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A filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil brasileiro de 2002

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18/09/2011 às 10:03
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4 O DIREITO SUCESSÓRIO dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem

A questão do direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem é, sem sombra de dúvidas, a grande tormenta oriunda desta situação fática, uma vez que as problemáticas já se iniciam, como se viu, na própria determinação da filiação.

Teria a criança gerada, através das mencionadas técnicas de reprodução assistida na forma homóloga e após a morte do homem, o direito de herdar parte do patrimônio do de cujus? Compreende-se este como o questionamento que melhor retrata a problemática da sucessão nestes casos, uma vez que enseja muitas outras indagações conseqüentes, especialmente quanto à segurança jurídica. Exemplifica-se, interrogando-se por quanto tempo os herdeiros do falecido deveriam aguardar para interpor/encerrar um inventário no caso desse ter colhido material genético hábil a viabilizar uma fecundação com os gametas da viúva ou, então, de existir embriões seus criopreservados. Estas e muitas outras inquirições frutificam exatamente do fato de ser possível a inseminação artificial e a fertilização in vitro homólogas post mortem.

A problemática principal revelada será objeto central de debate no presente capítulo. Assim, inicia-se a explanação tratando de noções gerais acerca da sucessão, precipuamente quanto à ordem de vocação hereditária para identificar quem pode ser considerado herdeiro. Tal abordagem permitirá seguir-se para a análise da regulamentação legal existente no Brasil, bem como de concisa menção sobre o tema nos ordenamentos jurídicos alienígenas, considerando-se sempre as indigitadas técnicas de reprodução medicamente assistida. Por conseguinte, do mesmo modo que ocorreu no capítulo destinado à filiação, será possível a contemplação de problemáticas e reflexões acerca da temática.

Exaustivamente esmiuçado nas duas partes anteriores a este capítulo, entende-se prescindível reforçar o que vem a ser a inseminação artificial e a fertilização in vitro homólogas póstumas. Destarte, para evitar repetição enfadonha, faz-se remissão às considerações já tecidas e adentra-se no assunto destinado ao capítulo propriamente dito.

4.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE SUCESSão EM GERAL

Arnaldo Rizzardo introduz o tema das sucessões, invocando aspectos extrajurídicos relacionados ao ser humano:

Na humanidade nada é eterno, duradouro ou definitivo. É o homem perseguido pelo estigma de sua finitude, que o acompanha em sua consciência e limita os anseios no futuro. Esta a verdade mais concreta, dura e incontestável. Mas a sucessão, de algum modo, tem uma sensação de prolongamento da pessoa, ou de atenuação do sentimento do completo desaparecimento, especialmente quando são realizadas obras que refletem o ser daquele que morre, e que o tornam vivo ou presente nas memórias. [227]

Suceder nada mais é, pois, do que substituir, tomar o lugar de outro indivíduo no campo dos fenômenos jurídicos. Na sucessão, portanto, há uma substituição do titular de um direito, sendo este o conceito amplo de sucessão no direito [228]. Vale destacar que Sílvio de Salvo Venosa aponta, inclusive, que a etimologia da palavra sub cedere tem exatamente o sentido de alguém tomar o lugar de outrem. [229]

Maria Helena Diniz traz observação apropriada no sentido de que a mudança se refere aos indivíduos, aos titulares, e não à relação jurídica. Desta feita, acentua que "A idéia de sucessão gira em torno da permanência de uma relação jurídica, que subsiste apesar da mudança dos respectivos titulares." [230]

Débora Gozzo e Sílvio de Salvo Venosa traçam a diferenciação básica entre a sucessão lato sensu e aquela estudada no direito sucessório:

Quando se fala, no direito, em direito das sucessões, está-se tratando de um campo específico do direito civil: a transmissão de bens, direitos e obrigações em razão da morte. É o direito hereditário, que se distingue do sentido lato da palavra sucessão, que se aplica também à sucessão entre vivos. [231]

No mesmo horizonte, Eduardo de Oliveira Leite promove a distinção da sucessão, considerando seus sentidos amplo e restrito, sendo este último concernente ao direito das sucessões propriamente dito:

A palavra "sucessão", na técnica jurídica, tem vários significados. No sentido amplo, suceder a uma pessoa significa vir depois dela, tomar o seu lugar, assumindo todo ou parte dos direitos que lhe pertencem. É nesse sentido, por exemplo, que se aplica o vocábulo na sucessão inter vivos, por meio da qual o comprador sucede ao vendedor, ou o donatário ao doador. No sentido restrito, que é o empregado pelo legislador, a palavra sucessão designa a transmissão de bens de uma pessoa em virtude de sua morte. Isto é, transmissão causa mortis (ou, sucessio causa mortis). A sucessão implica na transmissão do patrimônio de uma pessoa falecida a uma ou outras pessoas. Daí a forma latina, succedere, ou seja, vir ao lugar de alguém. [232]

Dentro do sentido estrito, Maria Helena Diniz ainda traz uma subdivisão da sucessão: "[...] no conceito subjetivo, é o direito por força do qual alguém recolhe os bens da herança, e no conceito objetivo, indica a universalidade dos bens do de cujus, que ficaram com seus direitos e encargos." [233]

Tais conceituações e diferenciações permitem a averiguação da existência de um objeto da sucessão. Este objeto, pois, é a universalidade dos direitos ou dos bens que alguém deixou em virtude de seu falecimento [234].

A respeito da natureza jurídica da sucessão causa mortis, Arnaldo Rizzardo revela a existência de opiniões diferentes na doutrina, porém, conclui tratar-se de direito real:

Quanto à natureza jurídica, sem dúvida, a matéria conduz a controvérsias, porém suscitadas mais por doutrinadores que discutem a existência de uma relação jurídica, já que se trata de uma sucessão causa mortis, em que inexiste um nexo de vontade entre o autor da herança e os herdeiros. Alega-se que o de cujus não tem qualquer ato de vontade, o que é óbvio. . No entanto, deve-se apreciar a questão sob o enfoque de como se dá a transferência. E tal acontece em virtude da lei, ou do direito, isto é, ipso jure. Transferem-se os direitos, ou os bens e obrigações para os herdeiros, simplesmente em virtude da lei, sem qualquer manifestação das vontades. O herdeiro recebe os bens independentemente de seu querer, embora a possibilidade de renúncia, a qual, em algumas vezes, é prevista em lei. Aí, sim, existe um ato de vontade. . [...] . Trata-se de um direito real? . Evidentemente, a resposta é afirmativa, pois, pelo art. 1.784 do Código Civil (art. 1.572 do Código revogado), "aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários". O só fato da abertura da sucessão determina a transmissão da herança. Não se concretiza a transferência como registro do formal de partilha. O herdeiro adquire a propriedade dos bens que lhe tocam na herança independentemente do registro, que apenas se faz presente ao final, quando da expedição do formal de partilha. [235]

Não se adentrando às divergências doutrinárias acerca da natureza jurídica, sob pena de desvirtuamento do objeto da presente pesquisa, cumpre-se ressaltar as espécies sucessórias existentes na seara jurídica brasileira no contexto atual.

O legislador do Código Civil de 2002 manteve as mesmas formas de sucessão previstas no Código Civil de 1916 [236]. Reza, pois, o artigo 1.786 do diploma civil vigente que "A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade." [237] Observa-se, portanto, que as formas de sucessão existentes no ordenamento jurídico pátrio correspondem à sucessão legítima, decorrente dos preceitos da lei, e à sucessão testamentária, relativa à disposição de última vontade do indivíduo [238].

