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A filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil brasileiro de 2002

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18/09/2011 às 10:03
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3 A filiação Nos CASOS DE inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem

A filiação pode ser identificada de forma bastante simples quando um casal resolve ter o seu próprio filho a partir da reprodução natural, ou seja, através de relação sexual mantida entre si. A questão da filiação, no entanto, passa a ser mais complexa quando se fala em reprodução assistida, uma vez que o(s) doador(es) dos gametas pode(m) não ser a(s) pessoa(s) que assumirá(ão) a efetiva paternidade e/ou maternidade da criança gerada e também porque ainda existe a possibilidade de ocorrer a gestação por substituição, somada ou não à situação anterior. Indaga-se, pois, como a filiação é tratada no caso dos filhos havidos por inseminação artificial ou fecundação in vitro homólogas post mortem.

O questionamento retro será discutido no vertente capítulo, iniciando-se a abordagem com os critérios determinantes da filiação, de modo geral, para, em seguida, partir para o exame da disciplina legal dada no Brasil, além de breve incursão a respeito no exterior, atrelando-se, especificamente, às aludidas técnicas de reprodução assistida. Destarte, será possível a constatação de problemáticas e reflexões a respeito.

Entrementes, porém, convém repisar, sucintamente, os aspectos essenciais da inseminação artificial e da fecundação in vitro homólogas post mortem, eis que definitivos para a análise da filiação.

Assim sendo, vale lembrar que a inseminação artificial e a fecundação in vitro diferenciam-se, basicamente, pelo local da fecundação: naquela, o encontro dos gametas dá-se no interior do organismo feminino, através da injeção de espermatozóides; nesta, a formação do zigoto é extracorpórea, isto é, são coletadas as células germinativas masculinas e femininas e a fecundação ocorre em laboratório.

Em ambos os casos, tratando-se da forma homóloga, os gametas a serem utilizados na fecundação são do homem e da mulher – sejam marido e esposa, sejam companheiro e companheira – que, efetivamente, assumirão a paternidade e a maternidade do filho a nascer, ou seja, que ficarão com a criança, exercendo a responsabilidade por sua criação, educação, sustento, amparo emocional e afetivo, sendo que esta portará toda a carga genética daqueles. Outrossim, a fecundação será póstuma (post mortem), isto é, após a morte do homem, através da utilização de espermatozóides criopreservados coletados, então, previamente ao seu óbito.

3.1 Os critérios determinantes da filiação

Para a identificação dos critérios determinantes da relação da filiação, entende-se salutar a busca inicial da definição desta relação. Nos dizeres de De Plácido e Silva, pois, filiação advém

[...] do latim filiatio (filiação), na terminologia jurídica é empregado para distinguir a relação de parentesco que se estabelece entre as pessoas que deram vida a um ente humano e este. A filiação, pois, é fundada no fato da procriação, pelo qual se evidencia o estado de filho, indicativo do vínculo natural ou consangüíneo, firmado entre o gerado e seus progenitores. . É, assim, a indicação de parentesco entre os pais e os filhos, considerados na ordem ascensional, destes para os primeiros, do qual também procedem, em ordem inversa, os estados de pai (paternidade) e de mãe (maternidade). [110]

Nota-se que De Plácido e Silva restringe o alcance da filiação à esfera biológica na medida em que salienta tratar-se do vínculo existente entre uma pessoa e os indivíduos que "deram vida" àquela. Tal limitação entende-se equivocada se analisada a abrangência que o termo "filiação" adquiriu no contexto atual.

Antônio Chaves traz uma designação que, a princípio, parece mais ponderada, mas que utiliza a mesma expressão utilizada por De Plácido e Silva, qual seja, "deram a vida", indicando a ligação biológica entre os indivíduos, incorrendo em igual limitação, portanto. Observa-se, pois:

A palavra filiação, na acepção que nos interessa, designa o vínculo que a natureza estabelece entre progenitura e descendência; é o laço de parentesco entre os pais e seus filhos. Indica quem são os pais da pessoa considerada, e, portanto, o mais próximo grau de parentesco possível: aquele que vincula um ser humano ao homem e à mulher que lhe deram a vida. [111]

Na verdade, o critério dos laços sangüíneos é o primeiro que vem à mente quando se pensa em filiação. Aliás, até pouco tempo atrás, era o principal preceito. Preceito este que, inclusive, era visto com ressalvas, pois nem todo o filho, ainda que possuísse vínculo de sangue com o pai, era considerado legítimo. Neste norte, vale recordar, por exemplo, que a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 é que encerrou a diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos (parágrafo 6º do artigo 227 [112]) [113], tendo havido corroboração da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 20 [114]. Outrossim, antes ainda a sociedade não chegara a atravessar o momento da evolução da engenharia genética, não tendo vislumbrado ainda as inúmeras técnicas de reprodução assistida que estavam por vir e, portanto, descoberto que a filiação não se limita tão somente à consangüinidade.

Juliane Fernandes Queiroz lembra um dogma que exprime o antigo conceito da filiação/paternidade: "[...] ‘Filho é aquele em que se fundem os sangues dos pais’, no qual se nota claramente o critério da consangüinidade, que a sociedade tem acompanhado sociológica e juridicamente." [115]

De qualquer forma, hodiernamente, tem-se inadequado conceber a filiação estritamente pela regra consangüínea. Impera sublinhar que o estabelecimento do vínculo da filiação não fica adstrito ao critério biológico ou natural, pois o conceito de família superou os laços sangüíneos para permitir também outras ligações, tais como a afetiva e a jurídica [116]. Se não bastasse, o advento das técnicas de reprodução assistida tem nitidamente mitigado a verdade biológica.

Com efeito, durante longo tempo, a Biologia considerava pai unicamente o homem que fecundava a mulher, através da cópula, e mãe tão somente a mulher que carregava em seu ventre o ser, gerado com seu próprio óvulo, e que o punha no mundo. Hoje, os avanços da medicina submetem a paternidade/maternidade e a filiação, assentadas no ato sexual, à prova. [117] Logo, tem-se inapropriado confundir o status de filiação e origem biológica [118].

Taisa Maria Macena de Lima pondera que a "[...] desbiologização da paternidade está em harmonia com o novo modelo de família [...]" [119] e cita João Baptista Villela para corroborar sua constatação, destacando que, com as transformações mais recentes, a família deixou de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que imprimiu considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade. [120]

Há que se atentar que o estado de filiação difere da questão da origem genética. É o que ensina Paulo Luiz Netto Lôbo:

O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa o conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda, de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram. [121]

Retomando o raciocínio concernente aos aspectos conceituais de modo mais detido, observa-se que, para Luiz Edson Fachin, "O vínculo da filiação está no centro das relações familiares do parentesco." [122] Paulo Luiz Netto Lôbo também liga a filiação ao parentesco, reconhecendo-a como um

[...] conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da outra (pai e mãe). O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos estados de paternidade e de maternidade, em relação a ele. [123]

Por oportuno, colhe-se também a lição de Sílvio de Salvo Venosa acerca da filiação, na qual se verifica, inclusive, algumas conseqüências jurídicas pertinentes:

Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos. Sob perspectiva ampla, a filiação compreende todas as relações, e respectivamente sua constituição, modificação e extinção, que têm como sujeitos os pais com relação aos filhos. Portanto, sob esse prisma, o direito de filiação abrange também o pátrio poder, atualmente denominado poder familiar, que os pais exercem em relação aos filhos menores, bem como os direitos protetivos e assistenciais em geral. . [...] . A filiação é, destarte, um estado, o status familiae [...]. O termo filiação exprime a relação entre o filho e seus pais, aqueles que o geraram ou o adotaram. [124]

Como se deflui, a paternidade – utilizada neste trabalho como em sentido amplo, ou seja, abrangendo também a maternidade – está intrinsecamente conectada à filiação. Washington de Barros Monteiro articula: "Encarada em sentido inverso, isto é, do lado dos genitores referentemente ao filho, essa relação [filiação] chama-se paternidade ou maternidade." [125] Tratam-se, pois, de estados relacionados entre si e indissociáveis por sua própria natureza. Afinal, como grifa Sílvio de Salvo Venosa, todo ser humano tem pai e mãe, mesmo na inseminação artificial e na fecundação in vitro, eis que não dispensam o progenitor, o doador, ainda que essa forma de paternidade não seja imediata. [126] Colhe-se também escólio de Eduardo de Oliveira Leite:

