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Art. 226: o campo minado da interpretação constitucionalizada do direito de família

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08/04/2011 às 15:53
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3. SEM DÚVIDA O CAPITALISMO, hoje mais do que nunca, ao instituir uma civilização injusta e alienada precisa do gozo lúbrico como marketing, e que para isso precisa bajular o desejo e estimular seu olhar, ou seja, criar e escrever no corpo a necessidade do estômago e da fantasia que realize no objeto mulher ou homem a sua forma-mercadoria. É a economia da produção do desejo e da busca do prazer. Marx analisou isso na esfera da economia política com uma precisão admirável, em seus manuscritos da Paris (1844), disse ele: "(...) no mundo alienado do capitalismo as necessidades não são manifestações de poderes latentes do homem, isto é, não são necessidades humanas; no capitalismo, "cada homem especula sobre como criar uma nova necessidade em outro homem a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em uma nova dependência, e incitá-lo a um novo tipo de prazer e, por conseguinte, a ruína econômica. Todos tentam estabelecer sobre os outros um poder estranho para com isso lograr a satisfação de sua própria necessidade egoísta. Com a massa de objetos, portanto, cresce também o rol das entidades estranhas a que o homem fica sujeito. Todo produto novo é uma nova potencialidade de embuste e roubo mútuos" (MARX,1844, apud FROMM,1983). Com efeito, é fácil compreender que a estratégia é comprometer o apetite de uma pessoa de forma descontrolada, fazendo-a incorrer em algum vício que além de incontrolável, não deve ter conteúdo algum... O que além de destronar a moral ou a ética, permite, sem violência física (o que abre espaço legal para o evangelho dos "direitos humanos", uma nova espécie de devoção do tipo "lavo as mãos" para as vítimas depois do "fim" da Guerra Fria), a transformação cínica da disciplina em controle. Dois coelhos, uma só cacetada. Mas há problemas ai. Tudo passa pela produção e distribuição dos desejos, e ocorre que os desejantes são, justamente, os pobres, os ricos não, são imediatamente os consumidores. Dupla face de um problema de caráter mutável. Mas, hoje, apenas uma das faces de nosso Juno se revela visível nas mídias, a dos desejantes que, geralmente, leva a equívocos graves de análise das lutas sociais. Neste sentido, diz-nos Renato Janine Ribeiro: (...) "Hoje uma parte da criminalidade mais odiosa no meio urbano vem daquilo que chamo a inveja do tênis, que ocorre quando um menino mata outro por causa de um Reebok, um Nike. É um crime por motivo fútil – mas que mostra algo interessante, a enorme importância do desejo numa luta que é social" (RIBEIRO, 2002). A rigor, convém observar, en passant, que, lacto senso, não se trata de uma "luta que é social". É prudente não confundir as esferas. Observem bem, na outra face, menos visível, mas não menos odiosa, jovens consumidores jogam álcool e incendeiam um mendigo na rua enquanto ele dormia, não porque queriam um Reebok, um Nike, mas apenas para quebrar o tédio de suas existência. O que eles desejavam? Teriam inveja do sono? Pura diversão por transgressividade? E agora, o que é "a enorme importância do desejo numa luta que é social"? Seria o desejo anti-social?


4. TRATA-SE DO DESEJO? Então qualquer coisa pode ser entronizada: álcool, maconha, cocaína, crack, sexo, violência etc., e, supletivamente, andar na moda, o mau gosto cultural, a gula, o entretenimento (ideologia pão e circo) e essa coisa irrecusável que é a "mulher gostosa" – Figura imprescindível em toda festa, em toda orgia, baile funk, balada, revista masculina, programa de auditório da TV, filmes pornôs etc. – E sob a hegemonia da TV Globo, da revista Playboy e da indústria pornográfica, o show não pode parar, não pára e dá o espetáculo! E assim, diz Baudrillard: "Percorremos todos os caminhos da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. Hoje o jogo está liberado, o jogo já está feito (tudo é sexual, tudo é político, tudo é estético, tudo é desejo, tudo é espetáculo, tudo é cultura, tudo é arte, tudo é direito. Simultaneamente), e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: QUE FAZER APÓS A ORGIA?" (BAUDRILLARD,1996). Tocar fogo num mendigo? Que fazer? Sim, é verdade, aceleramos para o futuro, mas, "aceleramos no vácuo, porque todas as finalidades da liberação já ficaram para trás", observa Baudrillard. E para desfrutar ao máximo tudo isso só é preciso "saúde", "segurança", "direitos", em uma palavra, dinheiro. Peter Sloterdijk tem razão ao afirmar que: "Existem poucas formulações que estejam à altura da famosa expressão "torna-te quem és" e da fórmula correspondentes "faze o que queres"." (SLOTERDIJK, 2004). Mas também é preciso na contramão indagar, como Primo Levi: "É isto um homem?", e saber por que dele nos veio à pergunta. A questão proposta por Gilles Lipovetsky é extremamente pertinente: Será que a hipermodernidade, caracterizada por um consumo emocional (crescente) e por indivíduos preocupados antes de tudo com a própria, saúde e segurança (direitos) é o sinal da ascendência da barbárie sobre nossas sociedades? (LIPOVETSKY, 2004). É possível! Como também exeqüível e veraz.