A sucessão legítima também é denominada ab intestato, ou seja, sem testamento. "A expressão ab intestato significa a sucessão sem testamento, proveniente de testare, como acréscimo do prefixo in, traduzido como não. Portanto, considerada a palavra testato com o in, tem-se a sucessão não testamentada." [239]

Eduardo de Oliveira Leite possui escólio a respeito desta espécie de sucessão que elucida a sua conceituação e contempla o seu fundamento:

Sucessão legítima é a que, na falta de disposição testamentária do de cujus, a lei defere aos seus parentes, reforçando o vínculo familiar e atendendo à vontade presumida do defunto. O seu fundamento maior continua sendo a preocupação social com a unidade e a solidariedade da família. [...] . A sucessão legítima baseia-se, pois, no vínculo de família, de sangue e de afinidade. E verifica-se quando existem herdeiros legítimos (necessários ou facultativos); quando não há disposição testamentária. [240]

Contudo, a sucessão legítima não ocorre apenas quando não existe testamento. Pode ocorrer também quando há testamento, já que pode haver uma parte indisponível. Doutra banda, pode igualmente se verificar no caso do testamento ter caducado ou ter sido julgado nulo [241]. Neste diapasão, colaciona-se o teor do artigo 1.788 do Código Civil Brasileiro de 2002: "Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo." [242]

Além desta espécie de sucessão, existe a sucessão testamentária ou por disposição de última vontade que "[...] ocorre sempre que o autor da herança fizer testamento, a fim de dispor acerca de seu patrimônio para depois da sua morte, bem como para deixar consignada sua última vontade." [243] Zeno Veloso efetua a seguinte elucidação:

A sucessão testamentária (que, em última análise, também é prevista em lei e nesse sentido é igualmente legítima) toma por base as disposições de última vontade feitas em testamento pelo autor da herança. Não é, exatamente, como alguns dizem, a vontade de um morto que se vai cumprir. Morto não tem vontade. Trata-se da vontade de um vivo, para depois da morte. A vontade foi do vivo; os efeitos ocorrem com o falecimento dele. [244]

Arnaldo Rizzardo, por sua vez, em sua lição, perfilha que, com a sucessão testamentária, tem-se

[...] um ato unilateral de vontade, dispondo especialmente quanto aos bens em favor de terceiro, para valer após a morte daquele que dispõe com a possibilidade de revogação. Não pode valer enquanto vivo o testador, eis que é proibido pactuar herança de pessoa viva, o que decorre do art. 426 do Código Civil (art. 1.089 do Código revogado). Unicamente doações vêm permitidas em vida e, mesmo assim, consideradas como adiantamento de legítima quanto aos descendentes. Nem é admitida qualquer remuneração ou contraprestação, o que torna o ato gratuito. São aceitos como favorecidos os parentes legítimos, isto é, os definidos por lei, e os terceiros sem nenhum laço de parentesco com o testador. [245]

Cumpre ainda avultar que, na prática, a sucessão legítima ocorre com maior freqüência do que a testamentária [246].

Destarte, expostas as modalidades sucessórias, tem-se que, consoante o artigo 1.784 do Código Civil Brasileiro de 2002, a herança se transmite aos herdeiros legítimos e testamentários quando da abertura da sucessão [247]. A abertura da sucessão, pois, ocorre no exato momento da morte do indivíduo, haja vista a adoção do princípio de saisine.

Tal princípio tem origem no direito francês, sendo recepcionado pelo direito português no século XVIII e, posteriormente, acolhido no Brasil através da Consolidação das Leis Civis realizada por Teixeira de Freitas [248]. Maria Helena Diniz discorre sobre o princípio sob comento:

O princípio da saisine, introduzido no direito português pelo Alvará de 1745, donde passou para o direito das sucessões pátrio, determina que a transmissão do domínio e da posse da herança ao herdeiro se dê no momento da morte do de cujus independentemente de quaisquer formalidades. [249]

Em outras palavras, o herdeiro sucede o de cujus, não sendo necessário para isso qualquer ato específico, e tendo em vista ainda que sequer é exigido que o sucessor tenha ciência a respeito do fato de ter sido aberta a sucessão [250].

Neste passo, não se pode cogitar de sucessão sem a existência de um óbito. A relevância deste fato – a morte – para o direito das sucessões é bem sublinhada por Arnaldo Rizzardo:

A morte, que é fato natural, transforma-se em fato jurídico, ao desencadear tal gama de efeitos, por quanto dela advém, dentre outras conseqüências, a mudança na titularidade dos bens. Ao mesmo tempo em que põe termo aos direitos e obrigações do de cujus, faz emergir direitos e obrigações relativamente aos herdeiros. [251]

O fato jurídico "morte", portanto, é o ponto nevrálgico do direito sucessório brasileiro. Neste diapasão, verifica-se:

A morte natural é o cerne de todo o direito sucessório, pois só ela determina a abertura da sucessão, uma vez que não se compreende sucessão hereditária sem o óbito do de cujus, dado que não há herança de pessoa viva. No momento do falecimento do de cujus abre-se a sucessão, transmitindo-se, sem solução de continuidade, a propriedade e a posse dos bens do defunto aos seus herdeiros sucessíveis, legítimos ou testamentários, que estejam vivos naquele momento, independentemente de qualquer ato. Essa transmissão é, portanto, automática, operando-se ipso iure. [252]

A morte, porém, pode ser natural ou presumida. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka atenta que a morte natural se observa com a cessação das atividades cerebrais do indivíduo, sendo que tal fato deve ser atestado por profissionais da medicina, de acordo com as técnicas seguidas usualmente pela ciência. [253]

Prevê o artigo 6º do Código Civil Brasileiro de 2002 que "A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura da sucessão definitiva." [254]

Da leitura da segunda parte do transcrito artigo 6º, denota-se que a morte presumida refere-se à ausência. Mas o Código Civil Brasileiro de 2002 trouxe uma novidade em relação ao código anterior, admitindo a morte presumida também nos casos elencados no artigo 7º:

Art. 7º. Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: . I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. . Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. [255]

A definição do exato instante do falecimento, seja natural ou presumido, como o momento da abertura da sucessão é compreensível se lembrado que, com a morte, todo o patrimônio do de cujus fica sem um titular. Ocorre que o direito pátrio não admite a ausência de titularidade, não tolera a hipótese da res nullius [256] (coisa de ninguém), razão pela qual ocorre a sua transmissão automática e imediata aos herdeiros do falecido.

Morte e transmissão: apesar de coincidirem no espaço temporal, a segunda não subsiste sem a primeira quando se trata de sucessão mortis causa. É o que perfilha Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka que, inclusive, aponta a justificativa pertinente:

A sucessão considera-se aberta no instante real ou presumido da morte de alguém, fazendo nascer o direito hereditário e operando a substituição do falecido por seus sucessores a título universal nas relações jurídicas em que aquele afigurava. Não se confundem, todavia. A morte é antecedente lógico, é pressuposto e causa. A transmissão conseqüente, é efeito da morte. Por força de ficção legal, coincidem em termos cronológicos, imaginando a lei que o próprio de cujus investiu seus herdeiros no domínio e na posse indireta de seu patrimônio, que este não pode restar acéfalo. [257]

Mas nem todos os herdeiros recebem a herança, necessariamente. Aliás, compete frisar que não apenas herdeiros podem ser os sucessores, mas também os legatários. Enfoca, nesta senda, Francisco José Cahali:

Relativamente ao pólo passivo da transmissão hereditária, essa posição é ocupada, na estrutura da relação jurídica transmissiva mortis causa, pelos sucessores, que podem ser herdeiros ou legatários, conforme sejam agraciados com uma quota-parte ideal ou com um bem ou direito específico. [258]

Prossegue o doutrinador esclarecendo que os herdeiros podem ser legítimos ou testamentários, sendo os primeiros os sucessores eleitos pela lei e, os segundos, aqueles sucessores indicados como beneficiários por disposição de última vontade, podendo, inclusive, ser um herdeiro legítimo. Já os legatários são os sucessores instituídos por testamento para perceber, a título singular, um bem certo e individualizado, podendo, também, coincidir com a pessoa do herdeiro legítimo ou testamentário [259].

