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Art. 226: o campo minado da interpretação constitucionalizada do direito de família

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08/04/2011 às 15:53
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16. HÁ PROBLEMAS, EM SEGUNDO lugar, onde a jurisprudência tem consagrado um "rol aberto" (numerus apertus) de "entidades familiares" tendo como paradigma, por exemplo, a Lei n º. 8.009/ 1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do "bem de família". A coisa aqui é bem interessante! "Bem de Família", na clara explicação da professora Maria Berenice Dias: "Trata-se de qualidade que se agrega a um bem imóvel e seus móveis, imunizando-os em relação a credores, como forma de proteger a família que nele reside" (DIAS, 2006). Diz o grande civilista e professor Luis Edson Fachim: "a proteção de um patrimônio mínimo vai ao encontro dessas tendências (de despatrimonialização das relações civis), posto que põe em primeiro plano a pessoa e suas necessidades fundamentais" (FACHIM, 1999). Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: "É o chamado direito ao mínimo existencial, revelando um dos aspectos concretos, práticos, da afirmação da dignidade da pessoa humana" (FARIAS, ROSENVALD, 2010). Evidentemente, não se trata de "qualidade que se agrega a um bem imóvel e seus móveis", "despatrimonialização das relações civis", "direito ao mínimo existencial" etc., ou todas as bobagens do tipo, mas, sim, de patrimonializar as uniões estáveis mirando especularmente a nova figura denominada "família homoafetiva" etc. O que os ilustres defensores do Direito das Famílias jamais resgatarão em suas reflexões é conhecido como o paradoxo de Condocert, "que tem mais de dois séculos: a soma das vontades individuais não produz necessariamente a melhor e mais racional solução para o grupo" (DUPAS, 2005), o que nos obriga ao desespero de imaginar qual o limite da fragmentação e da dissolução da Família na forma dos delírios jurídico que a corrompem e se encontra ao largo de todo livro de "Direito das Famílias". Onde iremos parar? Aonde chegaremos? Et coetera. Impossível imaginar, tudo é possível! Segundo a jurisprudência, têm sido consideradas "entidades familiares" um grande número de arranjos de membros de uma Família segundo o conteúdo imposto por sua dissolução e o número de membros, a feitura dos laços, o grau de consangüinidade etc., remanescentes com direitos legais de usufruto e/ou herança vindos a lume a critério do interprete, no bestiário da imaginação jurídica, numa estranha e crescente taxionomia. A saber: a) solteira com seus pais; b) viúva com filhos; c) devedor, mãe e avó; d) irmãos solteiros; e) devedor, seus filhos e suas irmãs; f) ex-mulher e filhos do devedor; g) devedor que vive só; h) o solitário (solteiro, viúvo, separado judicialmente ou divorciado que viva só). E podemos imaginar também um item "g"e outro "h", ou seja, g) etc. e tal, e h) conforme os animais se dividam ou não de acordo com certa enciclopédia chinesa citada por Borges e lembrado por Foucault ao produzir seu famoso texto "As palavras e as Coisas" (FOUCAULT, 1981), já que o mundo jurídico caminha a deriva. Portanto, esclarece-nos Lucas Júdice: "Se olharmos as entidades familiares sob o prisma da forma, de fato poderemos concluir que a constituição pretendeu tratar cônjuges, companheiros e famílias monoparentais como se uma só fossem, o que pode gerar uma série de estranhezas" (JUDICE, 2009). O que por si só revelaria seus equívocos. Em nota de pé de página (70), obriga-nos a imaginar tal série de estranhezas numa situação específica de pai e filho como família monoparental: "Supondo igualdade das entidades familiares, como argumenta a doutrina majoritária, há de se concluir que o tratamento dispensado a eles deve ser o mesmo dado aos casamentos e às uniões estáveis, eis que o art. 226 $3º, CF assim determina. Desse modo, caso o filho venha a se mudar para outra cidade, ou por briga ou por outro qualquer motivo, está desfeita a família monoparental, devendo incidir, por certo, efeitos patrimoniais de partilha. Veja-se o absurdo! Pela lógica da doutrina majoritária, porém tais anomalias ocorreriam, afinal, entidade familiar é entidade familiar (Art. 226, CF)". Quais, portanto, os limites jurídicos da fúria divisória e insensata? Não seria o controle, a posse, o usufruto dos "bens de família"? Indiscutivelmente! Ora o valor do patrimônio e sua partilha é o grande filão de enriquecimento para advogados na Vara de Família... E é pelo que se digladiam os litigantes. É que o Art. 1.790 prescreve que "apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da relação é que são passíveis de partilha entre companheiro supérstite e os outros herdeiros" (JÚDICE, 2009). Portanto, se o CC/2002 considera que os companheiros não são herdeiros necessários, que fazer? Estrategicamente, argumentando em nome da aplicação do princípio constitucional da igualdade, o que se visa é a declaração de inconstitucionalidade do Código Civil de 2002 no que tange aos direitos sucessórios, e, taticamente a instituição do Bem de Família abre a porta para essa argumentação, visto que, observa Lucas Júdice, "não houve uma equiparação no tratamento entre cônjuges e companheiros, entendendo que, se a Constituição igualou os institutos como entidade familiar, não poderia o CC/02 diferenciá-los" (JÚDICE, 2009). E realmente a lei infraconstitucional tratou de forma diferenciada o casamento da união estável, tanto que, continua Lucas Júdice: "Na esfera sucessória, o novel Código Civil dispensou aos companheiros apenas o artigo 1.790, dispondo ambígua e escassamente sobre todo o direito hereditário; por outro lado, a mesma compilação normativa estabeleceu regras mais precisas para o cônjuge, como se vê nos artigos 1.829, 1.830, 1.831, 1.832, 1.837, 1.838, 1.839, 1.844, 1.845 e 1.846" (JÚDICE, 2009). Considera-se erro legislativo (p. ex., ZENO VELOSO, 2003, p. 285) ter sido colocado o Art. 1.790 nas Disposições Gerais do Livro V (Do Direito das Sucessões), bobagem, como diz-nos ironicamente Lucas Júdice: "caso todas as disposições almejadas pelos doutrinadores estivessem nas "Disposições Gerais", não haveria discussões sobre esse ponto específico". E conclui com segurança: "O que se depreende dessa escolha legislativa é que os companheiros não são considerados como herdeiros necessários, e nem deveriam sê-lo, pois essa é uma das maiores distinções entre os dois institutos, tendo em vista que os cônjuges possuem tal prerrogativa" (JÚDICE, 2009). E finalizando: "Essa regra específica está diretamente relacionada a outro ponto que difere o companheiro do cônjuge: o artigo 1.829 aduz que aos cônjuges compete a totalidade da herança quando não concorrem com descendentes ou ascendentes, ao passo que, para os companheiros, a totalidade da herança só será possível caso não existam outros parentes sucessíveis até o parentesco de 4º. Grau (inc. IV do art. 1.790)" (JÚDICE, 2009).