Pai e mãe ou se é por decisão pessoal e livre, ou simplesmente não se é. Mas o que o novo texto constitucional não pode aceitar [...] é que o ato irresponsável de pôr um novo ser no mundo possa, sob alegação legal [...] furtar-se das responsabilidades daí decorrentes. Mesmo que este pai não queira assumir a paternidade confirmada pelo nascimento, a responsabilidade existente em relação ao filho, passa a existir desde a data do nascimento. Toda criança que nasce é, necessariamente, filha de um homem e de uma mulher. E, como filho, insere-se na ordem jurídica e dela terá todo o apoio. [127]

Caio Mário da Silva Pereira explicita, didaticamente, a relação filiação-paternidade-maternidade, estampando a complexidade que o termo filiação traz consigo na medida em que enfoca o aspecto natural da reprodução e o aspecto da relação jurídica:

Especificamente considerada, a filiação é a relação jurídica que liga o filho a seus pais. Estabelecendo-se entre pessoas das quais uma descende da outra é considerada como ‘filiação propriamente dita’, quando visa o lado do filho; e, reversamente, encarada pelo lado do pai se chama ‘paternidade’ e pelo da mãe, ‘maternidade’. [128]

Com efeito, a filiação e a paternidade lato sensu são duas faces de uma mesma moeda. Entende-se, pois, oportuno, uma sucinta averiguação dos estados de paternidade e maternidade sob o ponto de vista de outros estudiosos do Direito.

No tocante à paternidade, em seu sentido estrito, João Baptista Villela perfilha:

Tradicionalmente a paternidade repousa no fato biológico da procriação. Pai é o varão que gerou. Dada a circunstância de que, ao contrário da mulher, o homem não exterioriza os sinais de sua participação procriativa, juridicamente a paternidade se estabelece a partir de raciocínios presuntivos. [129]

Seguindo o anterior raciocínio referente à filiação, inarredável gizar que também a paternidade não se cinge a aspectos naturais. Esclarece-se, pois, que a paternidade não é atribuída somente àquele que contribuiu para a geração de um novo ser com seus espermatozóides, mas também – e às vezes, tão somente – àquele que acompanhou o gerado durante sua vida, criando-o, educando-o, protegendo-o [130].

Outro ponto que merece relevo, especificamente quanto ao tema central deste trabalho, é que a paternidade, em casos de inseminação artificial e fertilização in vitro, ainda que homólogas, deve ser verificada com cautela quando a técnica ocorre post mortem e após o prazo de presunção estabelecido na legislação vigente, o que será examinado mais adiante, já que não há previsão específica a respeito no artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002.

No que concerne à maternidade, Juárez Bezerra ensina que sua significação mais antiga é o estado, a qualidade de ser mãe, sendo que, juridicamente, identifica a relação de parentesco que prende a mãe ao filho [131].

Se tomado o aspecto fisiológico, obviamente é possível identificar a exteriorização do estado de maternidade pela gravidez. Segundo Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, "A maternidade manifesta-se por sinais físicos inequívocos: a prenhez e o parto." [132] Contudo, assim como na paternidade, o critério biológico não esgota as possibilidades do status de maternidade, bastando recordar-se das hipóteses de reprodução medicamente assistida. Exemplificando, tem-se que, nos casos de inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem, a identificação jurídica da mãe não é tão simples quando associada à maternidade de substituição.

José Roberto Moreira Filho atenta para os novos paradigmas que têm adquirido espaço na sociedade hodierna e que são relacionados à paternidade/maternidade:

O pai ou a mãe, pela atual orientação doutrinária, não se definem apenas pelos laços biológicos que os unem ao menor e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe, de então assumir, independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e deveres em face da filiação, com a demonstração de afeto e de querer bem ao menor. [133]

Desta feita, diante da amplitude atual que se averigua, entende-se apropriado que tanto a paternidade quanto a maternidade sejam compreendidas como a relação de parentesco existente entre o filho e, respectivamente, o pai e a mãe.

Enfatizando a evolução da classificação dos critérios que estabelecem a relação de filiação, Guilherme Calmon Nogueira da Gama anota:

[...] é interessante notar o ingresso de novos critérios de classificação não cogitados até pouco tempo atrás com base no reconhecimento de outras origens (fontes) que ensejam o estabelecimento da filiação – como os critérios de índole biológica, jurídico-legal e afetiva – e no aparecimento das técnicas científicas que permitem o acesso à reprodução humana em favor das pessoas – o que gera a distinção entre procriação carnal e procriação assistida. [134]

O referido autor entende conveniente classificar as espécies de filiação com base em critérios tradicionalmente adotados na legislação, na doutrina e na jurisprudência a fim de sistematizar a terminologia empregada em matéria dos vínculos de paternidade-filiação e maternidade-filiação, especialmente tendo como centro de referência a pessoa do filho. Adverte, contudo, que a classificação não representa um tratamento discriminatório dos filhos, salientando que a diferença entre eles decorre da própria distinção entre as pessoas e que as espécies de filiação facilitam a categorização e melhor compreensão de aspectos relacionados ao instituto do Direito de Família. [135]

Nesta vereda, Guilherme Calmon Nogueira da Gama apresenta as seguintes classificações da filiação:

a)Filiação matrimonial e extramatrimonial;

b)Filiação resultante de procriação carnal e de procriação assistida;

c)Filiação natural e civil;

d)Filiação legal (jurídica), biológica e afetiva [136].

Como se denota, o critério utilizado na filiação matrimonial e extramatrimonial é exclusivamente o casamento, não sendo equiparada a tal instituto a união estável. O Código Civil Brasileiro de 1916 previu que é o casamento que cria a família legítima e legitima os filhos [137], tornando compreensível a aludida divisão entre filiação matrimonial e extramatrimonial. Não se pode olvidar, no entanto, que tal dispositivo legal não obteve correspondência no Código Civil de 2002 em razão do caráter discriminatório presente na norma e que, inclusive, conforme já ressaltado, foi abolido pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988.

A filiação matrimonial, pois, referia-se aos filhos havidos na constância do matrimônio ou, por presunção, no prazo e nas condições estabelecidas em lei [138]. Já a filiação extramatrimonial era concernente aos filhos havidos fora do casamento dos pais, antigamente denominados ilegítimos. Arnoldo Wald ainda traz uma subclassificação da filiação ilegítima que, giza-se, não mais se verifica: a) filiação natural que ocorre quando inexiste impedimento dirimente entre os pais para casar um com o outro; b) filiação espúria que se verifica quando, em razão de um dos pais já estar casado (filiação adulterina) ou de existir entre ambos uma relação de parentesco (filiação incestuosa), gerando impossibilidade de casamento [139].

A segunda classificação, filiação resultante de procriação carnal e de procriação assistida, é fruto dos avanços biotecnológicos. É nesta classificação que a filiação, objeto deste trabalho se enquadra, haja vista que a inseminação artificial e a fertilização in vitro são técnicas de reprodução medicamente assistida.

O fator determinante da diferenciação entre as reproduções carnal e assistida é a existência ou não de relação sexual na obtenção da fecundação. Guilherme Calmon Nogueira da Gama explicita:

[...] levando em conta o critério distintivo adotado, a filiação resultante de procriação carnal é aquela originada da relação sexual entre o homem e a mulher, normalmente longe do testemunho de terceiros, da qual resultam a concepção do embrião que se desenvolve naturalmente no corpo da mulher que manteve o intercâmbio sexual, e o posterior nascimento da criança. [...] E a outra categoria, a filiação resultante de procriação assistida, decorre do recurso à técnica de reprodução medicamente assistida – chamada por alguns de reprodução ou procriação artificial –, ou seja, sem qualquer contato sexual entre o homem e a mulher, mas logicamente contando com o emprego de material fecundante para permitir a inseminação artificial, a fertilização in vitro ou qualquer outra técnica que permita a fecundação do óvulo pelo espermatozóide e, assim, a produção do embrião que deverá ser desenvolvido no corpo de uma mulher para posteriormente ensejar o nascimento da criança. [140]

A outra classificação divide a filiação em natural e civil, tendo sido tomado por critério distintivo os laços sangüíneos. No entanto, o Código Civil Brasileiro de 2002 acresceu a tal fator determinante uma expressão dúbia em seu artigo 1.593: "O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem." [141] Desta feita, a filiação natural encontra-se ligada aos fatores biológicos, ou seja, à consangüinidade. As demais hipóteses de filiação, que seriam de filiação civil, seriam abrangidas em "outra origem". É o que perfilha Guilherme Calmon Nogueira da Gama, cuja lição merece ser colacionada:

Considerando [...] a própria reintrodução legal do critério da consangüinidade para afirmar o parentesco natural –, e o vínculo de parentalidade-filiação, como se sabe, é de parentesco –, é de ser admitida a espécie de filiação natural, ou seja, aquela decorrente do vínculo de sangue, ainda que efetivamente não haja propriamente origem biológica, mas o fundamento seria este – como no caso da presunção da paternidade. E, nos termos do novo código, para as demais hipóteses que necessariamente não se vinculam ao fator biológico – e, portanto, a consangüinidade –, mas não são apenas de adoção, deve haver o reconhecimento da filiação civil que, por sua vez, se subdividirá em algumas espécies como a filiação adotiva, a filiação resultante da posse de estado de filho e a filiação resultante da reprodução assistida heteróloga – relativamente a apenas um dos pais, ou a ambos. [142]

Releva destacar que os filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas se ajustam na filiação consangüínea, já que os gametas utilizados na fecundação são do casal que assumirá a paternidade da criança gerada, existindo, portanto, os laços sangüíneos, o que não ocorre na modalidade heteróloga – já que o(s) gameta(s) feminino e/ou masculino pode(m) advir de terceiro(s) doador(es).

A última classificação trazida por Guilherme Calmon Nogueira da Gama diferencia as filiações legal (jurídica), biológica e afetiva [143]. Como se infere pela própria terminologia, entende-se esta a subdivisão mais ampla, ou melhor, que mais abrange todas as modalidades de filiação decorrentes das transformações sociais e científicas ocorridas.

Neste horizonte, pondera o doutrinador que a filiação legal ou jurídica depende do critério eleito no ordenamento jurídico, qual seja, o casamento aliado à paternidade, eis que se entendia presumivelmente impossível que o filho da mulher casada tivesse outro pai que não o marido. A filiação biológica, por sua vez, baseia-se no reconhecimento jurídico de que o fato natural é fonte imediata do vínculo jurídico de filiação, como é o caso da relação sexual. Por fim, a filiação afetiva, que, antes abrangia tão somente a adoção, adquiriu maior extensão na medida em que se trata do vínculo oriundo da relação sócioafetiva constatada entre filho e pais ou entre filho e apenas um deles, tendo como fundamento o afeto, o sentimento existente entre eles [144].

Observa-se que, mesmo diante dos critérios elencados, a determinação da filiação não se torna facilitada. Heloisa Helena Barboza bem retrata a complexidade, enfatizando, inclusive, a fragilidade do registro de nascimento:

Uma criança nasce. Este fato é certo, provado por sua própria existência. Mas quando e de quem ela nasceu? Quem é ela? É um grande erro pensar que o registro de nascimento responda a todas essas questões. Observa o jurista que o registro só prova a filiação legítima, sendo excluído quando se trata de filiação natural. Uma mulher deu à luz, mas quem é ela? O registro de nascimento dá indicações do dia, da hora, do nascimento, do nome da mãe, mas todos esses dados são circunstâncias relativas que cedem diante de prova contrária, as quais qualquer pessoa é admitida a provar sua inveracidade. [145]

Cada situação deve ser averiguada em particular haja vista a amplitude das hipóteses hoje existentes. Desta feita, parte-se para a análise específica dos casos de inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem.

3.2 DISCIPLINA LEGAL DADA NO BRASIL ACERCA DA FILIAÇÃO: PROBLEMÁTICAS E REFLEXÕES ESPECÍFICAS NOS CASOS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL E FERTILIZAÇÃO IN VITRO HOMÓLOGAS POST MORTEM

Como foi possível notar, a filiação e a paternidade, além de serem assuntos delicados pela sua própria natureza familiar, adquiriram maior complexidade ao passo da evolução da sociedade. A cultura foi se modificando ao longo dos tempos e a ciência médica e a engenharia genética foram se aprimorando e evoluindo muito em pouco espaço temporal. Logo, novas estruturas e problemáticas passaram a surgir por conseguinte.

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A inseminação artificial e a fertilização in vitro quando homólogas [146] se dão, repisa-se, mediante a utilização das células germinativas do homem e da mulher que exercerão a paternidade da criança gerada. Obviamente, portanto, há identidade genética entre os pais e o gerado, razão pela qual inexistem problemas na determinação da filiação. Nos dizeres de Andréa Aldrovandi e de Danielle Galvão de França, nessa hipótese há "[...] uma conciliação entre a filiação biológica e a afetiva". [147] Em outras palavras, a criança gerada será considerada filha do homem e da mulher que contribuíram com seus gametas para a fecundação respectiva e que, inclusive, assumirão efetivamente os papéis de pai e de mãe.

Alhures, o mesmo não se pode asseverar quando a inseminação artificial ou a fertilização in vitro homólogas se verificarem em momento póstumo [148], ou seja, após o óbito do pai, eis que alguns aspectos não encontram resolução em lei.

O Código Civil Brasileiro de 1916 trouxe apenas duas possibilidades de presunção relativa à filiação. A limitação, portanto, era taxativa:

Art. 338. Presumem-se concebidos na constância do casamento: . I – os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal (art. 339); . II – os nascidos dentro nos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação. [149]

O Código Civil de 2002 manteve o transcrito inciso I, porém, reformulou o inciso II e ampliou o rol de presunções:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;; . II – nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; . IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; . V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. [150]

Ora, o novo Código Civil era considerado uma promessa de resolução de muitos assuntos. Contudo, não foi o que se verificou no caso das presunções: existem algumas falhas eis que, apesar da tentativa, a abordagem restou incompleta.

Márcio Antonio Boscaro frisa, neste norte, que a inovação trazida pelo Código Civil é "[...] um pouco tímida, pois apenas se refere a inseminações havidas na constância do casamento, não oferecendo solução para aquelas ocorridas entre pessoas não legalmente casadas entre si, como, por exemplo, em uniões estáveis." [151] É exatamente este o primeiro aspecto que merece crítica: a restrição do tipo de vínculo entre o casal, qual seja, o casamento.

Veja-se que tanto o caput quanto os incisos assim estabelecem, como é possível constatar. Luiz Edson Fachin explica que "Para dar conta da paternidade dentro do casamento, a ordem jurídica estatui a presunção, cujo valor jurídico não solve a mesma questão no âmbito extramatrimonial." [152] As hipóteses de presunção, pois, restaram formuladas levando-se em conta, exclusivamente, o casamento.

Apesar de ter trazido à baila alguns dispositivos [153] acerca da união estável, o legislador civil não estabeleceu presunção de filiação nessa modalidade de entidade familiar. Desta feita, deflui-se certo prejuízo aos filhos havidos entre companheiros se considerada a friamente a letra da lei.

A única vantagem trazida pelo artigo é que a presunção não se refere mais à legitimidade ou não dos filhos, mas apenas em relação à paternidade em si. É o que ensina Rose Melo Vencelau:

[...] a presunção pater is est não é mais de legitimidade e sim de paternidade. Não se presume a legitimidade dos filhos havidos no casamento, presume-se a paternidade do marido porque é o que geralmente acontece. O fim da supremacia da família legítima enfraqueceu a presunção pater is est que se funda no casamento. Isto porque os seus rigores se justificavam pela proteção da família legítima, a qual deveria permanecer intocável. A Constituição de 1988 não protege mais a família matrimonial que a extramatrimonial. Com essas considerações, percebeu-se que sua utilidade se resume hoje na facilitação do reconhecimento dos filhos havidos no casamento. [154]

O segundo item concerne ao inciso III do artigo. Veja-se que o dispositivo legal trata da "fecundação artificial". Ocorre que, conforme explanado na primeira parte do trabalho [155], não existe fecundação artificial. O ato da fecundação é sempre natural, pois a formação do zigoto depende unicamente da união do óvulo e do espermatozóide. O que pode ser considerado artificial é o método que promove o encontro destas células reprodutivas.

Destarte, à primeira vista, parece que o legislador pretendeu destacar a presunção de filiação, quando falecido o marido, apenas para o filho havido por fertilização in vitro homóloga, ignorando todas as outras formas de reprodução medicamente assistida existentes. Analisando-se superficialmente, parece inexistir qualquer problema pela especificação dada pelo legislador. No entanto, basta lembrar que, na fertilização in vitro, a fecundação se deu fora do corpo materno, sendo que os embriões podem permanecer criopreservados por muito tempo e, então, entrar-se-ia na eterna discussão acerca do exato momento da origem da vida, de quando o ser humano é considerado como tal para efeitos jurídicos.