5. SEM DÚVIDA ISSO DEIXA AS pessoas más "felizes". Pessoas que vêem ou pressentem que a única condição para a sobrevivência e afirmação de seus desejos ou a eliminação de seus tédios existenciais está na transgressão da Norma. E eis o exemplo (além da prostituta, do homossexual, do esquizofrênico etc.) paradigmático desse novo ser sujeito de direitos que é esse tipo libidinal enurésico, essa figura sombria que é, observa Lynch, "o viciado em drogas, um doente voluntário do Desejo (entre muitos outros) que não é vítima da suposta malignidade fundamental de algumas substâncias e nem um simples subproduto da demonização da drogas (ou outro motivo qualquer) [...], mas o emblema social de uma política do prazer (ideologicamente representada na mídia na figura emblemática de escabrosos traficante e proxenetas de um mundo cão) em sociedades que não podem garantir a persistência (ou a realização) do Desejo" (LYNCH, 1999). O ou a psicopata, o rufião ou a rufia, o pedófilo ou a pedófila [que as "Paquitas", por exemplo, encheram o olhar de excitação e a boca d’água e liberaram as possibilidades como entretenimento promocional na canalhice diária de uma "rainha dos baixinhos" etc., reinventando as passarelas e os concursos de beleza que se tornaram atrativos para o lucrativo negócio do sexy, da moda, do belo, do gostoso e da prostituição], podem estar no comando, nos bastidores, nas platéias dos "programas infantis", mas também entre algum de nossos(as) vizinhos(as), "não é uma pessoa, ou seja, é a verdade de uma auto-representação que não podemos conceber para nós mesmos" (LYNCH, 1999), e ao mesmo tempo o anúncio da "vida feliz" por vir, a vida nua, e a sobrevivência dos interesses ou os prazeres dos mais degenerados e capazes de tudo. E como em questão de Direito, como todos julgam tê-lo ou merecê-lo independente de seu mister pessoal, (o que não falta e prevalece são as más intenções dos que, quando maioria ou os mais poderosos economicamente, lucram ou se comprazem com a regressão da vida humana ao nível da existência zoológica), é difícil saber o que fazer. E tudo se torna assim "direito subjetivo", "direitos de personalidade", "direitos individuais"etc., e Nietzsche observou muito bem, para "as pessoas más que são felizes – uma espécie de homens (e mulheres) sobre o qual os moralistas se calam" (NIETZSCHE, 1987). E a questão que mais assedia meu espírito, diante da impotência radical das respostas morais ou éticas no corpo das legislações, é o que dizer em defesa da Família? Da minha, por exemplo, que desmoronou e sobrevive em minha memória e, às vezes, "vingativa" ao orientar meus futuros planos de uma nova estação da vida. E não é outra a razão que me fez voltar-se criticamente contra o Manual de Direito das Famílias.


6. TENHO QUE OPOR-ME, RADICALMENTE infeliz e solidário que sou. Assim, quando a professora Berenice Dias disse que o Estado "não pode deixar de respeitar o direito à liberdade e garantir o direito à vida, não só a vida como substantivo, mas de forma adjetivada: vida digna, vida feliz" (DIAS, 2006), percebi com clareza e um frio na espinha que ela não sabe muito bem o que está dizendo em nome do Direito. "Vida digna, vida feliz"? Imediatamente, que dizer? A questão depende da luta de classes sociais, e mesmo entre segmentações de uma mesma classe. E da Weltanschauung que as guiam. Então, limito-me, aqui, a apresentar algumas referências obliquas que propiciam a orientação própria para a reflexão. Pascal dizia: "Não é vergonha para o homem sucumbir em meio à dor, é vergonha sucumbir em meio ao prazer". Vergonha inevitável depois das orgias que dão o toque de pseudofelicidade em vidas vazias. Ainda inevitável, apesar do Prozac... O que é uma vida digna em um mundo de valores decaídos? Como o Estado pode garanti-la? E o que é uma "vida feliz" em meio a tanta dor? Como o Estado pode garanti-la? Lembro-me de um poema de Bertold Brecht, que diz mais ou menos isso: "Como posso comer e beber?/ Se a comida que como é tirada de quem tem fome/ A água que bebo faz falta aos que tem sede"... E quanto à vida, a vida nua, há uma proposição de Cerroli que diz tudo: "Oh vida, eu te amo, mas não todos os dias". E nos permite colocar a questão: se a amasse todos os dias como poderia morrer pela liberdade etc.? E há uma indagação extremamente problemática devida a Victor Hugo: "Para que serve a felicidade?" Ora, o Estado deve garantir a vida humana e o que Tzevetan Todorov chama de "virtudes cotidianas", ou seja, "virtudes apropriadas para tempo de paz" que devem ser mantidas inclusive em tempos de guerra "se se quer não apenas vencer, mas também manter-se humano", e não tutelar os desejos subjetivos dos indivíduos em relação a ela quando transgride, por exemplo, na perspectiva de Tzvetan Todorov, a dignidade e o cuidado para com o próximo, ou o respeito à vida do espírito. (TODOROV, 1995). E deve garanti-la como realidade ética e moral, que segundo Hegel, é. É seu dever-ser. Mesmo porque, do outro lado, a felicidade é mesquinha e, como dizia Diderot: "As teorias da felicidade nunca contarão senão a história dos que a fazem". É outra história que nos interessa, e que, paradoxalmente (?), não desperta o interesse dos operadores do denominado Direito das Famílias, nas palavras de Pascal Bruckner, "a da vontade de felicidade como paixão própria do Ocidente após as revoluções francesa e americana" (BRUCKNER, 2002). Vontade, digamos de passagem, que nasce, justamente, da visão da infelicidade como destino -- contribuição histórica da Igreja Católica. E é na existência imperativa de uma mesquinha "vontade de felicidade" que a observação de François Mauriac deve ser colocada: "Existem seres que a felicidade persegue como se fosse a infelicidade e na verdade é o que ela é". Então, quando é possível adjetivar a vida na forma "vida digna, vida feliz" senão pelo processo histórico de humanização do homem que se dá pela afirmação e radicalização dos valores? Para finalizar, vale lembrar uma observação sutil, porém forte e profunda, do papa João Paulo II: "Cristo ensinou a fazer o bem pelo sofrimento e a fazer o bem aquele que sofre". Diante de palavras tão sábias, que dizer, mesmo sendo pagão ou agnóstico, senão "Cristo seja louvado!"

