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Imputação objetiva no Direito Penal Ambiental (inclusive no meio ambiente do trabalho)

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4. A FIGURA DOS RISCOS CONCORRENTES NA TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA: RISCOS CONCORRENTES DE REALIZAÇÃO APARTADA E RISCOS CONCORRENTES DE REALIZAÇÃO INDISTINTA

Esses dois últimos exemplos inspiram reflexão em torno do chamado dolo geral e do que se tem denominado "linha de desdobramento causal da ação". Para a doutrina tradicional, o erro sucessivo ou dolo geral dá-se quando o agente, com a intenção de praticar determinado ilícito penal, realiza certa conduta capaz de produzir o resultado querido e, logo após, acreditando já tê-lo consumado, empreende nova ação, que afinal cava por produzir o resultado; assim, o sujeito que apunhala a vítima e, fiando-se na sua morte, joga-a nas águas de um rio, causando-lhe a morte por asfixia (afogamento): responderá por homicídio doloso [42].

Insta consignar, primeiramente, que em ambas as construções teóricas é irrefutável o nexo causal subjacente: o empurrão é a causa da morte de quem, lançado ao mar por se o acreditar morto, morre por afogamento, ou de quem, ali lançado para se afogar, sofre traumatismo craniano ao chocar-se, durante a queda, com o pilar da ponte, assim como os disparos de arma de fogo são causa da morte da vítima que, encaminhada ao hospital para a extração dos projéteis, é surpreendida por complicações hospitalares durante a cirurgia ou no pós-operatório. Daí porque, em todos os casos, o problema que se põe é também de imputação objetiva - um degrau aquém e além, respectivamente, em relação à doutrina nacional (que cuida do dolo geral na imputação subjetiva [43] e da "linha de desdobramento" na relação de causalidade). De outra parte, não cabe considerar, em hipótese alguma, se o "modelo de perigo" concebido pelo autor (instância subjetiva) ou derivado de sua conduta (instância objetiva) realizou-se ou não. Explica-se: ao subministrar a pílula venenosa, tem o autor a intenção de matar sua vítima por envenenamento (modelo subjetivo); e, ainda que se abstraia o aspecto subjetivo, dessume-se objetivamente da conduta de quem subministra pílulas venenosas, conforme as regras de experiência da vida, um único modelo de perigo: morte por envenenamento (modelo objetivo) e não, e.g., por traumatismo.

A teoria dos modelos de perigo foi formulada por Günther Jakobs em seus primeiros escritos (notadamente, "Studien zum fahrlässigen Erfolgsdelikt", 1972) e depois substancialmente revista; sustentava o autor que o risco realizar-se-ia no resultado quando realizado estivesse o modelo de perigo dimanado da conduta geradora do risco juridicamente reprovado (modelo objetivo, consoante a explicação supra). Sua aplicação mostrou-se inadequada, seja pela imprecisão dos conceitos, seja pelas alternativas injustas que circunstancialmente engendrava, como demonstrou Jürgen Wolter [44], com o seguinte exemplo: "A", envenenado por "B", experimenta súbita vertigem e cai ao chão, quebrando o pescoço e por isso falecendo; o modelo objetivo de perigo - morte por envenenamento - não se realizou, mas ainda assim a morte, segundo Wolter, há de ser imputada a "A", que subministrou o veneno. A teoria dos modelos de perigo foi, no entanto, o primeiro passo para o processo de explicação que determina a realização dos riscos, consoante a teorização hodierna de Günter Jakobs. Conquanto a hipótese refute a contento a teoria dos modelos de perigo, sua explicação é parcial e desconsidera um fator de suma relevância, ignorado por Wolter: a gênese da vertigem. Impende reconhecer, com Alvarado, que se a vertigem é um efeito do veneno subministrado (assim como, ali, o choque com a pilastra era uma decorrência da queda precipitada pelo empurrão), então o evento letal (morte por fratura do pescoço) é realização do risco criado com a inoculação do veneno, imputando-se a conduta de "A" ao tipo penal de homicídio consumado; se, por outro lado, a vertigem é de todo alheia ao veneno (que ainda não atuava no organismo da vítima), explicando-se pela má alimentação ou porque a vítima recebeu de sopetão uma trágica notícia, então o evento letal não é a realização do risco criado por "A", imputando-se sua conduta ao tipo penal de homicídio, mas com subordinação mediata por ampliação temporal (tentativa). De qualquer modo, e apesar da refutação, reconhece-se na teoria dos modelos de perigo o primeiro passo para o processo de explicação que determina a realização dos riscos consoante a teorização hodierna de Günter Jakobs, perfilhada por Alvarado.