Se não bastasse, o inciso não fixa um prazo para a "fecundação artificial" homóloga sucedida após a morte do homem, bem como, não exige a prévia autorização deste no caso de eventual ocorrência.

Outra ponderação é pertinente à terminologia e à delineação restrita contida no inciso IV do citado dispositivo legal. Quanto à terminologia, observa-se o termo "concepção artificial", devendo ser aplicado o raciocínio retro, qual seja, de que toda a concepção é natural. Todavia, compreende-se que a referida expressão quer dizer respeito, pois, a qualquer modalidade de reprodução assistida.

A delineação restrita, por sua vez, é quanto aos embriões excedentários. Atentando-se para o teor do inciso IV, observa-se que somente há presunção de filiação nos casos de embriões excedentários, desconsiderando-se as hipóteses de que o material genético, embora previamente recolhido, não teria sido ainda transformado em embriões ou, simplesmente, de que não seria caso de embrião excedente. Nesta última suposição, no entanto, entende-se aplicável o princípio de que "quem pode o mais pode o menos", de modo que, se é presumida a filiação para o embrião excedentário, o mesmo deve ocorrer com o não excedentário.

A última anotação desta qualidade é relativa ao inciso V, no qual se verifica a presunção de filiação daqueles gerados apenas por inseminação artificial heteróloga e com prévia autorização do marido. Novamente há uma limitação da gama de técnicas de reprodução assistida, descartando-se todas, salvo a inseminação artificial.

De qualquer modo, mister se faz ponderar que a presunção referida no artigo 1.597 é relativa, conforme ensina Luiz Edson Fachin:

[...] não é de natureza absoluta, mas é essencialmente relativa (iuris tantum), já que pode ser contestada pelo marido, ou por seus ascendentes e descendentes quando este for incapaz ou morrer durante o transcorrer de ação negatória da paternidade em que é proponente, por meio da produção de provas que contrariem esse fato. [156]

Diante de todas essas observações críticas exsurge, pois, com maior elevação, a indagação acerca do tratamento que deve ser dado, especificamente, nos casos de inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem. No entanto, didaticamente entende-se conveniente a separação destas hipóteses notando-se duas situações: casamento e união estável.

Na hipótese de que a reprodução assistida se dê na forma homóloga e póstuma, havendo casamento, questiona-se a possibilidade, inclusive, da aplicação do inciso II do artigo 1.597 (presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento).

Embora conste expressamente as técnicas de reprodução assistida em outros incisos do indigitado artigo, entende-se que tal circunstância, a princípio, não obstaria a utilização do inciso II tanto na inseminação artificial quanto na fertilização in vitro homólogas post mortem, eis que é plenamente possível que, logo após a morte do homem, seja efetuada a reprodução medicamente assistida. Veja-se que o prazo de trezentos (300) dias é suficiente para que ocorra uma gestação.

Todavia, Paulo Luiz Netto Lôbo, ao fazer apontamentos acerca dos prazos fixados no artigo 1.597, frisa que somente haverá a presunção da paternidade, no caso do inciso II, se os cônjuges estiverem juntos no período que seria da concepção:

Os limites de 180 (mínimo) e 300 (máximo) não correspondem às médias fixadas pela ciência e pela experiência de gestação humana. Todavia, têm por fito afastar qualquer dúvida quanto ao vínculo da paternidade. Por se tratar de dias, a contagem de faz dia a dia, de meia-noite a meia-noite, não se considerando o dia do começo. A presunção de paternidade do nascido até 300 dias é elidida quando ficar provado que os cônjuges estavam separados de fato no período correspondente ao da concepção. [157]

Discorda-se relativamente deste posicionamento. O teor do inciso II é hígido: não condiciona a presunção de filiação à concepção na constância do casamento, mas sim ao nascimento ocorrido na separação. No entanto, a separação fática, se interpretada restritivamente – ou seja, o homem e a mulher, vivos, ainda casados, estão afastados – deve, realmente, ser considerada como fator de desfragmentação da presunção de paternidade, sob pena de injustiça para com o cônjuge varão. Se interpretada amplamente – isto é, qualquer forma de separação –, incorrer-se-ia em um equívoco, haja vista ser a morte, por exemplo, uma forma de separação. Outrossim, neste sentido, há possibilidade, justamente, do nascimento ter ocorrido após a morte do marido.

Vale apontar, por oportuno, observação de Arnaldo Rizzardo acerca da separação de fato entre o casal:

O referido inc. II do art. 1.597 fala em trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial ou anulação. Mas é evidente, por um princípio de bom senso, que o prazo deve iniciar desde a separação de fato, e caso sobejamente comprovado. [158]

Ao menos a exigência da dissolução da sociedade conjugal pode evitar situações como a ocorrida nos Estados Unidos, revelada por Eduardo de Oliveira Leite:

[...] em 1986: sob pretexto de análise, uma mulher solicitou a seu marido uma amostra de seu esperma. Obtida a amostra a mesma depositou o esperma para conservação em um estabelecimento especializado; tendo se divorciado posteriormente, a mulher se submeteu a uma inseminação artificial com o esperma conservado do ex-marido. Nascida uma filha, oriunda de inseminação, a mulher ingressou com ação de alimentos, já que ele era biologicamente o pai e deveria – ao menos na esfera jurídica – subvencionar a existência desta criança. O marido recorreu exigindo de sua ex-mulher vinte mil dólares de indenização por "desvio de esperma". [159]

Levando-se em conta ainda a interpretação conjunta do inciso II com o caput do artigo 1.597, chega-se a outro ponto crítico. Observa-se que o caput revela a presunção de paternidade apenas na constância do casamento. Logo, a criança nascida nos trezentos (300) dias seguintes à dissolução conjugal é presumidamente concepta durante o casamento. Ocorre que, conforme já grifado, a criança pode ter sido concebida e nascida após a dissolução conjugal, que seria o caso da inseminação artificial e da fertilização in vitro homólogas post mortem. Nessa hipótese, pois, também haveria a presunção de que a concepção ocorreu durante o matrimônio?

Diante de tal questionamento, tem-se contraditória a disposição legal, eis que a morte é uma das causas de dissolução da sociedade conjugal [160]. Assim sendo, se com a morte não mais existe casamento – muito menos constância – no momento da concepção, não há que se cogitar da presunção de filiação. Desta feita, deve-se buscar enquadramento nos outros incisos do artigo 1.597.

O inciso III do indigitado artigo 1.597 é específico sobre a fecundação artificial homóloga póstuma (presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido). Apesar da terminologia utilizada – criticada anteriormente e que, para evitar desigualdades deve-se compreender que a fecundação mencionada pode ser obtida por quaisquer técnicas de reprodução medicamente assistida – mister se faz a colheita de ponderações interpretativas.

Paulo Luiz Netto Lôbo enfatiza que persiste a presunção de paternidade do falecido no caso da fecundação artificial homóloga ocorrer após o prazo de trezentos (300), mas condiciona a presunção à prova de que o gameta, utilizado pela entidade que se incumbiu do armazenamento, é do de cujus e de que há prévio e expresso consentimento deste [161]. Acerca do consentimento, explicita:

O princípio da autonomia dos sujeitos, como um dos fundamentos do biodireito, condiciona a utilização do material genético do falecido ao consentimento expresso que tenha deixado para esse fim. Assim, não poderá a viúva exigir que a clínica de reprodução assistida lhe entregue o sêmen armazenado para que seja nela inseminado, por não ser objeto de herança. A paternidade deve ser consentida, porque não perde a dimensão da liberdade. A utilização não consentida do sêmen deve ser equiparada à do doador anônimo, o que não implica atribuição de paternidade. [162]

Doutra banda, não se pode olvidar que o consentimento prévio e expresso do homem que teve recolhido o material genético não é posto no inciso III do artigo 1.597 como exigência ou faculdade. Na verdade, sequer há menção da anuência no referido inciso.

O pensamento de Paulo Luiz Netto Lôbo, retrotranscrito, entrementes, é bastante conveniente, pois as cautelas que reserva visam tão somente evitar o uso indevido da prática de reprodução assistida homóloga póstuma. Contudo, elidir a presunção de filiação em virtude da falta da concordância prévia e expressa do pai – quando não exigida legalmente – estaria sendo um prejuízo para a criança gerada.

