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Da incompatibilidade da Lei Maria da Penha com o instituto da suspensão condicional do processo

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6.Do Entendimento dos Tribunais Superiores

Atualmente, em todo o Brasil, operadores jurídicos muitas vezes até bem intencionados, quem sabe, ou mesmo desesperados ante a falta de estrutura e excesso de processos, acabam por optar pelo caminho mais fácil, qual seja: o de se aplicar a suspensão condicional do processo para quase 80% dos crimes de violência doméstica sob suas responsabilidades.

Mas será que isso resolve ou pelo menos ameniza o problema da violência doméstica? Isso é prestação jurisdicional que se apresente para vítimas que depositam no judiciário suas derradeiras esperanças de livrarem-se da perversa violência de gênero?

É claro que não. Simplesmente tais operadores estão criando números, muitas vezes para apresentar ao Conselho Nacional de Justiça e para seus Tribunais, quando na prática devolvem o problema para ser resolvido em casa, dando ainda mais poder ao agressor e desalento para milhares de vítimas desesperadas.

E como conseguem fazê-lo ao arrepio da lei? Em razão de Ministério Público e Judiciário muitas vezes terem o comum interesse em assim proceder. Deixam tudo em primeira instância, sem recursos, o que tudo lhes permite...

Os possíveis argumentos de que os réus com penas suspensas estariam sob "fiscalização" por dois anos no mínimo é uma falácia. Ou tais operadores desconhecem a realidade de nosso país, no qual não se consegue fiscalizar nem mesmo presídios, onde mulheres e adolescentes são presos em celas junto com homens, sujeitos a reiterados abusos e reeducandos em regime aberto e semi-aberto cometem crimes normalmente, tão logo deixam as prisões.

E poderia se dizer: mais as penas previstas para os crimes de ameaça e lesão leve são pequenas e não sujeitam o réu a pena privativa de liberdade. É verdade. E ainda por cima, diante da pequena pena aplicada, permite-se sua substituição por pena restritiva de direito. Contudo, há uma diferença inquestionável: os réus são processados de verdade! Se tais penas não ensejam prisão, isso não atrapalha o combate efetivo a violência doméstica e a proteção das vítimas, já que os réus muitas vezes são presos em flagrante e, quando representam periculosidade, estão sujeitos a prisão preventiva, que pode ser decretada a qualquer tempo (artigo 20 da Lei 11.340/2010) [12].

Assim, se ao final a pena aplicada for restritiva de direitos não há prejuízo, pois se a prisão fosse necessária, o mesmo já a teria cumprido de forma provisória, sem que haja nenhuma arbitrariedade nisso, vez que há que se ter em tais casos cautela redobrada, ante a proximidade absolutamente perigosa entre vítimas e agressores, o que enseja providências enérgicas e urgentíssimas, sempre se tendo em contra que o direito fundamental à vida e à integridade física da vítima, estão acima do direito à liberdade do cidadão.

E não nos esqueçamos que se tais cidadãos estão sendo processados DE VERDADE, as vítimas serão ouvidas em audiência, saberemos a fundo o grau de periculosidade a que estão sujeitas, reativaremos sua capacidade de FALA. O réu, por sua vez, também será ouvido, terá de contratar advogado ou buscar auxílio da defensoria pública, apresentará a sua versão, mas sentirá efetivamente o peso da presença do Estado em sua vida privada. Saberá que doravante, com violência não poderá mais tratar a mulher e os filhos, pois existe lei que os protegem e haverá de buscar outros meios para lidar com a adversidade, que não a agressão, aplacando-se a tirania do mais forte, sobre o mais fraco.

E mais, comprovada a autoria e a materialidade (nos crimes que deixam vestígios), o que quase sempre acontece, tais réus serão CONDENADOS. A uma pena pequena, é verdade, mas condenados, e isso não é pouca coisa para um agressor com perfil tipicamente doméstico, geralmente tido como trabalhador e honesto. Ele deixa de ser primário e isso importa numa reprimenda muito maior do que nós operadores podemos imaginar.

Assim, suspender processos é MUITO PIOR até do que a própria transação penal [13], pois é um engodo na maioria do país, sequer ouve a vítima, apenas o agressor é chamado para dizer se aceita ou não a proposta (atenção para o poder que lhes é concedido, ante a peculiaridade de tais casos). Ou seja, na prática, não se enfrenta a grave questão, e "engaveta-se" o caso, criando-se números, após SUPOSTO período de prova.