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7. SE NIETZSCHE TEM RAZÃO, ou seja, "para a descoberta de determinadas partes da verdade, os maus e os infelizes estão mais favorecidos e tem maior possibilidade de êxito" (NIETZSCHE, 1987), há, nos infelizes, ainda esperança. Em relação ao Direito das Famílias os maus (maus teóricos) fizeram a sua parte, e o pior se concretiza. Está na hora dos infelizes, se já não for tarde demais, darem conta de sua parte, com a Crítica ao Direito das Famílias, e talvez o melhor (melhor teoricamente) se realize. Mas apenas se feito e deve ser feito (que movimento paradoxal) de forma implacável e com crueldade. Obviamente não se trata de proposições tipo "quem com ferro fere, com ferro será ferido". Mas sim que, penso em Clément Rosset: "Tudo que visa atenuar a crueldade da verdade, as asperidades do real, tem como conseqüência infalível desacreditar a mais genial das empresas assim como a mais estimável das causas" (ROSSET, 1989). E esta é a razão pela qual, em relação à Família e ao Direito de Família devemos colocar como tarefa as questões que em Kant alcançaram a máxima produtividade, e talvez alcancemos certa fertilidade em nossa reflexão e maior Justiça em nosso julgamento: O que posso conhecer? O que devo fazer? O que posso esperar? É isso! Eu apenas começo a realizá-la, por gostar da idéia de amar de novo tanto quanto por ser intolerante (como todo bom julgamento), logo, não me traio por ser implacável e cruel, e, principalmente, um amante infeliz (como a própria condição humana), logo, tenho grande interesse na realização da tarefa. De qualquer forma o ânimo tanto quanto a ilusão situam-me de forma crítica diante do Direito das Famílias na perspectiva da esperança e do fracasso, que é a de todos nós. Não é fácil "dar a outra face para bater". Entregar-se ao amor, como a semente se confia a terra, como a hélice do moinho se abandona ao vento... E viver amplificado. Jurandir Freire Costa observou com muita propriedade: "nada traz o alento do amor-paixão romântico correspondido. Diante dele tudo empalidece; sem ele, até o que engrandece, perde a razão de ser" (COSTA, 1998). Por isso sempre será dignificante tentar afastar o egoísmo e sofrer por amor! E como Camus sabia, sei (e de tanta saudade nunca vou esquecer) que estreitar o corpo da mulher amada, "é reter contra si esta alegria estranha que desce do céu para o mar". E tenho clara a certeza de que "esta alegria estranha", tão intensa e tão cheia de alento tem seu fundamento no amor (para Espinosa "em razão da fragilidade de nossa natureza"), na necessidade de e nas normas para constituir uma família. É quando verdadeiramente encontramos um lar, sentimo-nos finalmente em casa, e, paradoxalmente, um profundo estranhamento que, como veremos, pode ser fatal. Mulher, casamento, filhos etecetera e tal, na mais sublime das promessas jurídicas: "O casamento estabelece comunhão plena de vida"; e na frágil devoção liberal de ser "com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges", do Art. 1511 do Código Civil, e, porque não dizer, amparadas no forte cinismo do "Art. 1513 – "É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família". E, no entanto!...

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Sobre a autora
Walter Aguiar Valadão

Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALADÃO, Walter Aguiar. Art. 226: o campo minado da interpretação constitucionalizada do direito de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2837, 8 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18857. Acesso em: 8 nov. 2024.

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