De qualquer modo, adverte Heloisa Helena Barboza que existem três condições para que um sucessor possa perceber a herança, sejam elas, "[...] ser vivo, ser capaz e ser digno." [260] Tais pressupostos devem ser constatados por ocasião da morte, haja vista o princípio da saisine.

O Código Civil Brasileiro de 2002 tratou da primeira condição em seu artigo 2º ao prescrever que "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." [261]

Ao ordenamento jurídico, nesta vereda das sucessões, só interessa saber se o indivíduo tem capacidade de direito ou de gozo, não se importando, pois, se ele pode ou não exercer seus direitos e deveres (capacidade de fato ou de exercício). O essencial é tão-somente que a pessoa esteja viva. [262] E não importa se, no momento da morte do de cujus, o sucessor esteve vivo por fração ínfima de tempo, haja vista ser essa fração suficiente para que o sucessor ocupe o lugar que lhe compete [263].

No entanto, conveniente advertir, desde já, que a questão de estar vivo no momento da sucessão ou, então, de ser nascituro à época envolve algumas complexidades que serão examinadas mais adiante, em tópico apartado.

A capacidade de herdar é segunda condição. Sílvio de Salvo Venosa grifa que a regra geral é de que todos são capazes, sendo que apenas determinadas pessoas não têm capacidade para receber em certas heranças [264]. A propósito, Maria Helena Diniz proclama que não se pode confundir a capacidade civil com aquela de suceder, promovendo a diferenciação entre as mesmas e ilustrando a situação através de exemplos:

A capacidade civil é a aptidão que tem uma pessoa para exercer, por si, os atos da vida civil; é o poder de ação no mundo jurídico. A legitimação ou capacidade sucessória é a aptidão da pessoa para receber os bens deixados pelo de cujus, ou melhor, é a qualidade virtual de suceder na herança deixada pelo de cujus. P. ex. , uma pessoa pode ser incapaz para praticar atos da vida civil e ter capacidade para suceder; igualmente, alguém pode ser incapaz de suceder, apesar de gozar de plena capacidade civil, como ocorre com o indigno de suceder, que não sofre nenhuma diminuição na sua capacidade para os atos da vida civil, mas não a tem para herdar da pessoa em relação à qual é considerado indigno, pelo que não tem eficácia jurídica a declaração que, porventura, tenha feito de aceitar a herança. [265]

Logo, alguém civilmente incapaz pode ter capacidade sucessória. Alhures, alguém com capacidade civil pode não ser capaz de suceder. Resta, portanto, saber qual momento no qual o eventual sucessor deve ser colocado à prova da capacidade sucessória e se a possui efetivamente.

No Código Civil Brasileiro de 1916, o artigo 1.577 previa que "A capacidade para suceder é a do tempo da abertura da sucessão, que se regulará conforme a lei então em vigor." [266] Apesar deste dispositivo legal não ter sido recepcionado também pelo Código Civil Brasileiro de 2002, não se pode cogitar da hipótese de se afastar o requisito da capacidade para herdar. Ademais, o Código Civil vigente trata da legitimação para suceder em seu artigo 1.787: "Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela." [267]

Arnaldo Rizzardo explica o liame existente entre a capacidade e a legitimação:

Mas a capacidade de exercer e a personalidade enquanto exerce, se dirigidas para um determinado campo dos direitos, em face de uma qualidade que possui alguém, podem levar a pessoa a um campo específico, que é a legitimação, isto é, a aptidão para ser contemplada num determinado setor de direitos. Reconhece-se, então, a habilitação de se tornar sujeita de uma relação jurídica. . E, no caso do Direito das Sucessões, esta legitimação de alguém ser herdeiro, por preencher certos requisitos, chama-se vocação hereditária. Enquadrando-se no ordenamento legal que atribui à pessoa a condição de herdeira, diz-se que possui vocação hereditária. Mais resumidamente, há legitimação para herdar. [268]

Tratando-se, pois, de vocação hereditária, a primeira constatação que deve ser feita é aquela disposta no já transcrito artigo 1.798 do Código Civil Brasileiro de 2002, ou seja, o sucessor deve ser nascido ou já concebido no momento da morte do de cujus.

Entretanto, o artigo 1.799 do aludido diploma legal assinala algumas situações peculiares no caso da sucessão testamentária, dentre as quais a possibilidade de ser chamado a suceder o filho ainda não concebido:

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; . II – as pessoas jurídicas; . III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de sucessão. [269]

Outrossim, o vigente Código Civil Brasileiro preceitua, em seu artigo 1.801, o elenco das pessoas que não podem ser nomeadas herdeiras ou legatárias, isto é, que não possuem capacidade para suceder:

Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários: . I – a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge ou companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos; . II – as testemunhas do testamento; . III – o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge, há mais de cinco anos; . IV – o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento. [270]

Sílvio de Salvo Venosa adverte, contudo, que se trata de uma incapacidade relativa. Além disso, justifica a proibição de tais pessoas herdarem pelo fato de possuírem os vínculos legais determinados no dispositivo colacionado, o que torna a questão, na realidade, mais próxima da suspeição do que propriamente da incapacidade. [271] De qualquer modo, em se cuidando de incapacidade relativa, vale recordar-se da possibilidade de admissão de se produzir prova em contrário.

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A legitimação para herdar pode ser dos convocados por testamento e/ou consoante a vocação hereditária. Outrossim, existe uma ordem de chamamento dos sucessores, isto é, uma ordem de vocação hereditária. No caso da sucessão legítima, a ordem encontra-se prevista no artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro de 2002:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem: . I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; . II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; . III – ao cônjuge sobrevivente; . IV – aos colaterais. [272]

A inovação trazida pelo atual Código Civil é a concorrência do cônjuge com os filhos – ainda que em determinadas hipóteses – ou com os pais do falecido, o que não ocorria no diploma revogado [273]. Todavia, deixou o legislador de contemplar no dispositivo legal em apreço a situação das pessoas que vivem em união estável. Não obstante, verifica-se no artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro de 2002 algumas condições para o companheiro ou companheira herdar:

Art. 1.790. A companheira ou companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: . I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for distribuída ao filho; . II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; . III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; . IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. [274]

De qualquer modo, ser vivo e ser capaz no momento da abertura da sucessão não são características suficientes para que alguém possa suceder: o sucessor deve ainda ser digno. Esta é, pois, a terceira condição para que o sucessor possa receber a herança.

O sucessor indigno, pois, é afastado da vocação hereditária. A indignidade, no conceituada por Arnaldo Rizzardo, equivale à exclusão do herdeiro pela prática de atos ofensivos ou criminosos contra o falecido, autor da herança. [275]

Sílvio de Salvo Venosa pontifica acerca da motivação de se exigir que a pessoa sujeita a receber a herança seja considerada digna:

A vocação hereditária nascida do parentesco ou da vontade (legítima ou testamentária) supõe uma relação de afeto, consideração e solidariedade entre o autor da herança e o sucessor. No entanto, o sucessor, chamado pela ordem de vocação hereditária, pode praticar atos indignos dessa condição de afeto e solidariedade humana. É moral e lógico que quem pratica atos de desdouro contra quem lhe vai transmitir uma herança torna-se indigno de recebê-la. Daí por que a lei traz descritos os casos de indignidade, isto é, fatos típicos que, se praticados, excluem o herdeiro da herança. [276]

Com efeito, o ser humano é dotado de sentimentos variados e de intensidades diferentes. Como vive em sociedade, o homem manifesta tais sentimentos de diferentes formas, sendo mais lógico que bons sentimentos permeiem as relações mais próximas, especialmente familiares e afetivas. Desta feita, pressupôs o legislador que os sucessores chamados a herdar – vocação hereditária advinda do parentesco ou da vontade do falecido, consoante visto no trecho transcrito da lição de Sílvio de Salvo Venosa, repisa-se – deveriam agir em conformidade com os laços dos nobres sentimentos instituídos com o de cujus e que, na eventualidade de praticarem conduta(s) que violasse(m) tal pressuposto, não deveriam ser contemplados com a herança.