Para a análise da realização de riscos, é indispensável efetuar uma prévia determinação dos riscos que deverão ser considerados como possíveis causas explicativas do resultado penalmente relevante; nessa ordem de idéias, o risco pode ser único unidade de risco - ou concorrente com outros riscos - riscos com várias competências - , sendo esse último encontradiço, como já apontado, na seara penal-ambiental. Na concorrência de riscos, ademais, apresentam-se os maiores problemas em sede de realização de riscos. Quando à unidade de risco, releva dizer que o conceito jurídico de risco não se confunde com o conceito ôntico de causa, porque um risco pode ser conformado por uma multiplicidade da causas físicas; aqui, mais uma vez, diferenciam-se claramente os planos jurídico-normativo e ontológico. Também a identificação da autarquia do risco - i.e, sua autonomia, porque há fatores que não passam de circunstâncias acompanhantes, que não se traduzem em novos riscos (hipóteses de variação interna do risco) - depende da situação concreta, sem qualquer explicação ontológica. Assim, para retomar a ilustração de Erich Samson, se um móvel é girado sobre seu próprio eixo ou ainda é colocado em outro local, mas sempre dentro de um cômodo que arde em chamas, não se está a criar um novo risco, mas apenas modificando uma circunstância acompanhante do risco originário (ou, na expressão antes utilizada, variando internamente o risco, que é aquele criado por quem ateou as chamas, e nenhum outro); porém, se o móvel é colocado exatamente defronte à porta, de maneira a impedir que os bombeiros entrem, então a relevância da conduta para a integridade do próprio móvel e de tudo quanto se encontra no cômodo - ameaçados agora não apenas porque as chamas crepitam, mas também porque os bombeiros não podem adentrar ao cômodo - é a nota de sua autonomia: intensifica-se o risco, o que significa dizer, sempre, que houve criação ou incremento de risco, predispondo o resultado à imputação. Sob o prisma ôntico, a conduta terá sido exatamente a mesma (realizar trabalho, imprimindo força sobre uma massa corpórea inerte), coloque-se o móvel defronte à porta ou noutro local, igualmente distante do ponto de repouso; sob o prisma jurídico, há risco ali, mas não aqui.

Sobre a concorrência de riscos - ou, como prefere dizer Alvarado, riscos com várias competências - cumpre discernir entre os de realização apartada (em que é possível destacar, do resultado, as manifestações que derivam isoladamente de cada risco criado) e os de realização indistinta (em que aquele destacamento não é possível), o que, a propósito, não se vê na obra daquele autor, que se limita a discrepar riscos simultâneos e complementares. Saliente-se que, em via de regra, o caráter apartado ou indistinto da realização dos riscos concorrentes deita raízes - agora sim - no plano ôntico (donde, uma vez mais, a importância de não o considerar absorvido pelo juízo de imputação objetiva, mas antes apreciá-lo, nos delitos de resultado, em um estágio imediatamente anterior do processo intelectivo de subsunção típica): se uma das condutas concorrentes é causa do resultado desvalido, então o risco por ela criado não permite o aparte fenomênico em relação aos demais riscos concorrentes (como nos exemplos, logo adiante, dos dois condutores de ônibus que seguem em sentidos opostos na pista estreita e colidem lesando todos os passageiros, ou do motorista que em alta velocidade não consegue deter-se ante outro que desrespeita sua preferência e, descontrolado, atinge um pedestre); se, todavia, uma das condutas concorrentes não é causa adequada do resultado (como no exemplo dos disparos desferidos concomitantemente e sem unidade de desígnios, por dois sujeitos, contra a mesma vítima, constatando-se ulteriormente que a "causa mortis" é a parada cardíaca decorrente da penetração, no miocárdio, de projétil disparado por uma das armas; o outro disparo, por conseguinte, não foi causa da morte), então o risco por ela criado permite o isolamento fenomênico em relação aos demais riscos concorrentes (a lesão corporal, de um lado, e a morte, de outro).