Sobre o tema, asseverando a impossibilidade de aplicação da suspensão condicional do processo nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, destaco os seguintes julgados do STJ e STF:

"EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. LESÃO CORPORAL LEVE PRATICADA COM VIOLÊNCIA FAMILIAR CONTRA A MULHER. A Lei nº 11.340/06 é clara quanto a não-aplicabilidade dos institutos da Lei dos Juizados Especiais aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a Mulher E VEDA A APLICABILIDADE DE SEU ART. 89, QUE DISPÕE SOBRE A SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. PARECER MINISTERIAL PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA.

O art. 41 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) afastou a incidência da Lei 9.099/95 quanto aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, o que acarreta a impossibilidade de aplicação dos institutos despenalizadores nela previstos, como a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95). 2. Ademais, a suspensão condicional do processo, no caso, resta obstada pela superveniência da sentença penal condenatória. Precedentes do STF. 3. Parecer ministerial pela denegação do writ. 4. Ordem denegada.Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem". [14]

"PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ART. 129, § 9º, DO CÓDIGO PENAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LEI MARIA DA PENHA. LEI Nº 9.099/95. INAPLICABILIDADE. A Lei nº 11.340/06 é clara quanto a não-aplicabilidade dos institutos da Lei dos Juizados Especiais aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a Mulher. Ordem denegada. A Lei Maria da Penha foi criada com o objetivo claro de coibir a violência cometida contra a mulher em seu ambiente doméstico, familiar ou de intimidade. A inaplicabilidade da Lei 9.099/95 foi expressamente determinada neste Novo Diploma, em seu artigo 41, de forma a afastar, de vez, os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, que não vinham atendendo aos reclamos sociais. A Lei Maria da Penha, em seu art. 41, vedou, de forma expressa, a incidência da Lei n.° 9.099/95 nos casos de violência contra a mulher. Não há falar, por conseqüência, em suspensão condicional do processo neste caso. 3. Não há inconstitucionalidade na vedação, pois a Lei n.° 11.340/06, ao optar por afastar a aplicação da Lei n.° 9.099/95, dispõe que tais infrações não podem ser consideradas como de menor potencial ofensivo, o que atende ao disposto no art. 98 da Carta da República". [15]

"DECISÃO : TÍTULO CONDENATÓRIO – SUSPENSÃO – MESCLAGEM DAS LEIS Nº 11.340/2006 E 9.099/95 – IMPROPRIEDADE – DENÚNCIA RECEBIDA – RETRATAÇÃO – ÓBICE LEGAL . Em primeiro lugar, observem a impossibilidade de haver a retratação quando já recebida a denúncia, conforme consta da Lei nº 11.340/2006: Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Em segundo lugar, não cabe distinguir onde o legislador não o fez. Com a regência especial referente à violência contra a mulher, predomina o critério específico, valendo notar que o artigo 41 da lei citada afasta, de forma linear, a aplicação da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. A clareza do dispositivo é de molde a não se diferenciar quanto a institutos da lei dos juizados especiais. Confiram com o teor do mencionado artigo 41: Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995". [16]

Antes da promulgação da Lei Maria da Penha, a doutrinadora Leda Maria Hermann já se debatia sobre a questão, afirmando que: "Enfrentar o tema de violência doméstica implica abordar a questão do sofrimento intenso que a acompanha, sempre disseminado no ambiente em que ela impera. Andrade já disse que o universo da violência é sempre um "universo de dor", e é por isso que, aqui, o sentido que se vai dar à palavra deve ser amplo, de forma a abranger a dimensão da intensidade humana que media a questão. " [17]

Ainda que consideremos a existência de Juizados Especiais Criminais que realmente não tenham contribuído para a banalização da violência doméstica, temos que admitir que constituam exceção, honrosa, é verdade, mais incapazes de reverter o quadro que ensejou a criação em boa hora, da Lei 11.340/2006.

Assim, vê-se que a Lei Maria da Penha mostra-se visivelmente hábil à evolução do direito na perspectiva dos direitos fundamentais, não podendo, ocorrer omissão do Estado, para uma das mais significativas mazelas que, verdadeiramente, assolam o cidadão no mundo: a violência doméstica, familiar e afetiva.

Afinal, como bem esclarece a psicóloga Sonia Couto: "A cliente, ao chegar à Delegacia, descreve as situações de violência que sofreu em casa, sendo essa tomada enquanto um ato privado. Passivo, o sujeito suporta o ato violento sem uma ação para barrá-lo. Existe aí apenas o significante S = eu sofro. Em um determinado momento, por uma mudança subjetiva de causas indeterminadas, a vítima resolveu tornar pública a violência sofrida. Há uma pequena mudança na posição do sujeito, que deixa de sofrer a violência em silêncio e a denuncia publicamente. A agressão até então privada – restrita ao lar – torna-se pública através de uma denúncia : "Meu marido me agride!"Tal queixa não pode ser desvinculada de um grito de socorro dirigido, nesse momento, para as autoridades responsáveis: "Alguém me ajude!"(a me libertar dessa situação de sofrimento)". [18]

Na maioria dos Estados da Federação, as classes médias e altas não costumam denunciar a violência doméstica, o assunto fica em família, para ser resolvido em casa. As classes menos favorecidas vão mais à delegacia, mas as vítimas de classes mais abastadas possuem muita vergonha de expor publicamente suas mazelas e quantas vezes sorriem... Quando estão repletas de dor e desolamento...

