INTRODUÇÃO
O Recurso Extraordinário nº 466.343/SP trata-se de uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal, pela qual a Corte Suprema posicionou-se pela inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel. Ainda, a referida decisão traça criação jurisprudencial, qual seja a "norma supralegal", que revoluciona o entendimento acerca da hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos no Estado Brasileiro.
Nesse contexto, neste trabalho será analisado o posicionamento do STF pertinente ao RE nº 466.343/SP e suas implicações no ordenamento jurídico pátrio. A análise realizar-se-á por meio de uma pesquisa de caráter bibliográfico e documental.
Dentre os principais resultados, citam-se: a) A Suprema Corte obedece à supremacia constitucional, já que os tratados internacionais de direitos humanos foram hierarquicamente postos abaixo da Constituição e acima da legislação ordinária; b) No entanto, trata-se de ativismo judicial a criação da norma supralegal, a qual não tem qualquer suporte constitucional para existir; c) Apesar da discordância quanto à interferência do Judiciário na seara do Legislativo, aplaude-se a decisão que declara inconstitucional a prisão civil do depositário infiel.
Concluiu-se que a referida decisão harmoniza-se com as disposições internacionais acerca dos direitos humanos, em destaque a Convenção Americana, a qual repele a prisão civil que não tenha por respaldo a dívida de alimentos. No entanto, há o que se questionar quanto à notória atuação legiferante que adotou o Supremo Tribunal Federal, o qual, criando nova hierarquia na pirâmide normativa, afronta à própria Constituição, a quem tem o dever de resguardar.
1.A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
A prisão civil do depositário infiel encontra disposição na Constituição Federal, especificamente no art. 5º, inc. LXVII, bem como na legislação infraconstitucional frente ao Dec. 911/69 e ao art. 652 do novo Código Civil. Desta feita, vê-se que a expressividade de tais normas encontra-se em afronta ao Pacto San José da Costa Rica – também denominado Convenção Americana de Direitos Humanos –, bem como do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, os quais afastam qualquer hipótese de prisão civil por dívidas, ressalvando-se a do devedor de alimentos.
É o que se constata da literalidade dos artigos 7º, 7, da Convenção Americana e artigo 11 do PIDCP, veja-se: "Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar" (CONVENÇÃO AMERICANA, on line). Assim como, art.11: "Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual." (PIDCP, on line)
Nesse sentido, cumpre, a priori, indagar: a) Qual a representatividade de tal conflito? b) Como a Corte Suprema Brasileira tem se posicionado e qual seu impacto jurídico?
O conflito em comento reporta-se a uma primeira reflexão, qual seja a da importância dos tratados internacionais de Direitos Humanos frente ao ordenamento jurídico brasileiro. Nessa perspectiva, cite-se que o Brasil ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana no ano de 1992, subordinando-se às normas deles provenientes. Nessa linha, Piovesan (2008, p. 284) leciona:
[...] o Brasil assume, perante a comunidade internacional, a obrigação de manter e desenvolver o Estado Democrático de Direito e de proteger, mesmo em situações de emergência, um núcleo de direitos básicos e inderrogáveis. Aceita ainda que essas obrigações sejam fiscalizadas e controladas pela comunidade internacional, mediante uma sistemática de monitoramento efetuada por órgãos de supervisão internacional.
A ratificação de inúmeros tratados de Direitos Humanos pelo Estado Brasileiro faz parte do processo de democratização vivenciado a partir de 1988, a partir do qual se torna imperativo ao Brasil a harmonização de sua legislação interna com as disposições internacionais. Pode-se dizer que se trata de um fruto constante do cenário internacional, o qual, após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra, volta a atenções à dignidade da pessoa humana. Segundo Piovesan (2006, p. 408):
Observa-se que, na experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a princípios e a incorporação do valor da dignidade humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política.
Antes disso, os tratados tradicionais eram celebrados visando os interesses entre os Estados, relegando a matéria da proteção dos direitos humanos às competências internas de cada país (PIOVESAN, 2008). Nesse sentido, observa-se a passagem da jurisdição interna da proteção dos direitos humanos para a internacional. O indivíduo passa a estar também imerso em um ordenamento internacional, que compartilha ações e aspirações com fins de protegê-lo.
Em um segundo momento, urge atentar para a questão da hierarquia que tais tratados ratificados pelo Brasil passam a deter frente ao ordenamento jurídico pátrio. É mais pertinente o questionamento se levado ao caso concreto: Na situação da prisão civil do depositário infiel, diante da existência de disposição internacional que afronte a legislação ordinária interna, será aquela capaz de revogar esta? Quanto à norma do art. 5º, inc. LXVII - por certo detentora da qualidade de cláusula pétrea - poderá ser abolida por norma alienígena? Ou seja, no que toca à Constituição e à legislação ordinária, qual o status hierárquico dos tratados internacionais de direitos humanos?
