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O menor portador de deficiência e a inconstitucionalidade da lei do imposto de renda

01/07/2011 às 16:52
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1. INTRODUÇÃO

O presente artigo se originou de um estudo acerca da igualdade no direito tributário, especificamente em relação ao Princípio da Capacidade Contributiva, e sua aplicação na legislação do imposto de renda pessoa física. Não possui outro escopo, senão o de verificar a hipótese de incidência dos contribuintes (pessoas físicas), que possuem dependentes portadores de deficiência.

O Princípio da Isonomia (igualar os desiguais), recepcionado pelo sistema tributário nacional, conforme norma expressa na Constituição Federal (art. 5º, caput e outros), já havia sido estabelecido pelo filosofo Aristóteles na sua obra "Ética à Nicômaco", especialmente no Livro V que trata da teoria da justiça. Esse Princípio foi, posteriormente, reelaborado por alguns teóricos contratualistas, que estabeleceram os alicerces do Estado Nacional Moderno. A partir daí penetrou formalmente nas Declarações de Direitos, se constituindo em Princípio jurídico orientador dos diversos ramos do direito, inclusive do direito tributário.

Entendemos que o Principio da Isonomia é a matriz, da qual foi extraído o Principio da Capacidade Contributiva, daí a necessidade de verificar os reais contornos daquele Princípio na sua origem que, como dito, remonta ao filósofo Aristóteles.


2. JUSTIÇA EM ARISTÓTELES

Aristóteles entende que Justiça é a principal virtude e como tal, contém todas as demais virtudes, pois considera que o belo é justo, o bom é justo, o equilibrado é justo, o corajoso é justo. A esta justiça que engloba todas as virtudes, ele chamou de Justiça Geral.

Inserida na Justiça Geral encontra-se como espécie a Justiça Particular. Seu objetivo é a realização da igualdade entre os homens. É esta Justiça Particular, espécie da Justiça Geral, que nos permite conhecer a noção do "dar a cada um, o que é seu"; tratando os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida das suas desigualdades.

Tratar os iguais igualmente é fácil, ou menos difícil; posto que a aplicação de uma fórmula geral ( A=A e B=B ou 1=1 e 2=2 ) nos remete aos paradigmas de identidade. O problema surge quando devemos tratar os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades.

Para que o tratamento desigual reflita uma ação justa, é necessário, segundo Aristóteles, considerar a justiça particular em duas vertentes: a) a da progressão aritmética; e b) a da progressão geométrica.

2.1. JUSTIÇA CORRETIVA

À Justiça Particular, que tem por objeto a correção das transações entre os indivíduos, Aristóteles chamou de Justiça Particular Corretiva. Esta Justiça possui uma peculiaridade, que é a necessidade de uma terceira pessoa para o alcance do equilíbrio, o Juiz. Esta Justiça Particular Corretiva ele dividiu em: a) Comutativa, com objetivo preventivo. É a Justiça aplicada aos contratos, e que dá sustentação a chamada Teoria da Imprevisão; e, b) Reparativa, que visa reprimir a injustiça e reparar o dano. Perceba-se que em ambas, a figura do juiz como a terceira pessoa incumbida de promover a reparação do desequilíbrio é fundamental.

2.2. JUSTICA DISTRIBUTIVA

A par da Justiça Particular Corretiva, Aristóteles percebeu a existência de outra Justiça Particular, a qual denominou Justiça Particular Distributiva. Essa Justiça não se faz através de simples cálculos aritméticos, ou através da divisão de um todo por unidades. Sua aplicação se faz considerando à proporção que cada unidade representa em relação ao todo, criando uma distribuição sem dúvida mais justa.

Segundo Marilena Chauí (1998: 329), o entendimento da justiça distributiva ministrada por Aristóteles, leva o pensador atento a verificar que uma ação aparentemente justa, pode de fato ser injusta. Assim, por exemplo, se uma cidade tiver dez toneladas de trigo para distribuir aos cidadãos, durante uma guerra ou epidemia, se ela dividir o trigo aritmeticamente em porções iguais (justiça comutativa), dará a todos a mesma quantidade de trigo, sem considerar, por exemplo, o tamanho de uma família, se alguém possui outros alimentos, se alguém tem dinheiro para comprar alimentos em outra cidade. Neste caso a cidade será injusta, pois estará dando tratamento igual aos desiguais.

Como se nota, a Justiça distributiva vista tão somente como isonomia (tratar todos de forma igual), pode resultar distorções sociais. A cidade para ser justa, deve, portanto, dar a cada um segundo as suas necessidades, dividir proporcionalmente o trigo e igualar os desiguais, dando-lhes tratamento desigual.