As vítimas de violência, em geral, convivem com o retraimento social e o silêncio e nessas condições, as mulheres se isolam e emudecem. Levam às vezes anos para buscar ajuda e quando o fazem, é necessário que a levemos a sério e estejamos preparados para fitá-las e vê-las, e também para ouvi-las com nossa alma despida de preconceitos e o mais importante, aguçando nossos sentidos, para aprender a interpretar os silêncios, tendo em conta o grande desafio de nossa missão: a arte de lidar com delitos em que agressores e agredidas convivem perigosamente próximos envoltos em tramas de relacionamento conjugal complexas, que comportam sentimentos ambíguos.

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É importante ressaltar que homens agressores não são estereótipos de monstros ou pessoas absolutamente malévolas. Ao contrário. O que torna o problema difícil de lidar é exatamente o fato de serem seres humanos, com todos os defeitos, qualidades e contradições que isso significa. Muitos cresceram num ambiente violento e aprenderam que esse é o caminho para resolver conflitos. A tolerância à violência aumenta à medida que somos expostos a ela.

A nossa missão é certamente uma das mais difíceis dos operadores jurídicos, não sendo de estranhar que poucos a desejem. Porém, mesmo reconhecidas nossas dificuldades e derrotas constantes, não há como negar a satisfação íntima que este trabalho jurídico-social proporciona, já que podemos ver todos os dias o resultado de nossa atuação funcional na vida das famílias marcadas por violências de todos os tipos e proporções.

Que a dor que sentimos ao perdermos uma vítima que muitas vezes deixou de ouvir nossas recomendações aflitas e veementes sobre o perigo que corriam, preferindo acreditar em promessas de mudanças e na fantasia do amor eterno, não nos sirva de desalento, pois nessa área tão triste temos que aprender a contar nosso jardim pelas flores e a valorizar nossos pequenos grandes êxitos, pois a caminhada é difícil, mas imprescindível e muitos dependem de nós, e quanto melhor formos capazes de fazer nosso trabalho, mais pessoas haverão de procurar nosso auxílio e temos de estar preparados para uma demanda crescente e nos adequar a ela em busca, não de ignorá-la com subterfúgios técnicos jurídicos como a suspensão condicional do processo, que não solucionarão as questões, mas de estrutura e parcerias para nos auxiliarem no deslinde de nossa importante missão.


7.Conclusão

Ante todo o exposto, entendo pela não- aplicabilidade dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais( transação penal, suspensão condicional do processo, composição civil dos danos com causa de extinção de punibilidade e lavratura de termo circustânciado) aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a Mulher, em face do disposto nos artigos 41; 4º;6º;13º da LMP, com fulcro ainda nas decisões dos Tribunais Superiores (STJ e STF) e nos termos da CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, "CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ" , que descreve como deveres do Estado, em seu artigo 7, dentre outros: b) agir com devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher; e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher.

Cientes de que jamais seremos unanimidade em nossa forma de pensar e agir funcionalmente, é necessário que estejamos dispostos a dar as mãos e abraçar essa causa de enfrentamento aos crimes de violência de gênero, pois "Solidários, seremos união, mas separados uns dos outros seremos meros pontos de vista, pois somente juntos alcançaremos a realização de nossos propósitos". [19]

Façamos então a verdadeira justiça, sem subterfúgios e distorções como levar até tais crimes os institutos despenalizadores da Lei 9.099 que já não deram certo, trabalhando um pouco mais, mas reforçando nosso anseio de vermos: nenhuma agressão sem resposta e nenhum agressor sem castigo.

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Sobre a autora
Lindinalva Rodrigues Dalla Costa

Promotora de Justiça do MPMT. Autora do livro Direitos Humanos das Mulheres, Juruá Editora, 2007 e outras obras. Especialista na área de enfrentamento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, pedofilia e abuso sexual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lindinalva Rodrigues Dalla. Da incompatibilidade da Lei Maria da Penha com o instituto da suspensão condicional do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2925, 5 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19477. Acesso em: 4 mai. 2024.

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