Do primeiro tipo - riscos concorrentes de realização apartada - tem-se ainda o nosso exemplo, já registrado, do sujeito que dá a morte a um seu desafeto com golpes de faca, envenenada à sua revelia, sendo "causa mortis" o envenenamento [45]. Do segundo tipo - riscos concorrentes de realização indistinta - Alvarado [46]cita exemplo dos condutores de ônibus que, em uma via estreita, seguem pelo centro da pista, em direções opostas, quando a regra de trânsito determina que, em tais condições, trafeguem premidos à margem direita tanto quanto lhes seja possível; ante a colisão frontal, ferem-se todos os passageiros mas não os motoristas, devido aos seus cintos de segurança. Na hipótese, as lesões corporais não podem ser explicadas senão pela concorrência dos comportamentos irregulares de ambos os condutores; por conseqüência, o resultado penalmente relevante, em sua integralidade, deve ser imputado a ambos, porque ambos eram competentespara evitar os danos causados, que são concreção dos riscos criados por ambos (sendo infactível, aqui, discrepar manifestações fenomênicas derivadas, isoladamente, de uma e outra conduta). Os riscos concorrentes, outrossim, podem ser simultâneos (exemplo acima, dos dois condutores de ônibus, e também dos sujeitos que, concomitantemente mas sem unidade de desígnios, disparam contra o desafeto comum) ou complementares (como no caso da lâmina envenenada - supra - ou, ainda, no caso do condutor que, dirigindo em alta velocidade, tenta evitar a colisão com outro veículo que não observara a sua preferência e perde o controle de seu automóvel pela velocidade que a ele imprimia, vindo a atingir um pedestre que caminhava na calçada: a ambos imputa-se, sem apartes fenomênicos, o resultado lesivo, no tipo do homicídio culposo). Ainda um outro exemplo, de Alvarado, sobre riscos concorrentes complementares de realização indistinta, bempropício à exegese de recente legislação brasileira sobre programa de proteção a testemunhase curioso pela diversidade no plano da imputação subjetiva, a despeito da unidade de resultado: "A" é funcionário designado pelo Estado para proteger a testemunha "B" e,negligenciando, renda ensejo a que "C" logre assassinar "B";ambos ("A" e "C") geraram riscos juridicamente reprovados materializados no resultado morte, indistinto, imputando-se a conduta de "A" - uma vez aperfeiçoadas as duas instâncias de imputação - ao tipo de homicídio culposoe a conduta de "C" ao tipo de homicídio doloso(não háco-autoriaporque não havia unidade de desígnios e, por isso, não há ofensa à conformação monista que a co-autoria suscita; tampouco se há de evocar a máxima da proibição de participação culposa em crime doloso ou vice-versa, porque não houve participação, mas riscos concorrentes que culminam em crimes distintos). Dá-se ainda a concorrência de competências(e, por conseguinte, de riscos) entre autor e vítima.


5. CONCLUSÕES FINAIS. OS PARADIGMAS DA NÃO-REALIZAÇÃO DOS RISCOS

Aportada a criteriologia mais adequada para a determinação da realização de riscos, importa conhecer, por derradeiro, os paradigmas de não-realização. Na concepção de Claus Roxin, exclui-se a imputação objetiva, por não realizado o risco ilicitamente criado ou majorado, nas situações que se seguem.

5.a-) Quando não se materializa o perigo

A imputação objetiva pressupõe que o risco reprovado realize-se no resultado desvalido; quando aquele risco é criado ou incrementado, mas não se materializa no resultado, então remanesce, entre o risco criado e o resultado desvalido, relação fortuita de coincidência, que não enseja responsabilidade penal. A esse paradigma ajustam-se todos os casos em que o resultado tem origem em uma cadeia imprevisível de eventos causais; é, precisamente, a hipótese que o legislador de 1984 inseriu no parágrafo 1º do artigo 13 do Código Penal brasileiro (causa superveniente relativamente independente), como se fora aspecto da relação de causalidade. Cabe aqui o célebre exemplo da vítima de uma tentativa de homicídio que não morre em conseqüência dos disparos efetuados, mas devido a incêndio fortuito no hospital onde era atendida; ou ainda, no recorrente exemplo da doutrina brasileira, é o caso de quem, alvejado em região não fatal do corpo, é surpreendido por uma colisão entre a ambulância que o levada e outro veículo no rumo do hospital, falecendo em virtude do acidente.