A Justiça Particular Distributiva permite que, de forma mais justa, se distribua os bens da cidade; distribuição esta que deverá considerar primeiramente a necessidade e depois o mérito. Se, por um lado, a Justiça Distributiva busca diminuir as desigualdades ao distribuir os bens, por outro lado também busca diminuir as desigualdades ao cobrar os tributos, através da aferição da condição econômica de cada cidadão.

No direito tributário, esta condição econômica deve ser considerada pelo legislador ordinário, posto que sua autonomia para legislar não é absoluta, está submetida aos limites que lhe são impostos pelos Princípios Constitucionais.


3. OS LIMITES DO LEGISLADOR

A legislação tributária, desde a lei complementar até a mais singela portaria administrativa, deve seguir o rigor sistemático que garante segurança aos contribuintes. Esse rigor determina que uma norma encontre o fundamento da sua validade em outra norma, que lhe seja imediatamente superior.

No âmbito do direito tributário, o fundamento de validade de uma portaria, encontra-se em um decreto e o deste em uma lei (ordinária ou complementar) criadora do tributo, e o desta na lei complementar, que estabelece as normas gerais em matéria de tributação (atualmente o CTN).

Já o fundamento de validade desta lei complementar, se encontra na Constituição Federal. Conforme Paulo de Barros Carvalho (1993: 84), examinando o sistema de baixo para cima, cada unidade normativa se encontra fundada, materialmente e formalmente, em normas superiores. Invertendo-se o prisma de observação, verifica-se que das regras superiores derivam, materialmente e formalmente, regras de menor hierarquia.

Cabe, portanto, ao legislador como tarefa indeclinável, elaborar a lei tributária em conformidade com as normas superiores, especialmente os Princípios Constitucionais Tributários. O direito tributário não se circunscreve, portanto, a uma simples somatória de preceitos legais e de diplomas normativos, mas se caracteriza pela disposição organizada de normas e Princípios.


4. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS LIMITES DO LEGISLADOR

Conforme explanado, os Princípios Constitucionais (isonomia, capacidade contributiva, etc) ocupam uma posição privilegiada no sistema normativo, são considerados normas de hierarquia superior. Aliás, os Princípios Constitucionais não podem ser excluídos do sistema, nem mesmo mediante Emenda Constitucional; são considerados cláusulas pétreas, sequer podem ser objeto de deliberação a proposta de Emenda tendente a aboli-los (CF, art. 60, parágrafo 4º).

Existindo incompatibilidade (antinomia real) entre Princípios Constitucionais, e normas de lei complementar ou ordinária, prevalece o Princípio Constitucional, e a norma da lei deve ser considerada inconstitucional.

No âmbito tributário, dentre outros direitos e garantias fundamentais existentes, destaca-se o Princípio da Capacidade Contributiva, segundo o qual, sempre que possível os impostos terão caráter pessoal, e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte (CF, art 145 parágrafo 1º.).

A expressão "sempre que possível", explica a doutrina, não se refere a uma mera recomendação ao legislador com competência para criar tributo, pelo contrário, trata-se de uma imposição que somente poderá ser excepcionada, no caso dos impostos utilizados com finalidade extrafiscal, ou naqueles cujas características, não se sujeitam ao Princípio, como é o caso do IPI e do ICMS.

A aplicação da justiça distributiva encontra aplicação imediata no direito tributário brasileiro, já que este consagra o Princípio da Capacidade Contributiva, de tal forma que, uma norma, ao ignorar este Princípio Constitucional, deve ser declarada inconstitucional, com o seu consequente afastamento do sistema tributário.

Ao ser elaborada a norma deve receber especial atenção do legislador, mormente quanto à verificação de sua constitucionalidade, pois uma norma declarada inconstitucional produzirá instabilidade no sistema jurídico. Esta constitucionalidade normativa, abrange tanto uma análise formal (casa de debates, quórum de votação, promulgação ) quanto a análise material ( fundamento de validade na norma superior ).

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A Constituição Federal é a mais alta norma jurídica positivada, e todas as demais devem respeito as suas normas e Princípios. A Capacidade Contributiva é um Princípio Tributário Constitucional, e o desrespeito a sua aplicação gera na norma um vício de inconstitucionalidade material.


5. O MENOR PORTADOR DE DEFICIENCIA E A INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL NA LEGISLAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA

Coube ao legislador observar todas as regras de constitucionalidade, ao elaborar a legislação de imposto de renda da pessoa física, inclusive a aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva (elemento de produção da justiça distributiva).