Por oportuno, traz-se à baila a ensinança de Eduardo de Oliveira Leite que corrobora o raciocínio explanado e, concomitantemente, diferencia a indignidade da incapacidade:

A indignidade não se baseia numa razão objetiva, mas numa circunstância eminentemente subjetiva, traduzida numa atitude de repúdio da lei pelos fatos graves cometidos pelo herdeiro contra o autor da herança. E, contrariamente, à incapacidade, é uma pecha, uma pena, uma sanção civil, enquanto aquela é um fato, um obstáculo. A incapacidade é a falta de aptidão para adquirir direitos, enquanto a indignidade é a perda desta aptidão por culpa do beneficiado. [277]

O Código Civil Brasileiro de 2002 enumerou os casos de indignidade em seu artigo 1.814, em capítulo denominado "Dos Excluídos da Sucessão" [278]:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: . I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; . . . II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. [279]

Diante do efeito gravoso que a indignidade gera para o sucessor, qual seja a exclusão da herança, evidente que a declaração desta condição não fica adstrita ao livre arbítrio de qualquer pessoa: faz-se indispensável o ingresso de ação competente para a comprovação da ocorrência de alguma das hipóteses ventiladas no dispositivo legal em tela. É o que se deflui da leitura do caput do artigo 1.815 do Código Civil vigente: "A exclusão do herdeiro ou legatário, em qualquer desses casos de indignidade, será declarada por sentença." [280] Registra-se ainda que "Tem legitimidade para propositura da ação de exclusão de herdeiro por indignidade, todo aquele que tenha interesse nessa declaração [...]" [281].

A lei prevê, no entanto, uma possibilidade do indigno se reabilitar, conforme se observa no artigo 1.819 do Código Civil Brasileiro de 2002:

Art. 1.818. Aquele que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança será admitido a suceder, se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, ou em outro ato autêntico. . Parágrafo único. Não havendo reabilitação expressa, o indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, pode suceder no limite da disposição testamentária. [282]

De qualquer maneira, o herdeiro ou legatário somente receberá a herança se reunir as três condições a serem verificadas no momento da morte do de cujus: estar vivo, ser capaz e ser digno.

As generalidades aportadas neste tópico da pesquisa, a princípio, podem sugerir a impressão de que inexistem maiores complexidades na vida prática. Todavia, mister se faz a averiguação destas normas gerais frente aos casos específicos de inseminação artificial e fertilização in vitro homólogas post mortem a fim de constatar a sua aplicabilidade e eventuais problemáticas.

4.2 DISCIPLINA LEGAL DADA NO BRASIL ACERCA DA SUCESSÃO: PROBLEMÁTICAS E REFLEXÕES ESPECÍFICAS NOS CASOS DE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL E FERTILIZAÇÃO IN VITRO HOMÓLOGAS POST MORTEM

Ainda que haja um testamento, haverá a sucessão legítima se houver herdeiros necessários, conforme se deflui do disposto no artigo 1.789 do Código Civil Brasileiro de 2002: "Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança." [283] O artigo 1.845 do diploma legal em apreço, por sua vez, revela que "São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge." [284]

Destarte, se, no momento da morte do de cujus, o seu descendente – herdeiro necessário, destaca-se – estiver vivo, for capaz e digno, será o primeiro a ser chamado a receber a herança, por força da vocação hereditária prevista no já transcrito artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro de 2002 – não se ignorando eventual situação de concorrência ou não com o cônjuge ou companheiro [285].

Infere-se, logicamente, que o filho será contemplado com a herança do pai falecido, não sendo relevante se gerado mediante reprodução natural ou medicamente assistida. Os problemas, no entanto, se iniciam quando os gametas do de cujus ou os embriões formados com seu material genético estiverem congelados no momento de sua morte. Tycho Brahe Fernandes atenta:

[...] se a criança já estiver concebida quando da morte do autor da herança, sendo deste herdeiro, herdará sem qualquer problema. . Agora a legislação deverá enfrentar o problema das técnicas de reprodução assistida nas quais o embrião, o esperma do autor da herança ou o óvulo da autora estiver crioconservado quando de sua morte. [286]

No caso dos filhos que possuem a paternidade presumida por força dos incisos I e II do artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002 [287], não se vislumbra tantas problemáticas. Não obstante, Eduardo de Oliveira Leite perfilha a possibilidade de comprovação ou contestação do tempo da concepção, associando a questão à sucessão:

[...] de acordo com o atual artigo 1.597 (ex-artigo 338) a lei admite ação judicial para fixar a data provável da concepção dentro do período legal de concepção ou para provar, ao contrário, que a gestação foi inferior a 180 dias, ou superior a 300 dias (art. 1.597). . Ou seja, se o sucessível nascer dentro dos 300 dias subseqüentes à data da morte do autor da sucessão, goza da presunção do artigo 1.597, e, pois, herda naturalmente. . Nada impede, porém, que os outros interessados intentem ação destinada aprovar que a concepção ocorreu posteriormente à data da abertura da sucessão. Como, igualmente, pode um herdeiro, nascido depois dos 300 dias subseqüentes à data da abertura da sucessão, propor ação destinada a provar que foi concebido antes ou no momento da morte do de cujus. [288]

Como resolver, porém, a situação hereditária daqueles que não se enquadram exatamente nas hipóteses de presunção do aludido artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002? Acerca do tema, passa-se a discorrer.

As técnicas de reprodução assistida enfocadas neste trabalho são a inseminação artificial e a fertilização in vitro, ambas na modalidade homóloga e efetuadas post mortem, espaço temporal este em que gravita a preocupação suscitada por Tycho Brahe Fernandes, retrocolacionada. Desta feita, sendo a questão dos direitos sucessórios a abordagem final desta pesquisa, convém relembrar, brevemente, a exata significação destas duas técnicas.

Na inseminação artificial, a fecundação ocorre no interior do organismo materno, mediante a injeção de espermatozóides. Já na fertilização in vitro, o encontro dos gametas, após prévia colheita, dá-se fora do corpo feminino ou, mais especificamente, em laboratório. Como ambas as técnicas são homólogas, as células germinativas são do homem e da mulher que efetivamente exercerão a paternidade e a maternidade da criança gerada. Outrossim, como o momento da fecundação é após o óbito do homem, ocorre a utilização de espermatozóides deste criopreservados.

A grande polêmica, nestes casos, reside justamente no fato da criança ainda não ter nascido no momento da morte do de cujus e, como esmiuçado na primeira parte deste capítulo [289], estar vivo é uma das condições para o sucessor herdar. Não obstante, consoante o já mencionado artigo 2º do Código Civil Brasileiro de 2002, "[...] a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." [290]

Débora Gozzo e Sílvio de Salvo Venosa atribuem a herança ao nascituro como expectativa de direito:

[...] embora antes do nascimento com vida o nascituro ainda não seja considerado pessoa para o ordenamento jurídico, ele tem expectativa de direito em relação à herança. Isso significa que, sendo ele um futuro herdeiro, havendo um inventário no qual ele possa ser incluído como herdeiro, esperar-se-á até o seu nascimento, para constatar-se se ele é ou não sucessor do de cujus. [291]

Mesmo assim, as problemáticas sucessórias não restam solucionadas, eis que existe a questão daquele que sequer estava concebido quando do falecimento do homem, também chamado nondum conceptus [292].