O entendimento de Belmiro Pedro Welter é ainda mais radical, eis que segue a letra do inciso sob comento quando admite a possibilidade de realização de inseminação artificial – o autor trata da questão apenas em relação a esta técnica – homóloga post mortem, porém,tolera apenas a presunção caso a concepção se desse durante o matrimônio:

[...] uma vez realizada a inseminação artificial homóloga, não há como se negar a paternidade e a maternidade, não importando eventual separação, anulação do casamento ou morte dos cônjuges. Agora, em tese, a inseminação deve ocorrer durante o casamento, não significando que possa haver inseminação após o casamento ou em caso de morte do marido. Resumindo, a concepção deve ocorrer durante o casamento, presumindo-se a paternidade mesmo com eventual separação do casal ou morte do marido. [163]

Deflui-se que este posicionamento decorre da limitação presente no caput do artigo, ou seja, na expressão "constância do casamento". Assim, com a morte, não há mais casamento, seguindo a mesma ilação explanada quando da abordagem do inciso II.

Belmiro Pedro Welter, mais adiante em sua lição, compartilha a orientação trazida por Paulo Luiz Netto Lôbo no que tange à necessidade da manifestação do consentimento do cônjuge varão em vida acerca da inseminação artificial homóloga póstuma para fazer valer a presunção [164].

Assim sendo, evidencia-se um conflito entre a eventual desvantagem enfrentada pelo filho concebido e a existência de eventuais problemas – como, por exemplo, a necessidade do de cujus manifestar previamente seu consentimento para evitar questões sucessórias que envolvem a criança gerada e os demais herdeiros – que poderiam ser ocasionados com a prática da reprodução assistida homóloga post mortem.

Por oportuno, convém destacar que, na área médica, existe o denominado termo de consentimento informado. Juliane Fernandes Queiroz traz a seguinte conceituação:

O Termo de Consentimento Informado [...] é o instrumento mediante o qual o paciente que irá se submeter a experimentos científicos ou a uma intervenção médica (tratamento ou cirurgia) manifesta sua concordância expressa em se sujeitar a tal procedimento, após fornecidas todas as informações pelo médico responsável. [165]

No caso da utilização de técnicas de reprodução assistida, o item três da seção dos princípios gerais da Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina obriga a formulação de um documento de consentimento informado, em formulário especial e completo com a concordância, por escrito da paciente ou do casal infértil [166]. A clínica Procriar, por exemplo, possui documentos de consentimento informado específicos para cada técnica [167]. Todavia, impera relevar que o termo de consentimento informado refere-se à prática da reprodução assistida e não às problemáticas debatidas nesta pesquisa pertinentes à filiação e ao direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas.

A situação estampada no inciso IV do artigo 1.597 (presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga), por sua vez, também pode ser aplicada nas hipóteses objeto deste estudo.

Inicialmente, convém esclarecer que embriões excedentários, segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, "[...] são os resultantes de manipulação genética, mas não introduzidos no ventre da mãe, permanecendo em armazenamento próprio de entidades especializadas." [168] Fábio Alves Pereira, por sua vez, também traz elucidação sobre os embriões excedentários:

A probabilidade de sucesso na fecundação in vitro é maior quanto maior for o número de óvulos utilizados e quanto maior for a estimulação na ovulação através de hormônios. Essa atitude, no entanto, em uma ordem de causa e conseqüência, conduz a sobra de embriões não implantados, dando origem aos chamados embriões excedentários, cuja a sociedade não sabe o que fazer e as propostas de destinação são as mais variadas possíveis. [169]

Superado o aspecto conceitual, revela-se observar que, embora o dispositivo legal (inciso IV do artigo 1.597 sob comento) não preveja, como no anterior, o momento post mortem, a aplicabilidade é possível justamente diante da expressão "a qualquer tempo", isto é, não houve definição da oportunidade temporal da concepção, se antes ou depois da morte do homem que teve coletados seus gametas. Logo, plenamente possível adaptar o inciso em tela aos casos de reprodução assistida homóloga que sejam post mortem.

Belmiro Pedro Welter posiciona-se a respeito da expressão "a qualquer tempo":

Significa, em tese, que a mulher detém o poder se [sic] gerar filho quando bem quiser, porque o marido, ao fornecer o material genético, autorizou previamente a inseminação artificial homóloga, mesmo se depois vier a separar-se da esposa ou morrer. Isso quer dizer que o novo Código Civil está de acordo com o art. 226, § 4.º, da CF de 1988, que admite a família monoparental, isto é, a comunidade formada pelo pai ou mãe e o filho. [170]

Nota-se, na aludida orientação, que o autor entende desnecessário o expresso consentimento do homem para a inseminação artificial homóloga, seja esta realizada após a sua morte ou mesmo após a separação do casal. Infere-se que o doutrinador compreende que o simples fornecimento do material genético já presume a prévia autorização para a prática da reprodução assistida homóloga em qualquer momento.

Para Tycho Brahe Fernandes, faz-se necessária a prévia anuência do homem para que a filiação seja estabelecida: "No caso do falecimento de homem casado ou que esteja vivendo em união estável, que previamente consentiu na utilização de seu material genético após a sua morte, sua paternidade restará estabelecida quando do nascimento." [171]

Consoante já explanado, entende-se que, apesar da lei não explicitar, a prévia e expressa anuência do homem quanto a uma possível inseminação artificial ou fertilização in vitro póstuma com a utilização de seus gametas criopreservados [172] é, sobretudo, uma medida de cautela. Afinal, se a geração de uma criança já é, por si só, um ato que enseja consciência e responsabilidade, tais aspectos tornam-se – ou, ao menos, deveriam sê-lo – mais acentuados quando se trata de reprodução assistida post mortem.

Ora, a filiação gera uma série de efeitos jurídicos, inclusive sucessórios. Todavia, no da reprodução assistida homóloga post mortem, os efeitos da filiação se tornam extremamente tormentosos de serem aplicados – comparando-se à situação dos filhos havidos por reprodução natural –, haja vista a insuficiência de regulamentação específica a respeito. Destarte, o expresso e prévio consentimento do homem para a efetuação de inseminação artificial ou fertilização in vitro com o uso de seus gametas após a sua morte é uma garantia que se tem acerca da própria ciência do homem a respeito. Em outras palavras, além do varão estar ciente de que poderá ser pai após seu óbito, ter-se-ia uma segurança para a própria criança gerada no que tange à definição da paternidade correspondente sem necessidade de investigações posteriores.

Mas a questão temporal vai além. Afinal, que segurança jurídica se tem com a possibilidade de realização da reprodução assistida homóloga post mortem a qualquer tempo? Os familiares do falecido devem ficar presos à possibilidade de uma futura utilização do material coletado em reprodução assistida nos moldes ora comentados ad eternum? Tratam-se de perguntas sem repostas, pois o Código Civil Brasileiro de 2002 nada disciplinou neste norte, permanecendo a norma aberta.

A Espanha, para permitir a reprodução assistida homóloga post mortem, resolveu adotar dois critérios, quais sejam o consentimento prévio e expresso do homem e um limite temporal definido. É o que informa Stela Barbas, citada por Fábio Alves Pereira: "[...] o modelo espanhol [...] permite a inseminação posterior a [sic] morte do doador, desde que feita dentro do prazo de 6 meses a contar do falecimento do mesmo e se consentida em escritura pública, resguardando à criança todos os direitos advindos da filiação." [173]

Se não bastasse, a restrição na presunção de filiação para "embriões excedentários" também envolve problemáticas. Belmiro Pedro Welter procura decifrar a intenção do legislador, entendendo que a expressão "embriões excedentários" faça inferir que já tenha ocorrido alguma técnica de reprodução assistida homóloga em momento anterior, isto é, sem este ato prévio, não entende possível haver embriões excedentes e, portanto, não haveria presunção de paternidade do marido, já que seria realizada a técnica homóloga pela primeira vez com embriões [174].

O referido autor ainda pondera que a terminologia utilizada pode ser fruto de um equívoco do legislador, "[...] que quis dar a entender a existência de depósito de material genético em um local especializado, não reclamando, assim, anterior inseminação artificial." [175] Compartilha-se desta opinião, porém, avança-se em mais um aspecto: e o material genético que ainda não é embrião?