O paradigma não abarca, entretanto, os desvios causais insignificantes, porque a realização do risco independe, como dito, da realização do modelo de perigo (objetivo ou subjetivo) que acompanha a conduta; assim, se o comportamento do autor eleva de modo juridicamente relevante o perigo do curso causal subseqüente (que, não fosse por aquele comportamento, não teria início ou seguimento), então o resultado final é uma concreção do risco criado (ainda que destoante do modelo de perigo). Tal é a hipótese daquele que, pretendendo afogar o desafeto lançando-o em um rio do alto de uma ponte, obtém sua morte não por afogamento, mas por fratura do pescoço diante do impacto com a água; ou, no mesmo caso, se antes de chegar às águas a vítima choca-se com uma das pilastras da ponte, falecendo por traumatismo craniano antes mesmo de submergir. Contextos semelhantes, vimos, são reunidos pela doutrina brasileira sob o rótulo de dolo geral, transferindo para a órbita da imputação subjetiva o que, em verdade, é um problema de imputação objetiva. Para melhor aferição da materialização de riscos em casos similares, alvitramos o critério da potencialidade lesiva da conduta. Por esse critério, se o resultado corresponde logicamente à lesividade potencial do comportamento, ainda que por cursos causais outros que não aqueles esperados objetiva ou subjetivamente, reputa-se insignificante o desvio causal e a imputação objetiva do resultado é salutar; se, por outro lado, o resultado não corresponde à lesividade potencial da conduta, porque não é razoável esperar-se de uma tal conduta a desatinada conseqüência, então o desvio causal é significativo e a hipótese ajusta-se ao paradigma de exclusão sob comento, não se imputando o resultado desvalido. O critério tem em vista não a conduta "per se", mas a sua potencialidade lesiva em relação ao bem jurídico tutelado, entrando em consideração, inclusive, as especiais condições da vítima (um corte superficial no antebraço, em circunstâncias normais, não tem potencialidade lesiva para a morte nas pessoas comuns, mas a tem em sendo a vítima hemofílica).

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Como se vê, a aferição, jungida que está ao conceito de potencialidade lesiva, prende-se à lógica do razoável, tão bemdesenvolvida por Récasens Siches. Operando o conceito no exemplo supra, é razoável esperar-se que, em queda livre nas proximidades de uma ponte, o indivíduo venha a se chocar com alguma de suas pilastras, conforme a direção da queda e/ou dos ventos; é razoável, ainda, esperar-se que venha a sofrer fraturas múltiplas ao impactar com a superfície fluvial, conforme a altura da queda; razoável, enfim, é que morra afogado no rio, em não sabendo nadar. Eis, pois, o conteúdo lesivo potencial da conduta "lançar ao rio, de cima da ponte"; qualquer desses eventos, em se verificando, representa a concreção do risco criado. Diversa, porém, é a situação de quem propina à vítima pílulas venenosas, que todavia morre não pelo veneno, mas por se engasgar com tais pílulas (a "causa mortis" é a asfixia, não o envenenamento): o desvio causal, aqui, não é insignificante, porque a potencialidade lesiva da conduta atém-se ao veneno contido nas pílulas, não se espraiando, sequer em tese, para o aspecto da asfixia. Não é razoável esperar-se que, ministradas pílulas de dimensões comuns, alguém venha a falecer, em circunstâncias normais, por asfixia. Se o resultado não é conforme à potencialidade lesiva da conduta, então não se o imputa ao autor; daí porque, nessa hipótese, seu comportamento é imputado ao tipo penal de homicídio com subordinação mediatapor ampliação temporal - tentativa de homicídio (o resultado correspondente à potencialidade lesiva da conduta não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do agente) - a vítima faleceu antes daquela consumação, em razão de curso causal exógeno), exatamente porque o resultado não acompanha a conduta no juízo de imputação.