Na inseminação artificial homóloga post mortem não há que se cogitar em concepção no tempo do óbito do homem, eis que apenas existem espermatozóides e óvulos criopreservados.

Na situação da fertilização in vitro homóloga póstuma, outrossim, entende-se que podem se verificar duas situações: a) a clínica se utiliza dos espermatozóides congelados do então falecido e, com os óvulos da mulher, efetua a fecundação; b) a clínica possui os embriões já criopreservados, eis que a coleta das células germinativas e a fecundação ocorreu antes da morte do homem. No primeiro caso, a morte do homem precede à formação dos embriões, ou seja, não há que se falar em concebidos antes ou ao tempo do óbito. Em contrapartida, na segunda situação, há concebidos após este momento temporal.

Se tais técnicas de reprodução assistida homólogas póstumas já trouxeram dificuldades em relação à filiação, precipuamente frente à insuficiência da norma do artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002 que estabelece as presunções, a questão sucessória torna-se ainda mais complexa.

Caio Mário da Silva Pereira, referindo-se ao inciso III do indigitado artigo 1.597 [293], enfatiza que não se cuida de presunção, mas de ficção jurídica:

Em realidade, ocorrendo a concepção, por processo artificial, depois da morte do pai, não há que presumir sua contemporaneidade com um casamento sabidamente dissolvido por aquele óbito anterior: a hipótese é, claramente, de ficção jurídica, e não de verdadeira presunção. [294]

O autor ainda destaca como essa ficção jurídica poderia ser harmonizada com o artigo 1.798 do Código Civil Brasileiro de 2002, eis que este, repita-se, reza que apenas são legitimados a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas quando da morte do autor da herança:

Se o filho havido artificialmente, após a morte do pai, reputa-se concebido "na constância do casamento", estaria aparentemente preenchido o requisito para sua legitimação sucessória: seria ele, para os efeitos legais, um nascituro (e não mero concepturo), plenamente equiparado ao que, já concebido por processo natural, apenas não houvesse ainda nascido quando da abertura da sucessão. . A tendência, porém, é a de negar legitimação para suceder a tais pessoas. [295]

Porém, o inciso III do artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002 não fixa um limite temporal para que ocorra a concepção e, então, já se vê a problemática de uma espera por tempo indefinido de eventual utilização do material genético crioconservado do falecido. José de Oliveira Ascensão, citado por Caio Mário da Silva Pereira, elenca aspectos de ordem prática para embasar a negação da legitimação dos filhos havidos nos termos do dispositivo legal sob comento:

Toda a dinâmica da sucessão está arquitetada tendo em vista um desenlace da situação a curto prazo. Se se admitisse a relevância sucessória destas situações nunca seria praticamente possível a fixação do mapa dos herdeiros e o esclarecimento das situações sucessórias. E a partilha que porventura se fizesse hoje estaria indefinidamente sujeita a ser alterada. [296]

Esta seria a hipótese de inseminação artificial homóloga póstuma, já que nesta técnica são utilizados os espermatozóides congelados do marido ou companheiro. Assim, inexistindo o referido prazo no inciso III do aludido artigo 1.597, a perpetuidade do aguardo do uso dos gametas é fato incontestável.

No caso da fertilização in vitro homóloga post mortem, doutra banda, tal preocupação, a princípio, inexistiria, eis que, neste processo, a concepção precede à morte do homem. Neste norte, vale recordar que nesta técnica são formados os embriões para futura implantação no corpo materno. Assim, havendo embrião, há concepção. Por este motivo, Eduardo de Oliveira Leite perfilha que "A criança herdaria de seu pai porque concebida na data da abertura da sucessão." [297] Entretanto, a mesma situação da inseminação artificial, estampada no parágrafo anterior, seria verificada caso a fecundação, mediante fertilização in vitro, fosse realizada após a abertura da sucessão, ou seja, somente após a morte do pai é que seriam aproveitados os espermatozóides e os óvulos criopreservados para a concepção, para a formação do embrião.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama atenta para um quadro circunstancial que se vincula somente à técnica da fertilização in vitro póstuma:

Qual seria a data da concepção da criança em se tratando de hipótese em que após a fecundação em laboratório e, portanto, a formação do embrião, o marido (ou companheiro) vem a falecer antes da transferência do embrião para o corpo da mulher, já que o embrião pode ser crioconservado? Pode-se considerar que a circunstância do embrião ter se formado antes da morte do homem (marido ou companheiro) altera a solução da questão anteriormente colocada [refere-se à presunção da filiação existente no artigo 1.597, III, do Código Civil Brasileiro de 2002]. No direito brasileiro, como se sabe, a criança nascida depois dos trezentos dias da morte do marido não tem a paternidade automaticamente estabelecida em razão de não se aplicar a regra da presunção de paternidade relativamente ao falecido. [...] a concepção não pode ser confundida com o início da gravidez, sendo fato reconhecido juridicamente para o fim de não apenas estabelecer a paternidade, mas também para conferir direitos sucessórios à criança a nascer. [298]

Heloisa Helena Barboza, no entanto, entende que o embrião possui qualidade de pessoa, porém só será nascituro se implantado no útero, ambiente que permitirá a sua maturação até estar apto para a vida extra-uterina. [299] Na mesma esteira, pensa José Roberto Moreira Filho e acrescenta que "Para receber bens por sucessão legítima, tal embrião deverá estar implantado no útero feminino, pois só assim terá capacidade sucessória para herdar os bens do falecido." [300]

Na verdade, se o nascituro é o concebido e ainda não nascido, este posicionamento de Heloisa Helena Barboza e José Roberto Moreira Filho equivaleria a uma ficção jurídica. E ainda que fosse considerada, então, como ficção jurídica, não se estaria mais considerando a concepção, com a geração do embrião, e sim o início da gravidez. E, consoante a lição colacionada de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, não se pode confundir a concepção com o começo da gestação.

Luiz Victor Monteiro Alves aponta a discriminação relativa ao embrião quando não considerado nascituro:

Se o direito contemporâneo brasileiro adota essa linha de salvaguardar os direitos do nascituro, considerando-o titular de uma expectativa de direito, mostra-se estranha a diferenciação de tratamento que se impõe ao ser gerado por meio da inseminação in vitro, o assim denominado embrião extra-uterino. Entre este ser e o feto não existem diferenças que justifiquem o tratamento jurídico desigual, vez que ambos constituem um ser humano em formação. . Parece-nos que este tratamento diferenciado é fruto de uma concepção bio-filosófica equivocada que nos leva a desconsiderar o fato de ser o embrião extra-uterino também um ser humano em potência, principalmente porque o produto da inseminação in vitro nada mais é do que uma vida humana. [301]

De qualquer modo, convém trazer à baila a continuidade do raciocínio de José Roberto Moreira Filho, uma vez que, persistindo na idéia de que o embrião não é nascituro desde logo, elenca duas conseqüências jurídicas para o embrião fecundado e não implantado na mulher:

A primeira é a de que nunca poderá herdar por sucessão legítima, por não estar inserido no conceito de nascituro e pelo fato de o direito não poder ficar à mercê da vontade da mãe em implantá-lo quando bem entender. . A segunda conseqüência será a da possibilidade de vir a herdar, desde que o de cujus assim disponha em seu testamento, por analogia ao conceito de prole eventual, e desde que indique quem será a mãe do beneficiário. Deve-se buscar, aí, a vontade expressa do testador em deferir-lhe a herança. [302]

Há ainda a situação daquele que ainda não é concebido, ou seja, quando sequer existe embrião. Poderá este futuro e eventual filho, originado de inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas, perceber a herança de seu falecido pai?

