há por parte do Ministro uma prévia escolha quanto ao princípio preponderante. A precedência se dá a partir da análise do caso concreto e de suas peculiaridades. Daí entender-se que na teoria dos princípios, tal qual propugnada por Alexy, referendada aqui por Marco Aurélio, não existe uma ordem gradativa de peso entre valores constitucionalmente protegidos. Por serem mandados de otimização, realizam-se na medida da possibilidade ofertada pelas circunstâncias concretas.

Mas do excerto acima coligido, estas não são as deduções mais contundentes. O que aflora com maior nitidez e consistência é a alusão indireta à máxima da adequação e necessidade. Quando se afirma "não é a condenação (...) a forma ideal de combate aos disparates do seu pensamento" utilizou-se a regra da adequação para se inferir que não houve uma adequada utilização do meio escolhido (prisão-condenação) tendo em vista o fim almejado (garantia do direito à dignidade humana).

Já em relação à regra da necessidade, mais evidente ficou a sua utilização quando se entendeu que "devemos combater qualquer tipo de idéia preconceituosa, mas não a partir da proibição na divulgação dessa idéia. Esta proibição, muito menos a prisão, não é a menor desvantagem possível ou o meio mais suave que um detentor de direito (liberdade de expressão) deve sofrer para que um direito circunstancialmente contraposto (dignidade humana) possa ser efetivar. Assim, consoante à segunda máxima, não haveria exigibilidade da medida repressora.

Ainda de forma bastante didática, o mesmo Ministro expõe a aplicação da regra da adequação:

(...) cabe indagar se condenar o paciente e proibi-lo de publicar os pensamentos, apreender e destruir as obras editadas são os meios adequados para acabar com a discriminação contra o povo judeu ou com o risco de se incitar a discriminação. Penso que não, uma vez que o fato de o paciente querer transmitir a terceiros a sua versão da história não significa que os leitores irão concordar, e, ainda que concordem, não significa que vão passar a discriminar judeus. (...) [59]

Em relação à necessidade, observe-se:

(...) a medida escolhida não deve exceder ou extrapolar os limites indispensáveis à conservação do objeto que pretende alcançar. Com esse subprincípio, o interprete reflete, no caso, se não existem outros meios não considerados pelo Tribunal de Justiça que poderiam igualmente atingir o fim almejado, a um custo ou dano menor aos interesses dos cidadãos em geral. [60]

Na hipótese, a observância desse subprincípio deixa ao Tribunal apenas uma solução cabível, ante a impossibilidade de aplicar outro meio menos gravoso ao paciente: conceder a ordem, garantindo o direito à liberdade de manifestação do pensamento, preservados os livros, já que a restrição a tal direito não garantirá sequer a conservação da dignidade do povo judeu.

Por último, discorre sobre a proporcionalidade em sentido estrito:

(...) o interprete deve questionar se o resultado obtido é proporcional ao meio empregado e à carga coativo-interverntiva dessa medida. É realizado um juízo de ponderação no qual se engloba a análise de adequação entre meio e fim, levando-se em conta os valores do ordenamento jurídico vigente Robert Alexy, relativamente a esse princípio, aduz: "quanto mais grave é a intervenção em um direito fundamental, tanto mais graves devem ser as razões que a justifiquem". E Celso Antonio Bandeira de Mello explica: "É que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis a satisfação do interesse público". Assim, cumpre perquirir se é razoável, dentro de uma sociedade plural, como a brasileira, restringir-se determinada manifestação de opinião por meio de um livro, ainda que preconceituosa e despropositada, sob o argumento de que tal idéia incitará a prática de violência, considerando-se, todavia, o fato de inexistirem mínimos indícios de que o livro causará tal revolução na sociedade brasileira.

Assim, aplicando o princípio da proporcionalidade na hipótese de colisão da liberdade de manifestação do paciente e da dignidade do povo judeu, acredito que a condenação efetuada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – por sinal, a reforma sentença do juízo – não foi o meio mais adequado, necessário e razoável. [61]

Tendo em vista o caráter notadamente elucidativo com que foram dispostos os três pontos nas considerações feitas por Marco Aurélio, não se tornam necessárias explanações adicionais para confirmar a viabilidade da técnica por ele empregada.

Contudo, exige-se, por ora, algo mais sobre a aplicação da Lei de Colisão, pertinente a seguinte observação em outro momento do voto aqui estudado:

A questão agora, portanto, surge com novo enfoque, a sociedade brasileira é predisposta a praticar discriminação contra o povo judeu? Temos indícios em nossa história de movimentos sociais discriminatórios contra aquele povo? Não me refiro, obviamente, a iniciativas isoladas.

É imprescindível que a solução deste habeas passe necessariamente por um exame de realidade social concreta, sob pena de incidirmos no equívoco de efetuar o julgamento a partir de pressupostos culturais europeus. [62]

Marco Aurélio, de forma indireta, suscitou a Lei de colisão, cujo centro de suas prescrições atine à importância que deve ser dada às circunstâncias empiricamente verificadas (C). A partir delas se decide pela precedência de P1 (princípio da liberdade de expressão) ou de P2 (princípio da dignidade humana). Como foi visto anteriormente, as máximas da ponderação são fundamentais para se chegar à decisão constituída de uma justificação mais racional, menos arbitrária.

A partir da sucinta análise empreendida aqui acerca dos votos dos Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes e Marco Aurélio, pode-se vislumbrar a plausibilidade da técnica da Ponderação dos princípios como um elemento eficaz para equacionar problemas cuja natureza principal resida na colisão de interesses constitucionalmente protegidos.

Importa ainda esclarecer que este raciocínio compreende parte integrante de uma sistemática de maior estrutura, tal qual a Teoria da Argumentação Jurídica, cuja maior importância está em tratar habilmente dos problemas relativos à justificação das decisões judiciais no seu aspecto mais delicado: a fundamentação das premissas adotadas.

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Sobre o autor
Elder Sena

Advogado no Rio de Janeiro; Pós-graduando em Direito Administrativo; Coordenador de Avaliação e Execução em Licitações na Administração Central da Companhia Brasileira de Trens Urbanos - CBTU.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SENA, Elder. A viabilidade da teoria da argumentação jurídica na aplicação dos direitos fundamentais.: Uma análise a partir da colisão de princípios com base no caso Siegfried Ellwanger (julgamento pelo STF do HC 82.424-2). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2816, 18 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18710. Acesso em: 18 abr. 2024.

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