Como ressaltado na primeira parte desta pesquisa, o óvulo e o espermatozóide, através da fecundação, dão origem ao zigoto. Este, então, passa a se desenvolver, transformando-se em embrião e, posteriormente, em feto. Paulo Luiz Netto Lôbo aponta que

Embrião é o ser humano durante as oito primeiras semanas de seu desenvolvimento intra-uterino, ou em proveta e depois no útero, nos casos de fecundação in vitro, que é a hipótese cogitada no inciso IV do artigo sob comento [1.597]. O Código Civil não define a partir de quando se considera embrião, apropriando-se dos conceitos utilizados pela medicina. [176]

Neste diapasão, convém ressaltar que o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução n. 1.358/92, entende haver uma fase anterior à embrionária, qual seja, a pré-embrionária. Destarte, consta no item três da sexta parte da aludida resolução que os pré-embriões assim o são até os quatorze dias [177], prazo este que se subentende ter contagem iniciada a partir da fecundação. Por conseguinte, o pré-embrião apenas se torna embrião após os quatorze dias. Frisa-se ainda que a referida distinção é aceita, inclusive, em direitos estrangeiros, precipuamente na Europa [178].

Tratando-se de pré-embriões, pois, não poderia ser aplicada a presunção de filiação mediante o inciso em estudo se analisada literalmente a lei, já que a disposição é expressa quanto a "embriões excedentários". No entanto, compreende-se tratar-se de mais um equívoco do legislador do Código Civil Brasileiro de 2002, ou seja, também deve ser considerado no inciso em apreço os estágios anteriores ao embrionário, sob pena de incorrer-se em violação ao princípio da isonomia.

Contudo, de que forma aplicar o princípio da igualdade diante de tormentosa discussão acerca do início da vida de um ser humano? O debate acerca de quando se passa a ser um ser humano não constitui objeto desta pesquisa, porém, vale gizar que igualmente não existe posicionamento pacífico quanto ao momento do embrião ser considerado como tal. Neste norte, para Heloisa Helena Barboza, "Não [...] parece razoável considerar-se o embrião antes da transferência para o útero materno um nascituro." [179] Seguindo a mesma linha de raciocínio, tem-se que "O Projeto de Lei nº 90, de 1990, do Senado Federal, que dispõe sobre a reprodução assistida, estabelece que não se aplicam aos embriões originados in vitro, antes da introdução no aparelho reprodutor da mulher receptora, os direitos assegurados ao nascituro." [180]

Indaga-se ainda qual a solução relativa à filiação quando os prazos fixados no artigo 1.597 do Código Civil pátrio vigente forem extrapolados. Arnaldo Rizzardo responde, pontificando:

Na inseminação post mortem, superado o lapso temporal da presunção da paternidade, a única maneira para o reconhecimento é a ação de investigação de paternidade, eis que a lei considera como filhos indiscutíveis aqueles que nascem durante a sociedade conjugal e durante certo lapso de tempo após a dissolução do casamento. [181]

Como se pode observar, o Código Civil Brasileiro de 2002 é deficiente na regulamentação da filiação nos casos de inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem quando considerado o casamento. Outrossim, maior insuficiência disciplinar se constata quando se cuida de união estável. Conforme indicado outrora, o novo Código Civil deixou de mencionar este tipo de entidade familiar quando tratou da presunção de filiação.

Márcio Antonio Boscaro afirma, nesta vereda, que as normas dos incisos III, IV e V do artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002 não solucionam os casos em que a fecundação por técnica de reprodução assistida foi realizada por um casal não legalmente unido pelos laços matrimoniais [182].

Destarte, socorreria ao filho concebido por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas apenas a via judicial, ou seja, a utilização da ação de investigação judicial. A respeito desta demanda, reza o Código Civil Brasileiro vigente:

Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz. . Parágrafo único. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo. [183]

Evidente, no entanto, que o legislador do novo Código Civil olvidou-se da já transcrita regra contida no artigo 226 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Destarte, a princípio, a restrição da presunção às situações de casamento constitui uma discriminação em desfavor dos filhos havidos na constância de uma união estável. Em outras palavras: a regra, literalmente observada, infringe o consagrado princípio constitucional da igualdade entre os filhos. Arnoldo Wald atenta para a discriminação:

[...] é imperioso reconhecer que malgrado a equiparação promovida, enquanto permanecer a instituição do casamento haverá sempre uma diferenciação entre os filhos havidos durante a constância do matrimônio e aqueles que deste não decorrem. Prova disso tem-se na redação conferida aos arts. 1.597 e 1.598, que cuidam da presunção da paternidade dos filhos concebidos na constância do casamento. [184]

Juliane Fernandes Queiroz, em que pese sua obra ter sido escrita antes da vigência do Código Civil Brasileiro de 2002, apresenta posicionamento apenas com base na lei civil: "Apesar de casamento e união estável serem, ambos, tutelados pelo Estado, não se estende às relações de filiação, advindas da união estável, a presunção de paternidade prevista para as relações do matrimônio." [185]

Não obstante, alguns autores entendem que o artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002 deve ser aplicado integralmente também aos casos de união estável e não apenas de matrimônio. É o que perfilha Paulo Luiz Netto Lôbo, atentando-se para cada um dos incisos do referido dispositivo legal:

[...] a presunção de concepção do filho aplica-se a qualquer entidade familiar. No inciso I, convivência conjugal deve ser entendida como abrangente da convivência em união estável, considerada estabelecida quando se provar sua estabilidade. Enquanto, no casamento, a convivência presume-se a partir da celebração, na união estável deve ser provada, pois independe de ato ou declaração. Quanto ao inciso II, consideram-se concebidos na constância da união estável os filhos nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução por morte ou separação de fato comprovada. Nos incisos III e V a alusão a marido compreende o companheiro. [186]

Belmiro Pedro Welter não é tão categórico, ou seja, não faz referência expressa ao artigo de lei, porém, acentua que "Não é apenas no casamento que se presume a paternidade e a maternidade, como também na constância da união estável." [187]

Assumindo posicionamento de que, em ambos os casos – casamento ou união estável –, a paternidade restará estabelecida se o homem previamente consentiu a utilização de seu material genético após seu óbito, tem-se Tycho Brahe Fernandes [188].

A lição de Heloisa Helena Barboza, não obstante ser anterior à entrada em vigor do Código Civil Brasileiro de 2002, merece ser trazida à baila:

Inicialmente deve se verificar a existência de uma união estável que conduz a situações análogas às do casamento. No caso da inseminação artificial homóloga, a paternidade deve ser atribuída ao companheiro da mãe. Parece-nos que seria de todo útil que a lei que regulamentasse a união estável cuidasse expressamente da matéria, estabelecendo até mesmo a presunção de paternidade, cumpridos determinados requisitos. Não havendo o reconhecimento voluntário, a prova será relativamente fácil para o filho, sendo suficiente que demonstre a existência da vida more uxorio e a inseminação artificial, com ou sem a concordância do companheiro. Se necessário, recorrer-se-á à perícia para determinação da origem genética. [189]

Mais adiante, a citada autora assevera que deve ser dado o mesmo tratamento aos casos de fertilização in vitro [190].

Convém sublinhar, outrossim, a preocupação de Heloisa Helena Barboza, estampada no trecho de sua lição retrotranscrito, com um aspecto que antecede a própria presunção: a existência da união estável entre seus pais. Guilherme Calmon Nogueira da Gama também lança enfoque sobre tal assunto:

No que se refere às técnicas de reprodução assistida aplicadas em relação à mulher que é companheira, mantendo de fato sua união fundada na sexualidade, a questão jurídica diz respeito ao mecanismo que deve ser considerado, no âmbito jurídico, para fins de estabelecimento do vínculo jurídico com a criança a nascer. Diversamente do casamento, o companheirismo não é provado por documento, já que não existe certidão de companheirismo. [191]

O ordenamento jurídico francês possui dispositivo legal (Código de Saúde Pública, artigo 152-2) que exige ao casal de companheiros a comprovação da vida comum por, no mínimo, dois anos, bem como a manifestação, previamente à concepção, do consentimento por ambos. [192]

Ao contrário da França, o Brasil não detém disciplina legal neste sentido. Guilherme Calmon Nogueira da Gama, pois, sugere que o médico, ao ser procurado por uma mulher que alegue ser companheira, exija a prova da união estável. [193] E prossegue asseverando, inclusive, a dispensa do prévio consentimento no caso da modalidade homóloga [194]:

Caso a hipótese seja de reprodução assistida homóloga, o mecanismo é bem mais fácil, diante do fundamento biológico ser evidente, bastando a existência do companheirismo à época da concepção para o fim de se estabelecer a paternidade relativamente ao companheiro, ainda que ele não tenha manifestado sua vontade nesse sentido. [195]

Conquanto afastada a questão do casamento e da união estável, ainda assim a inseminação artificial e a fertilização in vitro homólogas post mortem enfrentam uma série de resistências.