17. A INSTITUIÇÃO DO "BEM DE FAMÍLIA" expressa na Lei 8009/90 encontra-se respaldada no Art. 5º e 6º da CF, nos Arts. 1711 a 1722 do CC, e, também, no Art. 548 CC e o Art. 649 CPC e na EC nº 26/2000, e na Súmula nº 364 do STJ que diz: "O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas". Como conseqüência muita bobagem tem sido dita e feita sem parar. Em conseqüência, mais uma, diz a professora Berenice Dias, "mais do que uma definição, acaba sendo feita a enumeração dos vários institutos que regulam não só as relações entre pais e filhos, mas também entre cônjuges e conviventes, ou seja, a relação das pessoas ligadas por um vínculo de consangüinidade, afinidade ou afetividade". Sim, "mais do que uma definição", quer dizer, uma reificação do sentido e uma alienação da existência da coisa que se define. Mais, então, para dizer menos. Que dizer?... Então, no decorrer de sua obra, "Manual de Direito das Famílias", a professora Maria Berenice Dias, a quem nutro profundo respeito, mas com quem não posso absolutamente concordar, tece um verdadeiro rosário de lamentações sobre a situação fática da mulher (aparentemente epistemológico), sem conseguir entender que, como observar Giddens: "Se as mulheres sempre mantêm relações privilegiadas com a ordem doméstica, sentimental ou estética, não é por simples inércia social, mas sim porque essas relações se ordenam de tal maneira que não mais entravam o princípio de autonomia e funcionam como vetores de identidade, de sentido e de poder privados; é do próprio interior da cultura individualístico-democrática que se reconstituem as trajetórias diferenciais dos homens e das mulheres" (GIDDENS,1991, Apud LIPOVETSKY, 2004). Não adianta, porque historicamente inútil, tratar a família patriarcal como bode expiatório! Esse negócio de "A dominação masculina" é a grande bobagem escrita por Pierre Bourdieu (BORDIEU, 2005). Com efeito, o problema é saber que é a "tal maneira" que as "relações privilegiadas" se ordenam na ordem doméstica. Creio que para isso sirva uma leitura submissa as idéias do proclamado Direito das Famílias. Mas, sem dúvida, com a lei 8009/1990, transparece efetivamente que, o conceito de entidade familiar abriga estruturas de convívio das mais diversas. Levado ao limite, o conceito de entidade familiar leva a pulverização e a perda de sentido do conceito de Família, alcançando a questão: "Uma formação social caracterizada pela coabitação de duas pessoas amigas que não sejam parentes, nem mantenham entre si relações sexuais, pode ser reconhecida família?" (CARVALHO ROCHA, 2009). Há problemas ai. E o principal acusa a mutação do Direito de Família em direito dos indivíduos, ou, então, em um direito dos amigos íntimos, porque na verdade com o termo Famílias não se trata mais de Família, mas de sua dissolução nos indivíduos que a compõem com a proteção jurídica a que fazem jus como causa ou efeito de conflitos subjetivos ou ambição ou egoísmo (conflitos objetivos). Neste sentido, alerta-nos Lipovetsky para o poder de um mundo globalizado pelo consumo: "É forçoso constatar que seu império não pára de avançar: o princípio do self-service, a busca de emoções e prazeres, o cálculo utilitarista, a superficialidade dos vínculos parecem ter contaminado o conjunto do corpo social, sem que nem mesmo a espiritualidade escape a isso. A religião atualizou-se com o consumo, abandonando o ascetismo em favor do hedonismo e do espírito festivo, enaltecendo os valores da solidariedade e do amor mais do que os da contrição e do recolhimento. E isso vale igualmente para a dimensão familial e para a relação com a ética, com a política, com o sindicalismo, ou ainda, com a natureza. A hipermodernidade funciona mesmo segundo a lógica da reciclagem permanente do passado, e nada parece escapar a seu domínio" (LIPOVETSKY, 2004). Mas isso não é todo problema. Há muitos mais. Neste sentido, afirma a professora Berenice Dias: "Dispondo a família de várias formações, também o direito de