Na mesma linha, agora em terreno penal ambiental, imagine-se que "A", empresa ou empresário,de há muito lança em veio fluvial adjacente resíduos químicos inofensivos, com absoluta inaptidão para causar danos à saúde humana, mortandade de animais ou destruição da flora; todavia, devido à emissão inadvertida, por "B", de outra substância no mesmo curso d’água, reação química adversa confere letalidade àqueles resíduos, com resultados deletérios para a fauna aquática. Conquanto indiscutível o nexo de causalidade (hipótese de acumulação sinérgica), constata-se que a conduta de "A" não encerra potencialidade lesiva para a mortandade aquática, porque não é razoável esperar-se dos resíduos lançados - seja à mercê da química ambiental, seja à vista da experiência anterior - conseqüências danosas para o meio ambiente; por conseguinte, o desvio causal é significativo, não se imputando a "A" o resultado desvalido, que ora será concreção de risco fortuito (geral da vida), ora será imputado a "B", conforme as circunstâncias (e.g., se era pública e notória a emissão dos referidos resíduos químicos por "A" e cognoscível a reatividade) - o que não significa remanesça impune a conduta de "A", que poderá, também ao sabor das circunstâncias, ser imputada a outro tipo penal (assim, e.g., se a emissão dos rejeitos químicos, conquanto materialmente inofensiva, contraria posturas municipais ou resoluções administrativas, e em havendo previsão típica para a hipótese - crimes-obstáculo). Uma última ilustração, agora de Roxin, que observa serem necessárias "sutis investigações" para a determinação da realização do risco em certos contextos concretos: se alguém chega a um hospital com envenenamento vitamínico causado imprudentemente por seu farmacêutico e ali morre por uma infecção gripal não atribuível aos procedimentos hospitalares, a imputação do resultado letal ao farmacêutico depende da gênese da infecção: se é devida à debilidade orgânica do paciente, condicionada pelo envenenamento, então o resultado desvalido é imputável ao farmacêutico; se, no entanto, a gripe e a conseqüente infecção que acometeram o paciente não guardam relação com o envenenamento vitamínico, imputam-se ao farmacêutico apenas as lesões corporais. Na linguagem aqui adotada, apenas na primeira situação o evento letal - morte por infecção decorrente de debilidade orgânica por envenenamento vitamínico - é a concreção do risco criado, realizando a potencialidade lesiva da conduta.

5.b-) Quando falta a realização de um risco não permitido

A rigor, esse paradigma de exclusão confunde-se com o anterior, porque se o risco não permitido (i.e., reprovado) não se realizou, então o perigo que representa não se materializou. Cumpre incluí-lo, entretanto, por fidelidade à obra de Roxin, à qual nos temos reportado. Infere-se de seu texto que a presente situação distinguir-se-ia da anterior por presumir, à diferença daquela, um espaço legítimo de geração de riscos sociais, que em determinado instante é extrapolado. No primeiro paradigma o perigo criado decorreria, "ab initio", de um risco reprovado, enquanto que no segundo paradigma exceder-se-iam os limites concretos do risco permitido, embora ao final o risco ilícito não viesse a se materializar no resultado; a distinção, todavia, é vã, quer pela inocuidade da distinção, quer ainda porque existe, para quase toda conduta, um certo grau de risco permitido (assim, no exemplo do farmacêutico, havia decerto uma dosagem adequada de vitaminas que, constante do receituário, não extravasaria os lindes do risco permitido).