Segundo Fábio Alves Ferreira, os argumentos contrários a tal prática reprodutiva, quando posterior à morte do pai, residem no direito da família e no direito à identidade pessoal da criança que, então, já nasceria órfã, não se beneficiando consciente e deliberadamente da estrutura familiar biparental, não se olvidando também da situação distinta criada no que tange ao estabelecimento da filiação e do direito sucessório [196].

Carlos Alberto Bittar, citado por Anison Carolina Paludo, também é contra a reprodução assistida post mortem, argumentando que tal prática " [...] conduz a três situações esdrúxulas: a) a criança superveniente não terá pai, eis que morto; b) não poderá levar o nome, nem ser registrado como seu filho; c) não disporá, ademais, do respectivo convívio." [197]

Acrescenta-se ainda dois aspectos que podem ser utilizados como argumentos contrários à reprodução assistida homóloga póstuma, caso não sejam respeitados: a dignidade da pessoa humana e a paternidade responsável. Neste norte, Guilherme Calmon Nogueira da Gama articula de modo geral:

As únicas limitações quanto à liberdade no planejamento familiar são a dignidade da pessoa humana e a paternidade responsável, o que implica a assertiva de que o direito à reprodução assistida não pode ser considerado senão dentro do contexto acentuadamente solidarista e humanista do Direito de Família, devendo ser avaliado previamente. Assim, no sistema jurídico-constitucional, interesses meramente pessoais da pessoa que pretende obter o auxílio de técnica de procriação artificial [...] não podem autorizar tal prática. [198]

Como se viu, o ordenamento jurídico pátrio é um tanto deficiente na matéria, carecendo quanto ao estabelecimento de hipóteses e limites bem definidos. Maria Rosália Pinfildi Gomes atenta, sobretudo, à prática de crimes nesta área. Sem embargo, enfoca aspecto que deve ser levado em conta em qualquer seara do Direito: "Atendendo aos reclamos da Bioética, bem como aos de seus princípios basilares, impõe-se o estabelecimento de normas que garantam o respeito devido aos valores básicos da natureza, do homem e da vida social, protegendo não só a vida, mas também a integridade física e mental." [199]

Quanto às presunções propriamente ditas, inclusive, parece muito adequado o apontamento de Mário Aguiar Moura, citado por Arnaldo Rizzardo, ao asseverar que "O sistema legal de presunção esvazia-se diante da verdade objetiva das coisas." [200]

Sérgio Ferraz, ao cogitar problemas, indica sugestões de regulamentação que, inclusive, podem gerar maiores problemáticas:

‘De lege ferenda’, parece que seria útil criar algumas limitações temporais, para promover a fecundação artificial (sobretudo a ‘in vitro’, que quase sempre produz fecundação e, portanto, a formação do embrião), de sorte, sobretudo, a vedá-la após a morte do marido doador do sêmen. O problema, porém, não estaria, só aí, resolvido: mesmo criadas legislativamente tais limitações, a inseminação poderia, ainda assim, ser promovida. E é evidente que, se tal ocorrer, independentemente das sanções que a eventual lei imponha ao médico e à mãe, o filho não poderá sofrer qualquer discriminação ou limitações nos direitos concernentes à filiação. [201]

Guilherme Calmon Nogueira da Gama, utilizando-se de trecho do Relatório Geral concernente ao Código Civil de 2002 do Deputado Ricardo Fiúza, é incisivo quanto à insuficiência da regulamentação voltada à filiação oriunda de reprodução assistida em geral:

Após proceder a várias indagações a respeito das polêmicas envolvendo as técnicas de reprodução assistida [...], o Relator-Geral concluiu que a redação do Código Civil a respeito da inseminação artificial ‘poderá trazer problemas para a legislação futura que não poderia, por exemplo, dispor sobre a destruição de embriões congelados", num autêntico reconhecimento do inadequado, insuficiente e excludente tratamento do novo Código Civil dispensado à filiação civil decorrente da reprodução assistida heteróloga, ao menos sob o prisma formal. [202]

Existem alguns projetos de lei da Câmara dos Deputados [203] e do Senado Federal [204] que tratam da reprodução assistida. No entanto, daqueles cujo inteiro teor se encontram disponíveis na internet, frisa-se que nenhum trata especificamente – ainda que em um ou alguns de seus artigos – da questão da filiação nos casos de inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem.

Convém apontar, no entanto, um projeto de lei anterior ao Código Civil Brasileiro de 2002, qual seja, o Projeto de Lei n. 2.855/97, que dispõe sobre a utilização das técnicas de reprodução assistida e dá outras providências, de autoria de Confúcio Moura e que se encontra tramitando em conjunto com o Projeto de Lei n. 1.184/03 [205]. O projeto de lei n. 2.855/97 sob comento, pois, possui um artigo que merece ser colacionado: "Art. 22. É vedado o reconhecimento da paternidade, ou qualquer relação jurídica, no caso de morte de esposo ou companheiro anterior à utilização médica de alguma técnica de RHA [reprodução humana assistida], ressalvados os casos de manifestação prévia e expressa do casal." [206] Veja-se que, apesar de não resolver as insuficiências constatadas, ao menos o dispositivo é expresso quanto à exigência da manifestação prévia e expressa do casal no que tange à utilização de alguma técnica de reprodução assistida após a morte do esposo ou companheiro.

Seguindo a linha da necessidade da anuência expressa e prévia, tem-se o Projeto de Lei n. 1.184/03, do Senado Federal, que dispõe sobre a reprodução assistida, definindo normas para realização de inseminação artificial e fertilização in vitro e proibindo a gestação de substituição e os experimentos de clonagem radical [207]. Colhe-se, pois:

Art. 14. Os serviços de saúde são autorizados a preservar gametas humanos, doados ou depositados apenas para armazenamento, pelos métodos e prazos definidos em regulamento. . § 1º Os gametas depositados apenas para armazenamento serão entregues somente à pessoa depositante, não podendo ser destruídos sem sua autorização. . § 2º É obrigatório o descarte de gametas: . I – quando solicitado pelo depositante; . II – quando houver previsão no documento de consentimento livre e esclarecido; . III – nos casos de falecimento do depositante, salvo se houver manifestação de sua vontade, expressa em documento de consentimento livre e esclarecido ou em testamento, permitindo a utilização póstuma de seus gametas. [208]

Nota-se que a disposição que concerne ao debate encontra-se fora do contexto imaginado, ou seja, localiza-se em esfera destinada ao descarte das células reprodutivas. De qualquer modo, extrai-se do inciso III do transcrito parágrafo segundo que, para a utilização dos gametas post mortem, imprescindível se faz a manifestação prévia e expressa, ainda que por testamento. Resta ainda atentar-se que o artigo colacionado restringe-se ao material genético congelado, nada abordando acerca dos embriões.

O recente Projeto de Lei n. 4.686/04, de autoria de José Carlos Araújo e que está tramitando em conjunto com o Projeto de Lei n. 120/03, "Introduz art. 1.597-A à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, assegurando o direito ao conhecimento da origem genética do ser gerado a partir de reprodução assistida, disciplina a sucessão e o vínculo parental, nas condições que menciona." [209] Em que pese o teor da ementa permitir que se deflua abrangência e resolução dos conflitos verificados, mister se faz esclarecer que as normas do projeto referem-se tão somente à modalidade heteróloga de reprodução assistida.

Tycho Brahe Fernandes ainda revela duas situações no contexto brasileiro que concerne a uma emenda e a um projeto de lei:

[...] é relevante destacar que o senador José Fragelli apresentou a emenda de número 224 ao Projeto do Código Civil, na qual era incluído parágrafo único no artigo 1.062, com o seguinte teor: "Consideram-se também legítimos os filhos concebidos por fecundação artificial após a morte do marido, da mulher ou de ambos, empreendida com células reprodutivas que deles procedam, desde que o cônjuge sobrevivente, se houver, se mantenha viúvo e observadas, em qualquer caso, as condições que, por escrito, haja estabelecido o casal em declaração conjunta." Referida emenda acabou tida como inconstitucional por tratar de filiação legítima, sem que a questão da reprodução post mortem fosse apreciada. [...]. O artigo 22 do Projeto de Lei de autoria do deputado Confúcio Moura veda o reconhecimento da paternidade no caso de morte do esposo ou companheiro da mãe anterior à aplicação da técnica, "ressalvados os casos de manifestação prévia e expressa do casal" [...]. [210]

Entre as datas de 11 a 13 de setembro de 2002, deu-se a Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal e com a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do Superior Tribunal de Justiça [211]. Nesta Jornada de Direito Civil, restaram aprovados inúmeros enunciados, dentre os quais, alguns referentes a dispositivos legais do Código Civil Brasileiro de 2002 concernentes ao Direito de Família e das Sucessões, específicos sobre a discussão travada nesta pesquisa [212]. Também restaram apresentadas propostas de modificação do vigente Código Civil, algumas também pertinentes ao debate entabulado neste trabalho [213].