família precisa ter espectro cada vez mais abrangente" (DIAS 2006). Que entender por "espectro cada vez mais abrangente"? Não é difícil imaginar onde vamos parar! Todo indivíduo isolado é o espectro de uma família, logo, é uma entidade familiar. Qual a pretensão epistemológica ai envolvida? Diante não da Família, mas de seu "espectro cada vez mais abrangente", que é o Direito de Família? Difícil imaginar! Ou vice-versa: diante não do Direito de Família, mas de "seu espectro cada vez mais abrangente", o que é a Família? Difícil imaginar! As dificuldades de imaginar e propor respostas para as duas questões não residem simplesmente na inversão que as distingui, mas na radical diferença e no complexo inter-relacionamento dialético que estabelecem entre si. Ora, todas as entidades familiares reconhecidas pela lei e pela jurisprudência, na verdade, são apenas molecularmente família, e apenas famílias de direito e não família de fato; muitos laços foram desfeitos, relações foram interrompidas, o sentido liquefeito, os sentimentos diluídos, o amor corrompido etc., o que a descaracteriza originalmente e negativamente e a transforma qualitativa e quantitativamente. E muitas vezes, a maioria das vezes, o que a mantém juridicamente como entidade familiar são apenas interesses patrimoniais ou financeiros, e, além disso, nada mais que afetos neuróticos ou esquizofrênicos, relações sádicas e/ou masoquistas... O que vale é sentir-se viva, gozar, bater, assoprar, gritar, sussurrar, vitimar-se, lucrar... Concluindo, parece existir no coração do Manual de Direito de Famílias uma paradoxal controvérsia consigo mesmo que reflete a coexistência, nem sempre pacífica ou pacificada, de diferentes visões das mudanças sociais que dão a letra e o ritmo no samba do jurista aloprado. Por um lado, há a tese de que profundas mudanças econômicas, culturais e tecno-científicas etc. remodelam as estruturas sociais, inclusive a família, logo, o regramento jurídico da família não pode insistir, em perniciosa teimosia, no obsessivo ignorar das mudanças sociais. Afinal, ensina a professora Berenice Dias: "o influxo da chamada globalização impõe constante alteração das regras do direito de famílias". Por outro lado, há a tese de que as estruturas sociais são muito resilientes e que profundas mudanças sociais da família devem ser explicadas pela "adequação entre as estruturas sociais preexistentes e o capitalismo", logo, observa a professora Berenice Dias: "É preciso demarcar o limite de intervenção do direito na organização familiar para que normas estabelecidas não interfiram em prejuízos da liberdade do "ser" do sujeito". Uau! Dane-se, portanto, quem pensa que a preocupação do Direito das Famílias seja o "ser" da Família! Para vir a lume, portanto, um Manual Crítico de Direito das Famílias devemos atravessar um campo minado e traiçoeiro em busca da realização das tarefas exigidas. E aqui vamos nós, cautelosamente, devagarinho, recolhendo as minas, inutilizando-as! Por isso, quando eu morrer, a epígrafe que deve assinalar meu túmulo seja a mesma de que gostaria Frédéric Schiffter: "Ele chegou muito atrasado para tudo, mas sem se apressar". E a aporia que nos une aqui, é que não concordo com nenhuma das duas teses acima, vejo a consistência maior e mais complexa das coisas. "No mundo, todas as coisas são como são e se produzem como se produzem", escreve Wittgenstein no "Tractatus lógico-philosophicus". E se existe alguma esperança, nós é que devemos inventá-la, mas, do nada, nada vem e a armadilha está montada.

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Sobre a autora
Walter Aguiar Valadão

Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALADÃO, Walter Aguiar. Art. 226: o campo minado da interpretação constitucionalizada do direito de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2837, 8 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18857. Acesso em: 4 mai. 2024.

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