Segundo o voto proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes quanto à apreciação do RE 466.343/SP, observa-se a indicação de quatro correntes concernentes à hierarquia normativa dos tratados:
a) a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos;
b) o posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais;
c) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional;
d) por fim, a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos.
Quanto à primeira, os tratados de direitos humanos teriam papel preponderante às normas constitucionais, o que está de acordo com o pensamento do Ministro Celso de Mello. A segunda corrente, defendida por Piovesan (2008), equipara os tratados e as normas constitucionais, de forma que os eventuais conflitos deveriam ser resolvidos pelo princípio da norma mais favorável. A terceira reporta-se a um entendimento ultrapassado do Supremo Tribunal Federal, esposado no RE nº 80.004/SE, Rel. Xavier de Albuquerque, DJ 29.12.1977, entendendo que os tratados estariam vulneráveis à derrogação por lei posterior. A quarta, hodiernamente adotada pelo STF, apresenta a "supralegalidade", pela qual as normas constantes de tratados internacionais de direitos humanos submetem-se hierarquicamente à Constituição, entretanto gozam de qualificação especial em relação à legislação ordinária, sendo superiores a estas. (STF, on line)
2.O POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – VOTO DO MINISTRO GILMAR FERREIRA MENDES
Far-se-á uma análise do posicionamento do STF a partir, precipuamente, do voto do Ministro Gilmar Mendes no que concerne aos tratados internacionais de Direitos Humanos. Veja-se o objeto do litígio:
O recurso extraordinário foi interposto pelo Banco Bradesco S.A [...], contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, negando provimento ao recurso de apelação nº 791031-0/7, consignou entendimento no sentido da inconstitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciante em contrato de alienação fiduciária em garantia, em face do que dispõe o art. 5º, inciso LXVII, da Constituição. (STF, on line)
Segundo o Ministro, há disposições na Constituição de 1988 que demonstram a abertura constitucional para as normas de direito internacional. O art. 4º da CF, pelo qual se depreende que "A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações", relata a disposição do Estado Brasileiro frente um movimento de integração na ordem internacional. (STF, on line)
Uma segunda cláusula seria a que está tipificada no §2º do art. 5º da CF, segundo a qual "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Destaque-se que essa norma representa a ampliação dos direitos fundamentais, no sentido de que estes não se encerram na taxatividade exposta no artigo 5º, mas "acompanham as evoluções, políticas, sociais e jurídicas da sociedade, quanto ao surgimento de novos direitos e garantias fundamentais, em prol da defesa da dignidade humana, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito." (LOPES; MARQUES, 2007, p. 53).
As terceira e quarta cláusulas são as constantes do §3º e §4º do art. 5º, quais sejam, respectivamente: "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais", e "o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão." (CF, 1988).
Nessa perspectiva, o Ministro prossegue na defesa de que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - frente ao entendimento de prevalência dos direitos humanos e fundamentais - não poderia permanecer creditando aos tratados internacionais status de lei ordinária, obedecendo, em caso de conflito, à regra da norma posterior. Desta feita, a posição é de que "os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico.", destacando-se, logo mais: "É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano." (STF, on line)
Portanto, no que toca à hierarquia, os tratados internacionais de direitos humanos, desde que não aprovados sob o quórum de emenda, estão submetidos à supremacia constitucional, gozando de privilégio frente à legislação ordinária. Denomina-se norma "supralegal", a que se põe abaixo da Constituição e acima da lei pátria.
O Ministro prossegue na assertiva de que a internalização dos tratados internacionais de Direitos Humanos "tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante" (STF, on line).
É cediço que se saiba, pois, que a prisão civil do depositário infiel, até então admitida no ordenamento jurídico brasileiro, passa a não ter qualquer sustento legal, vez que a norma supralegal paralisa a aplicação de toda norma infraconstitucional que possa instrumentalizar a prisão. Sendo assim, ainda que a norma constante do art. 5º, inc.LXVII, não tenha sido revogada, apresenta-se sem qualquer aplicabilidade.
Observe-se a Ementa do julgamento do RE nº 466.343:
. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.PRISÃO CIVIL
Por fim, destaquem-se as três modalidades de tratamento dos tratados internacionais (NOGUEIRA; VIEIRA, 2009):
1.Hierarquia supralegal: os tratados internacionais aprovados sem o quórum de emenda à Constituição possuem status supralegal, o qual autoriza a invalidade da legislação infraconstitucional conflitante.
2.Hierarquia de emenda à Constituição: aprovados de acordo com o art. 5º, §3º, CF/88.
3.Hierarquia Ordinária: os tratados internacionais que não sejam pertinentes à temática dos direitos humanos detêm hierarquia semelhante à legislação ordinária.