Este pequeno estudo, alerta para a falta de aplicação do Princípio da Capacidade Contributiva, especificamente à tributação sobre a renda da pessoa física que, tem sob os seus cuidados, menor portador de deficiência; já que em outros aspectos desta legislação a observância foi feita, conforme se verifica, por exemplo, com a aplicação da alíquota progressiva.

Encontramos a aplicação do Principio da Capacidade Contributiva, na legislação do imposto de renda pessoa física, também no valor a ser abatido da base de calculo da tributação do imposto, que deve ser recolhido pelo contribuinte que possui um dependente que não alcançou a maioridade civil. Tal redução é feita sob o título de desconto por dependente. Constata-se que um contribuinte sem filhos, possuidor de uma renda de $ 3.000,00, tem capacidade contributiva superior à daquele que possui a mesma renda, porém tem sob seus cuidados um dependente que não alcançou a maioridade, já que o último terá gastos com saúde, educação, vestuário, alimentação, etc.

O legislador também tratou de suprimir as divergências de capacidade contributiva, do contribuinte que possui sob os seus cuidados uma pessoa portadora de deficiência, que já alcançou a maioridade civil. Por obvio, aquele contribuinte com renda de $ 3.000,00 mensais, terá a sua capacidade contributiva reduzida, se tiver aos seus cuidados um dependente que já alcançou a maioridade, entretanto portador de deficiência, devido aos gastos específicos gerados pelas necessidades específicas criadas pela situação fática.

Porém, esta mesma legislação não observou o desequilíbrio existente, quando ambas as situações ocorrem de forma simultânea na vida do contribuinte; ou seja, um dependente com menoridade civil e, ao mesmo tempo, portador de deficiência.

Tal contribuinte terá a seu encargo, as despesas iguais a daquele que possui um dependente que não atingiu a maioridade, acrescida das despesas do outro que possui um dependente que alcançou a maioridade, porém portador de deficiência, sofrendo, portando, um duplo abalo em sua capacidade contributiva.


6. CONCLUSÃO

A Capacidade Contributiva é um Princípio Constitucional, e como tal não pode ser alterado, sendo vedada qualquer discussão tendente a propor a sua retirada do sistema jurídico.

A legislação pátria reconhece a diferença existente, na Capacidade Contributiva do contribuinte que não possui dependentes em relação àquele que: a) possui um dependente menor; ou b) possui um dependente maior e portador de deficiência.

Resta agora que esta mesma legislação reconheça a existência de uma terceira situação, à daquele contribuinte que possui sob seus cuidados um dependente menor e portador de deficiência, e que sofre uma dupla diminuição em sua capacidade contributiva.

A evolução da sociedade permitiu a inserção da criança e do adolescente portadores de deficiência nos círculos sociais, resta agora ao Estado fazer a sua parte, reconhecer que esta luta pela busca da dignidade do menor portador de deficiência também passa por questões de ordem financeira e tributária. A dignidade de um Estado está diretamente ligada, à forma como resolve seus assuntos concernentes à dignidade das pessoas, e em especial das suas minorias.

O Estado não necessita de grandes esforços para corrigir esta deficiência tributária, basta dar o tratamento constitucional tributário do qual o menor portador de deficiência é detentor através do Princípio Constitucional debatido. Adequar a legislação do imposto de renda pessoa física a este Princípio é a forma para que se encerre esta discriminação tributária sofrida por esta minoria.

A observância da real capacidade contributiva do contribuinte que se enquadra nesta situação específica, trará consequências muito além da aplicação da justiça distributiva demonstrada pelo filósofo; proporcionará a este contribuinte melhores e mais justas condições financeiras para introduzir o seu dependente no seio de nossa sociedade, em consonância com a moderna política globalizada, de inserção social das crianças e adolescentes portadores de deficiência em todos os núcleos sociais.


BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Olney Queiroz – O Estoicismo e o Direito – Editora Lúmen, 2001;

CARRAZA, Roque Antônio – Curso de Direito Constitucional Tributário, Editora Revista dos Tribunais, 1991;

CARVALHO, Paulo de Barros – Curso de Direito Tributário, Editora Saraiva, 1993

CHAUÍ, Marilena – Introdução a História da Filosofia – Editora Brasiliense, 1998

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Sobre o autor
Iehuda Henrique Peres

advogado, membro GEA - Grupo de Estudos Avançados do Complexo Educacional Damásio de Jesus, pós graduado em Direito Constitucional pela EPD, Membro Fundador e Conselheiro Permanente do IPAM - Instituto Paulista de Advogados Maçons

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERES, Iehuda Henrique. O menor portador de deficiência e a inconstitucionalidade da lei do imposto de renda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2921, 1 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19454. Acesso em: 22 dez. 2024.

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