Nota-se, portanto, que ainda não existem manifestações legislativas destinadas à resolução das problemáticas pertinentes à inseminação artificial e à fertilização in vitro homólogas póstumas.

No direito comparado, considerando-se a reprodução assistida como um todo, Guilherme Calmon Nogueira da Gama adverte que "[...] vários sistemas jurídicos já formalizaram expressamente algumas regras jurídicas a respeito do tema, mas quase todos ainda apresentam lacunas, inclusive aqueles da tradição anglo-saxã." [214] Em outra obra, o autor revela que "Algumas legislações contemporâneas vêm sendo alteradas justamente com o fito de regular as novas técnicas que se apresentam, fundadas em valores, interesses e anseios distintos, daí a falta de uma sistematização jurídica [215] a respeito."

O direito espanhol, por exemplo, exige, de acordo com a Lei n. 35, de 22 de novembro de 1988, que trata das técnicas de reprodução assistida, que o sêmen já se encontre no útero materno quando da morte do pai, a fim de determinar com rigor a filiação, salvo se, em testamento, o marido autorizar expressamente a fecundação depois da sua morte, no prazo de seis meses [216].

A Alemanha, por sua vez, é radical: "[...] através da lei n. 745/1990 proíbe a inseminação post mortem, punindo com prisão de até 3 anos ou multa todo aquele que conscientemente utilize gameta de doador morto." [217]

A Lei de Fertilização Humana e Embriologia do Reino Unido, de primeiro de novembro de 1990, no item 6, "b", de seu artigo 28, nega a paternidade da criança fecundada após a morte daquele que seria o pai [218].

A Suécia salienta alguns aspectos acerca da reprodução assistida homóloga, porém, não admite a sua realização em momento póstumo:

A nova lei (de 1985) considerou a inseminação homóloga como medida ginecológica para remediar a esterilidade do casal. Nenhum problema jurídico é suscitado uma vez que o marido é o pai biológico da criança. A nova lei permite a IAC [inseminação artificial homóloga] às uniões livres, uma vez que a coabitação sem matrimônio é algo comum na Suécia. Mas a inseminação homóloga "post mortem" ficou vedada pela nova legislação. [219]

O direito francês aplica as mesmas regras nos casos da inseminação artificial ocorrer nos casos de casamento e de união estável. No entanto, segue o mesmo horizonte da Alemanha e da Suécia, vedando a modalidade post mortem:

Realizada "inter vivos", a inseminação artificial pelo marido ou pelo concubino não cria nenhum problema, mesmo no plano ético. A criança está juridicamente vinculada a seu pai e a sua mãe (e sem possibilidade de contestação, porque ele se encontra vinculado a ambos biologicamente). . [...] . A inseminação artificial "post mortem" é [...] proibida, por se tratar de inseminação de uma mulher só, diante da qual, o projeto parental se extingue. [220]

Especificamente, pois, tem-se que o direito estrangeiro, outrossim, não é uníssono quanto à possibilidade da procriação assistida homóloga póstuma. Nos ordenamentos jurídicos que a admitem, procura-se estabelecer prazos a serem respeitados.

Outrossim, releva destacar que foi na França que ocorreu uma situação, conhecida como "o caso Parpalaix", de repercussão mundial e que corroborou a conclusão de que "Relativamente à fecundação post mortem – a presunção pater is est..., entendida nos moldes tradicionais, tem-se mostrado inapropriada." [221] Relata, pois, Taisa Maria Macena de Lima:

O caso Parpalaix [...], amplamente divulgado pela imprensa mundial, pôs em evidência o descompasso entra a norma jurídica e realidade social. . A jovem viúva Corinne Parpalaix solicitou à Justiça francesa uma autorização para se fazer fecundar com o sêmen de seu marido, falecido em dezembro de 1983, em virtude de câncer nos testículos. Alain, o marido de Corinne, depositou seu sêmen no Centro de Estudos e Conservação do Esperma – CECOS – ao saber que se tornara estéril, em conseqüência de quimioterapia a que teria de ser submetido. Com a morte de Alain, Corinne pediu ao CECOS a liberação das células reprodutoras, para, com elas, ser artificialmente fecundada. Mas o CECOS não lhe atendeu o pedido e a questão foi levada à Justiça. . A despeito de opiniões contrárias de segmentos da sociedade francesa, o Tribunal de Creteil decidiu, afinal, em favor de Corinne [...]. [222]

No entanto, a gravidez esperada pela viúva Corinne resultou inexitosa, haja vista que todas as tentativas de inseminação artificial falharam [223]. Registra-se, outrossim, que o aludido Tribunal não se pronunciou quanto à filiação e à problemática sucessória [224].

A Itália possui um caso que também merece destaque, apesar de não ter sido utilizado o óvulo da mulher do falecido:

Semelhante ao caso de Corinne foi o da viúva italiana A.C., de 62 anos, fertilizada com o sêmen de seu marido, morto há 10 anos, e um óvulo de uma doadora. . A viúva teve um bebê que não é biologicamente seu filho e não tem pai, provocando inúmeras críticas na comunidade médica. [225]

Deflui-se, pois, que tanto no âmbito nacional quanto no internacional, a questão da filiação nos casos de inseminação artificial e da fertilização in vitro homólogas post mortem ainda não encontra solo jurídico firme diante de sua própria complexidade e conseqüências geradoras.

Como foi possível observar, o direito brasileiro não afastou a possibilidade da reprodução medicamente assistida na forma homóloga e em momento post mortem. Destarte, como não existe a proibição expressa, torna-se imprescindível que o legislador pátrio trace um contorno mínimo acerca da matéria. O conflito entre princípios é inevitável, o que não pode ser utilizado como argumento para a ausência de regulamentação. De qualquer modo, caberá ao aplicador do Direito analisar o caso concreto e ponderar os princípios.

Considerando-se, pois, os princípios indigitados ao longo da explanação, sobretudo, levando-se em conta o melhor interesse da criança, entende-se que a primeira disposição, pois, deve ser concernente à exigência de consentimento prévio e expresso do marido ou do companheiro que teve colhido seu material genético para eventual utilização em procriação assistida após a sua morte. Outro ponto que seria conveniente delimitar seria o prazo para a realização da fecundação com o esperma do de cujus, a fim de preservar a segurança jurídica, sobretudo [226].

Trata-se de medidas que visam resguardar os interesses da criança gerada, garantir segurança aos parentes do falecido, preservar o direito à intimidade do de cujus e assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana, haja vista a filiação acarretar uma série de efeitos, tais como nome, guarda, educação, assistência material, moral e afetiva, alimentos e direitos sucessórios. A questão da sucessão dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem é a que mais causa polêmica, razão pela qual é examinada em capítulo apartado.

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Sobre a autora
Francieli Pisetta

- Autora do livro "Responsabilidade civil das prestadoras de serviço público: um enfoque sobre o não usuário" (Editora LTr)<br>- Autora do livro "Reprodução assistida homóloga post mortem: aspectos jurídicos da filiação e do direito sucessório" (Editora Lumen Juris)<br>- Especialista em Direito Público com habilitação para mercado de trabalho e exercício do magistério superior – pela FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau) <br>- Especialista em Direito Processual Civil com habilitação para mercado de trabalho – pela Rede de Ensino LFG (Luiz Flávio Gomes) em parceria com a UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina); - - Especialista em Direito Civil com habilitação para mercado de trabalho e exercício do magistério superior – pela FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau) e UNERJ (Centro Universitário de Jaraguá do Sul)<br>- Trabalhou como docente do Curso de Direito na UnC (Universidade do Contestado)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PISETTA, Francieli. A filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil brasileiro de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3000, 18 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20022. Acesso em: 22 dez. 2024.

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