2.1.LEGITIMIDADE DO STF NA CRIAÇÃO DA NORMA SUPRALEGAL
A decisão acerca da prisão civil do depositário infiel traz impactos jurídicos ao ordenamento brasileiro, os quais merecem alguns questionamentos. É oportuna a comemoração frente a posição do Estado Brasileiro - atuando no sentido de afastar a possibilidade de prisão civil por dívidas, ressalvado o devedor de alimentos – que se coaduna com o apelo internacional de direitos humanos. Cabem, entretanto, dúvidas quanto ao modo como se deu o referido afastamento das disposições constitucionais e legais que autorizam a prisão.
O artigo 59 da Constituição Federal dispõe:
O processo legislativo compreende a elaboração de: I - emendas à Constituição; II - leis complementares; III - leis ordinárias; IV - leis delegadas; V - medidas provisórias; VI - decretos legislativos; VII - resoluções.
Nesse sentido, como conceber a existência de uma norma dita "supralegal", sem que a Constituição, expressão da vontade popular, preveja tal possibilidade? Como entender legítima uma disposição legal que afronta a democracia, ao escusar-se dos meios constitucionais para a aplicação do Direito, estando fundada na interpretação-criadora-legiferante do Judiciário?
Por certo, a Constituição Federal de 1988 previa meios para a decretação de inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel, tanto a partir da interpretação do Supremo através do §2º do art.5º, pelo qual poderia dotar de status constitucional o Tratado, quanto pela atuação do Legislativo de acordo com o §3º.
É de bom alvitre citar a posição de Feracin (2011, p.81):
[...] a Carta Magna prevê os instrumentos hábeis e legais para recepcionar um tratado internacional de forma material e formalmente constitucional, com base no §3º do artigo 5º. Nesse caso, bastaria a atuação do Poder Legislativo para que o Pacto de São José da Costa Rica tivesse status de emenda constitucional.
Desta feita, assiste-se à inobservância do princípio fundamental da separação dos poderes, onde se vê o órgão responsável por resguardar a Constituição, colocá-la em risco.
3.CONCLUSÃO
A experiência da Segunda Guerra Mundial fez com que a atenção internacional se voltasse para a questão dos Direito Humanos. Desta feita, surgiram inúmeros tratados a fim de sistematizar direitos que deveriam ser respeitados pelos Estados-partes.
O Estado Brasileiro adere a grande maioria desses tratados, a partir do seu processo de democratização em 1988, ratificando, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Nesse sentido, ao tempo em que se submete à legislação internacional, vê-se o surgimento de conflitos com as normas de âmbito interno. Assim, verificou-se que a prisão civil do depositário infiel é disposta no ordenamento pelo Constituinte Originário a partir do art. 5º, inc. LXVII, bem como na legislação ordinária; o que se conflita com as disposições constantes na Convenção Americana e no PIDCP, os quais afastam a possibilidade da prisão civil por dívidas, ressalvada a do devedor de alimentos.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 466.343/SP, afastou a prisão civil do depositário infiel, a partir de um novo entendimento acerca da internalização dos tratados internacionais de Direitos Humanos.
Entendeu o Supremo que os referidos tratados, in casu, a Convenção Americana e o PIDCP, detêm status hierárquico inferior à Constituição, entretanto superior à legislação ordinária. Tal status é denominado de norma supralegal.
Desta feita, diz-se que a prisão civil do depositário infiel não sofreu revogação, mas a eficácia das normas que lhe possibilita foi paralisada, tornando-a ineficaz.
Por fim, questiona-se a legitimidade do Supremo Tribunal Federal frente à modificação da pirâmide normativa, entendendo-se que a referida tarefa caberia tão somente ao Poder Legislativo, a quem efetivamente compete modificar a Constituição Federal.
Ainda que se concorde com o afastamento da prisão civil do depositário infiel, já que se trata de afronta aos direitos da pessoa humana, não se adere ao entendimento de que o Supremo possui competência para criações legislativas, o que, por certo, fere o cerne do que se entende por democracia.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto nº 678: promulgado em 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 06 maio 2011.
BRASIL. Decreto nº 592: promulgado em 06 de julho de 1992. Promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 19 de dezembro de 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 06 maio 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF. RESP Nº 466.343/SP. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 06 maio 2011.
FERACIN, Vanessa Capra Kloeckner. A Legitimidade do Supremo Tribunal Federal para atribuir o caráter supralegal aos tratados internacionais de Direitos Humanos no contexto do constitucionalismo moderno: uma abordagem crítica. 2011. 104 f. Dissertação (Mestrado) - Unibrasil, Curitiba, 2011.
LOPES, Ana Maria D´Ávila; MARQUES, Samuel de Araújo. O Bloco de Constitucionalidade no Direito Comparado e no Direito Brasileiro. In: RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. Estudos de Direito Constitucional e Urbanístico. São Paulo: Rcs, 2007. p. 39-54.
NOGUEIRA, Patrícia Ether; VIEIRA, José Ribas. Mutação Constitucional, Supralegalidade e Bloco de Constitucionalidade: Marcos Interpretativos na Questão do Depositário Infiel pelo STF. Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes, Rio de Janeiro, v. 14, n. 14, p.13-28, 2009.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008.