Discorrendo sobre a hipótese, Roxin observa que nos casos de riscos permitidos, a imputação pressupõe a transgressão da fronteira de permissão, ou seja, a criação de um perigo reprovado; a transgressão, todavia, não basta, impondo-se que a violação do risco permitido tenha influído de forma concreta no resultado (que não poderá ser, tão somente, a concreção de um risco fortuito ou do próprio risco permitido). Quando isso não ocorre, o resultado não é imputável, apesar da transgressão, como no exemplo do condutor que, ultrapassando irregularmente outro veículo, causa acidente devido ao rompimento de uma sua roda por vício oculto do material (supra): ainda que a manobra fosse regular, o rompimento da roda poderia causar o acidente, pelo que o evento danoso não é materialização do risco reprovado dimanado da conduta (ultrapassagem irregular), mas de uma circunstância fortuita. O mesmo vale quando a transgressão do risco permitido não é completamente irrelevante para o resultado concreto, mas o desenrolar dos acontecimentos é tão atípico que o resultado último não pode ser considerado como realização do risco não permitido. Assim é, "verbi gratia", a morte de um condutor por ataque cardíaco quando outro o ultrapassa irregularmente ou choca-se levemente contra a traseira de seu veículo, porquanto "o perigo de que alguém sofra um ataque cardíaco por sustos incrementa-se em todo caso, ainda que de modo não considerável, por uma forma incorreta de conduzir"; mais que isso, insta reconhecer que os sustos são corriqueiros e toleráveis no trânsito automotivo, apto a ocasionar enfartos fulminantes pela tensão e pelos dissabores que propicia; isso, todavia, não justifica o seu banimento da vida moderna em prol dos cardíacos, mesmo porque sofrer um acidente vascular, para quem se aventura no tráfego, é um risco consentido, e por isso permitido para todos os demais.

5.c-) Quando os resultados não estão cobertos pelo fim de proteção da norma de cuidado

Aqui estão os casos em que o desbordar do risco permitido aumentou seriamente o perigo de curso causal, mas ainda assim não tem lugar a imputação objetiva, porque o dano produzido não era aquele que a norma de cuidado visava a prevenir. Parte-se de uma idéia-matriz: as normas de cuidado, instituídas para que o cidadão mantenha-se dentro dos limites do perigo socialmente tolerado, não se prestam à prevenção de todo e qualquer resultado lesivo; antes, previne resultados concretos e específicos. Tal é o caso do condutor que imprime ao veículo velocidade excessiva, mas pouco depois volve à velocidade regulamentar, atropelando então uma criança que repentinamente saíra de trás de um automóvel estacionado: embora o risco ilícito tenha ali sua concreção - não houvesse imprimido velocidade tão elevada, não teria estado no local do atropelamento quando a criança avançava para a pista de rolamento - não é esse o resultado que a norma jurídica pretende evitar (pretende-se obstar atropelamentos e acidentes pela impossibilidade de frenagem, não evitar que automóveis passem em determinado momento num determinado lugar) [47]. Ou, ainda, o caso dos dois ciclistas que seguiam em fila indiana, à noite, sem faróis, chocando-se o ciclista da frente com outro que, também sem faróis, pedalava em sentido oposto: possuísse farol a bicicleta que seguia atrás, o ciclista da frente teria visto o terceiro se aproximando, e vice-versa; nada obstante, a norma que obriga o uso dos faróis tem por finalidade evitar acidentes relacionados à própria bicicleta do usuário e não iluminar outras bicicletas, evitando se choquem entre si [48].

Dados os exemplos, duas observações se põem: a uma, Claus Roxin reserva esse paradigma para as normas de cuidado em sentido estrito (como são as normas de tráfego em geral), porque as ponderações em torno do fim de proteção do tipo penal teriam ocasião em outro momento teórico; a duas, parece-nos que o presente paradigma não tem correta ubicação no âmbito da realização de riscos, merecendo tratamento temático apartado.

Nada obstante, servirão sempre para se identificar, nos processos penais que envolvam danosidade relacionada ao desequilíbrio ambiental ― e, como se viu, ao desequilíbrio das condições ambientais propriamente laborais, no âmbito das fábricas e das corporações ―, se o dano experimentado pode ou não ser imputado à esfera de responsabilidade jurídica do empresário. Tal análise deverá sempre preceder a análise do próprio "tipo subjetivo" (dolo ou culpa), racionalizando e humanizando os esquemas hermenêuticos de subsunção à norma penal incriminadora.

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Imputação objetiva no Direito Penal Ambiental (inclusive no meio ambiente do trabalho). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2978, 27 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19869. Acesso em: 26 abr. 2024.

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