O não concebido pode ser beneficiado com a herança do de cujus através de testamento. Afinal, o inciso I do artigo 1.799 do Código Civil Brasileiro de 2002 preceitua que, na sucessão testamentária, podem ser chamados a suceder "[...] os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão" [303]. Trata-se de benefício à prole eventual por testamento. Nesta senda, elucida-se que tal expressão (prole eventual) somente compreende os filhos e não os netos da pessoa indicada pelo testador. [304]

Caio Mário da Silva Pereira pondera que se trata de transmissão hereditária condicional, uma vez que se subordina a evento futuro e incerto [305]. Afinal, só advirá a sucessão se nascer(em) o(s) filho(s) da pessoa designada.

Assim, se o herdeiro esperado nascer com vida, a sucessão ser-lhe-á deferida, com os frutos e os rendimentos referentes à deixa, a partir do falecimento do testador [306]. Contudo, o legislador civil entendeu por bem fixar um limite temporal para que ocorra a concepção, a fim de evitar a espera ad eternum, o que ocorreu no parágrafo 4º do artigo 1.800 do Código Civil Brasileiro de 2002: "Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário, caberão aos herdeiros legítimos." [307]

José Luiz Gavião de Almeida entende que melhor seria que fosse estabelecido prazo para o nascimento do contemplado e não para sua concepção, eis que, como está a lei, poderá ser necessária uma investigação acerca da idade gestacional em virtude desta nem sempre ser precisa. [308] Arnaldo Rizzardo também faz tal ponderação e complementa:

Difícil é a prova para apurar o momento da concepção, pendendo sempre a presunção da filiação se ocorre o nascimento dentro dos períodos acima [refere-se aos prazos previstos no artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002]. No entanto, se provada a filiação a qualquer tempo, desde que não se opere a prescrição aquisitiva em favor daquele que detém a posse, não se afasta o direito à ação para anulação da partilha, com a competente reclamação ou reivindicação do quinhão hereditário. [309]

A anulação da partilha mencionada por Arnaldo Rizzardo, se provada a qualquer tempo, é, no entanto, extremamente complexa. Veja-se que se estaria adentrando na espera indefinida da prova de filiação. Se não bastasse, os herdeiros que já tiverem recebido sua quota-parte podem ter alienado os bens recebidos, havendo terceiros de boa-fé que seriam prejudicados com a eventual reclamação ou reivindicação do quinhão hereditário do qual fazia parte o bem adquirido.

De qualquer modo, frisa-se que o já citado Caio Mário da Silva Pereira esquematiza a situação e elucida o destino dos bens do de cujus durante o tempo em que o herdeiro esperado não nascer ou até que o prazo de dois anos tenha escorrido:

[...] assim, se, a qualquer tempo dentro do biênio, nascer com vida o herdeiro esperado, tudo se passa como se já estivesse vivo ao tempo da morte do testador (art. 1.800, § 3º); se, no mesmo prazo, ocorrer ao menos a concepção, deve-se aguardar o nascimento do sucessor e o implemento da condição; se, porém, escoar-se o prazo sem que ocorra a concepção, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos (art. 1.800, § 4º), caducando a disposição testamentária. Enquanto não encerrado o prazo ou até que nasça, com vida, o herdeiro esperado (se tal nascimento se der antes do termo final do biênio), os bens da herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz, cujos poderes, deveres e responsabilidades regem-se, no que couber, pelas disposições concernentes à curatela dos incapazes e, cuja identidade há de ser definida no próprio testamento, recaindo o encargo, na falta de nomeação, na pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro (art. 1.800, §§ 1º e 2º). [310]

Não se pode olvidar, contudo, que os frutos e os rendimentos não são exclusivos do contemplado pelo parágrafo 3º do artigo 1.800 do Código Civil Brasileiro vigente. Anota, pois, José Luiz Gavião de Almeida:

O dispositivo precisa ser entendido em consonância com as demais regras [...]. Se é herdeiro, em geral recolhe coisa indeterminada, quota-parte ideal. Será tido, junto com os demais herdeiros, como condômino, e os frutos e rendimentos da coisa somam-se ao patrimônio do de cujus para rateio geral. Os frutos e rendimentos não são direitos exclusivos daqueles que, pela partilha, têm para si deferido determinado bem, desde a abertura da sucessão. Os frutos e rendimentos dos bens, para o herdeiro que os recolhe, são devidos da partilha somente. Do falecimento à partilha, os frutos são também partilhados, independentemente de qual bem, até então indiviso, os produziu; e indiferentemente de quem recolheu o bem que os produziu. [311]

De qualquer sorte, retomando-se o disposto no inciso I do artigo 1.799 do Código Civil Brasileiro vigente, constata-se que há menção aos filhos de pessoas indicadas pelo testador, sugerindo cuidar-se de prole de terceiros. Ora, o legislador poderia ter pormenorizado no indigitado inciso a possibilidade do testador indicar seus próprios filhos, ainda que não concebidos no momento da morte. Afinal, é cediço que "preceitos excepcionais devem restar expressos e sua interpretação deve ser estrita." [312] Com base nisso, Heloisa Helena Barboza possui registro relativo ao dispositivo legal do Código Civil Brasileiro revogado, qual seja, o artigo 1.718 [313], destacando que entende inadequado aplicar tal preceito legal para abranger, além da prole eventual de pessoas indicadas pelo testador, existentes no momento de sua morte, a sua própria prole eventual, oriunda de reprodução assistida [314].

Esta temática, inclusive, foi objeto de advertência feita por Tycho Brahe Fernandes ainda em relação ao Código Civil Brasileiro de 1916: "[...] deverá futura legislação promover a mudança do teor dos artigos 1.717 e 1.718 do Código Civil, autorizando que possam ser herdeiros testamentários os filhos do próprio testador, mesmo que não estejam concebidos no momento de sua morte." [315] Não obstante, como se viu, o novo codex civil não apresenta tal referência, tendo permanecido o legislador inerte a tal assunto.

Alguns autores, no entanto, entendem possível a extensão da interpretação referente à prole eventual, ou seja, admitem que o testador pode referir-se aos filhos de terceiros e dele próprio. Débora Gozzo e Sílvio de Salvo Venosa não têm dúvidas no que tange à consideração dos embriões criopreservados obtidos através de reprodução assistida como prole eventual, promovendo, inclusive, equiparação à situação dos filhos adotivos:

Pode ser considerada prole eventual, no sentido desse inciso [inciso I do artigo 1.799 do Código Civil Brasileiro de 2002], o caso do embrião que tenha sido congelado para posterior gestação? Da mesma maneira que se admite que o filho adotivo pode ser incluído na hipótese legal que se examina, tem-se de aceitar que o mesmo ocorra no caso de embrião congelado, a ser gerado posteriormente ao falecimento do testador, porque se trata, num primeiro momento, diferentemente do caso da adoção, de filhos naturais das pessoas indicadas pelo testador. [316]

No mesmo horizonte, segue o posicionamento explícito de Juliane Fernandes Queiroz ao comentar o artigo 1.718 do Código Civil Brasileiro de 1916, mas que também se aplica ao inciso I do artigo 1.799 do código vigente: "Conclui-se que, se o testador pode atribuir a sua herança à prole eventual de terceiros, também o pode, sem qualquer restrição, à sua própria prole." [317] Apesar disso, a autora entende oportuno a determinação de um prazo para a espera da possível prole, seja no próprio testamento, seja por lei:

Desnecessário lembrar que seria altamente prejudicial à ordem jurídica a espera indefinida de uma possível prole, tendo em vista que o sêmen pode ficar crioconservado [os embriões também podem ser criopreservados] por anos ou décadas e, só após, ser utilizado. Portanto, deverá ser fixado o prazo de espera do nascimento dos filhos, dentro da própria disposição testamentária, ou mesmo através de uma lei que regule o assunto. [318]

Mesmo que haja testamento, pode-se observar que ainda existem certas problematizações. Guilherme Calmon Nogueira da Gama observa com muita propriedade a fragilidade dos direitos sucessórios da criança concebida em momento póstumo, ainda que haja disposição testamentária:

[...] há questões importantes relacionadas à validade, eficácia e revogação dos testamentos em geral que tornam bastante frágil a proteção que o ordenamento jurídico poderia conferir à criança a nascer. Talvez fosse o caso de – em se admitindo a legitimidade do emprego de tal técnica, o que é questionável – se estabelecer na lei a insuscetibilidade da disposição testamentária sobre essa matéria ser revogada, a exemplo do que ocorreu, a respeito da revogação, no artigo 1º, § 1º, da Lei nº 883/49 [319], acerca da disposição testamentária que reconhece filho extramatrimonial que não poderia mais ser revogada. Mas tal disposição não alteraria o sistema existente quanto à invalidade e à ineficácia da disposição, o que tornaria a situação do futuro filho do falecido bastante instável. [320]

Se mesmo sucessão testamentária já existem fatores de complicação, como se resolveria, então, a situação do filho havido por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem quando inexiste testamento, ou seja, na sucessão legítima?

Como já se arrazoou nesta parte deste capítulo, sendo estabelecida a presunção da filiação, a criança herdará de seu falecido pai. Indaga-se, portanto, qual o direcionamento a ser dado quando inexiste tal presunção.

No caso da inseminação artificial, José Roberto Moreira Filho sustenta que não há que se cogitar de direitos hereditários pelo fato da concepção ter sido efetivada após a morte do de cujus. Apesar disso, salienta que há tendências doutrinárias que admitem que o não concebido possa ter direitos sucessórios, desde que o de cujus assim lhe tenha assegurado mediante testamento. [321]

Eduardo de Oliveira Leite é firme ao asseverar que aquele que ainda não foi concebido somente pode ser titular de direito sucessório na sucessão testamentária. [322] Por isso, o doutrinador entende que a criança concebida por inseminação artificial homóloga póstuma não herdará: "Solução favorável à criança ocorreria se houvesse disposição legislativa favorecendo o fruto de inseminação post mortem. Sem aquela previsão não há que se cogitar a possibilidade de eventuais direitos sucessórios." [323]

Tycho Brahe Fernandes é enfático ao sustentar a impossibilidade de ser estabelecido o vínculo de filiação e o direito hereditário da criança concebida através destes processos caso não haja testamento lhe beneficiando:

Esclareça-se que a ausência de testamento em favor de prole futura eventual implicará ausência de consentimento para a utilização do sêmen, óvulo ou embrião crioconservado após a morte, logo, desaparecendo a necessária autorização para aquele material genético seja aplicado após a morte e o [sic] bem como, vínculo de filiação, por via de conseqüência o direito sucessório. [324]

Heloisa Helena Barboza compartilha do entendimento de Tycho Brahe Fernandes, vinculando à necessidade de autorização pelo autor da herança:

Parece-nos de lege ferenda, em qualquer caso, que a manifestação de vontade do autor da herança constitui elemento decisivo para a aquisição de direitos pelo filho póstumo. Há de restar inequívoco que depositou seu sêmen para esse tipo de inseminação [entende-se mais adequada a não menção de uma técnica específica de reprodução assistida], prevenindo-se qualquer manobra maliciosa de aproveitamento do material fecundante do falecido marido [ou companheiro], até mesmo sua retirada logo após a morte. Além disso, deve ser inequívoca sua vontade de transmitir a herança ao filho ainda não gerado. [325]

Sílvio de Salvo Venosa é incisivo ao afirmar, no mesmo sentido dos autores citados anteriormente, que, se não houver previsão testamentária para os filhos oriundos de inseminação artificial ou fertilização in vitro post mortem, estes não serão herdeiros [326], ou seja, não terão direito sucessório. Outrossim, em conjunto com Débora Gozzo, desvela, inclusive, a preocupação com a ética:

Trata-se aqui da comumente chamada inseminação [entende-se aplicável outras técnicas também] post mortem, fato bastante tormentoso, principalmente sob o ponto de vista ético. Se isso, entretanto, for deixado de lado, para que se analise a questão pelo seu aspecto puramente técnico, ter-se-á que não tendo o feto sido concebido antes da morte do marido, ele não teria direito à herança, nem que a pleiteasse por meio da ação da petição de herança (CC, arts. 1.824 e s.). Afinal, tendo a concepção acontecido somente após a morte do pai por meio da técnica da reprodução assistida, ele não preencheria o requisito legal do "estar vivo", ou, já ter sido concebido, antes da morte daquele de quem seria herdeiro. Essa a lógica. [327]

Porém, diante da norma que autoriza a prole eventual a herdar, Sílvio de Salvo Venosa e Débora Gozzo assumem o seguinte posicionamento:

Se isso é possível [referem-se à prole eventual e futura de determinadas pessoas que possam herdar], há de se entender que, se a viúva vier a ser inseminada com o sêmen de seu marido falecido, ele poderá tê-la autorizado a essa prática. Não é à toa que o novel Código Civil entende como filho matrimonial aquele nascido por meio de reprodução assistida (art. 1.597, III, IV e V). Conseqüentemente, nada mais correto que se aceite, por analogia, no momento adequado, a propositura da ação de petição de herança, a fim de que esse filho, concebido e nascido após a morte de seu pai biológico [...] possa exercer seus direitos sucessórios. [328]

Não se pode deixar de registrar, por oportuno, que os dois entendimentos de Sílvio de Salvo Venosa – um apenas de sua opinião e outro em parceria com Débora Gozzo – são um tanto contraditórios. Diz-se isso porque no primeiro, o autor é enfático ao sustentar a impossibilidade da sucessão dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas se inexistir disposição testamentária e, no segundo, admite a possibilidade da criança ingressar com ação de petição de herança [329] se houver testamento.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama, como a maioria dos doutrinadores retrocitados, também frisa que o filho havido por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas, no caso da sucessão legítima, resta despido dos direitos sucessórios em nítida discriminação face àqueles beneficiados por testamento:

Ao se admitir a possibilidade de disposição testamentária em favor da prole eventual decorrente do recurso às técnicas de reprodução assistida homóloga, deve-se considerar que o tratamento é diferenciado, no campo sucessório, entre os filhos, já que ao menos os filhos concebidos após a morte do pai somente poderão herdar na sucessão testamentária, e não na sucessão legítima. [330]

Andréa Aldrovandi e Danielle Galvão de França também acusam o fator discriminatório. Discorrem que, pelo Código Civil Brasileiro de 2002, a criança oriunda de inseminação homóloga post mortem somente herdará se o falecido assim lhes assegurar por meio de testamento e que tal solução gerará – e está gerando, giza-se – muita polêmica em virtude do tratamento distinto conferido àquele nascido por esta técnica, já que os filhos naturais, os adotivos, os havidos de inseminação heteróloga e de fertilização in vitro terão direito à sucessão hereditária, independentemente de haver testamento. [331]

Francisco José Cahali traz abordagem pertinente a duas situações. A primeira refere-se ao inciso III do artigo 1.597 do vigente Código Civil, ou seja, ao filho originário da utilização dos gametas congelados do falecido:

Ora, como descendente que é, ele não será, também sucessor do falecido? Onde a segurança jurídica? Onde a estabilidade das relações jurídicas? Registre-se, aqui, a proposta de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka no sentido de se proceder à ruptura do testamento eventualmente existente ou da sobrepartilha dessa herança, como se fosse um filho desconhecido e posteriormente declarado como tal. [332]

A segunda situação é pertinente aos embriões excedentários decorrentes de reprodução assistida homóloga (inciso IV do artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002) póstuma. Neste norte, questiona como se deve proceder em tais casos, se se deve dividir a herança em tantas partes quantos forem os herdeiros mais a quantidade de embriões criopreservados [333].

Em ambas as circunstâncias, infere-se que a orientação de Francisco José Cahali segue no sentido de não se negar os direitos hereditários do filho oriundo de reprodução assistida homóloga post mortem. Não obstante, o autor grifa a ausência de solução legislativa: "São problemas que o açodamento legislativo não previu e para os quais não se tem uma resposta segura em face dos inúmeros inconvenientes que se podem criar." [334]

Sílvio de Salvo Venosa, por sua vez, recomenda que a matéria referente à reprodução assistida em geral seja regulamentada em lei específica, mostrando descontentamento com a insuficiente e precária disciplina dada no Código Civil Brasileiro de 2002:

Advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica. Com esses dispositivos na lei passamos a ter, na realidade, mais dúvidas do que soluções, porque a problemática ficou absolutamente capenga, sem a ordenação devida, não só quanto às possibilidades de o casal optar pela fertilização assistida, como pelas conseqüências dessa filiação no direito hereditário. É urgente que tenhamos toda essa matéria regulada por estatuto específico. Relegar temas tão importantes aos tribunais traz desnecessária instabilidade social. [335]

Com efeito, a instabilidade social nos casos compreendidos na temática desta pesquisa é algo que deve ser repudiado. Inexistindo uma disciplina legal clara e firme a respeito, a reprodução assistida homóloga post mortem pode ser praticada para fins diversos daquele para o qual realmente importa a geração de uma criança. Nesta esteira, José Roberto Moreira Filho frisa que

[...] a carência de legislação específica, o brocardo jurídico segundo o qual o que não é proibido é permitido e mais a evolução tecnológica que hoje integra o nosso cotidiano, fazem com que a reprodução humana artificial seja livremente praticada, explorada e consentida, sem que nenhum controle governamental se faça valer. [336]

Com a convicção de que o Código Civil vigente veda a utilização de técnicas de reprodução assistida homólogas post mortem – e não apenas de que não autoriza ou regulamenta a reprodução assistida, conforme entendem Sílvio de Salvo Venosa [337] e José Roberto Moreira Filho [338] –, Guilherme Calmon Nogueira da Gama aponta uma forma do filho assim havido ser ressarcido pelo fato de não ser beneficiado na sucessão do de cujus:

A despeito da proibição no direito brasileiro, se eventualmente tal técnica for empregada, a paternidade poderá ser estabelecida com base no fundamento biológico e o pressuposto do risco, mas não para fins de direitos sucessórios, o que pode conduzir a criança prejudicada a pleitear a reparação dos danos materiais que sofrer de sua mãe e dos profissionais que a auxiliaram a procriar utilizando-se do sêmen de cônjuge ou companheiro já falecido, com fundamento na responsabilidade civil. [339]

Já o autor Luís Manuel Moreira de Almeida pugna por uma solução intermediária, ao invés de proibir ou liberar totalmente a reprodução assistida póstuma:

No entanto,quando o problema vier a por-se parece que terá de optar-se por uma solução intermédia entre as posições extremas de proibição absoluta e permissão incondicional. . Essa solução intermédia consistiria em permitir a inseminação post mortem por motivos graves e ponderosos. . Esta permissão incluiria o acesso do concepturo à filiação e à sucessão do seu pai. [340]

Pelo que se nota, a maioria dos doutrinadores apontam alguma problemática no que tange aos direitos sucessórios dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas, sobretudo em razão da insuficiente disciplina legal dada a respeito pelo novel Código Civil.

Mas a questão também é polêmica em ordenamentos jurídicos internacionais. A Espanha, por exemplo, proíbe a inseminação póstuma, porém, garante os direitos do nascituro quando houver declaração escrita expressa por escritura pública ou testamento. [341]

Ao contrário da orientação espanhola, a Inglaterra admite a inseminação post mortem. Contudo, os direitos sucessórios da criança não são assegurados, salvo se o de cujus tenha deixado documento expresso manifestando que esta seria sua vontade. [342]

A França tende a reconhecer, mediante a observação de certas condições, os direitos sucessórios do filho havido em momento póstumo através de técnicas de reprodução medicamente assistida. Focaliza, pois, Eduardo de Oliveira Leite:

Na França, uma proposição de lei [...] preconiza completar o artigo 725 do Code Civil a fim de reconhecer a capacidade sucessória da criança concebida post mortem, nos seguintes termos: "Para suceder, é necessário existir no momento da abertura da sucessão, salvo nos casos de inseminação post mortem quando o marido defunto expressou inequivocadamente a sua vontade, por ato notarial e sob condição que a inseminação tenha sido feita nos 180 dias após sua morte." [343]

Constata-se, pois, que os contornos da matéria do direito sucessório dos filhos póstumos oriundos de reprodução assistida homóloga na esfera alienígena não são comuns. Com efeito, as divergências são compreensíveis diante da gama de aspectos que estão envolvidos nesta temática: jurídico, médico, ético, religioso, etc.

Assim sendo, além das argumentações a favor e contra a realização da reprodução assistida homóloga post mortem trazidas a lume por ocasião dos debates pertinentes à filiação [344], dá-se destaque a outras mais a fim de se sobrelevar a grande polêmica que circunda a matéria.

Assim sendo, tem-se que Tycho Brahe Fernandes admite a reprodução assistida homóloga póstuma, porém, com ressalvas. Compreende que somente poderá ser autorizada a utilização de técnicas de reprodução medicamente assistida com o material genético de pessoa já falecida se este material consistir de planejamento familiar do casal. Outrossim, quando ambos os cônjuges ou companheiros forem falecidos, sustenta que não deve ser autorizada qualquer das técnicas. [345]

Belmiro Pedro Welter traz o posicionamento de que é possível a construção de uma família monoparental [346], seja na reprodução natural ou medicamente assistida, mas desde que haja prévia e expressa concordância do cônjuge ou companheiro, sob pena de se impor uma paternidade que não existe e que não é desejada. [347]

Andréa Aldrovandi e Danielle Galvão de França não possuem entendimento ameno como o dos autores retrocitados, sendo absolutamente contrárias à reprodução assistida póstuma. Entendem que

[...] a legislação deveria proibir a referida técnica, visto que a reprodução assistida deve ser utilizada com o objetivo de realização de um projeto parental, e, principalmente, deve resguardar os interesses da criança, o que não ocorre quando da utilização da inseminação post mortem, onde o interesse que preponderá é o da viúva e de seus familiares, que movidos pelo sofrimento da perda procuram em tal técnica um meio de "ressuscitar" o de cujus. [348]

As autoras supra citadas fazem referência a aspectos sentimentais dos parentes do falecido. No entanto, não se pode deixar de cogitar eventual interesse financeiro. Afinal, considerando que alguns indivíduos possuem ganância e interesses pessoais como prioridade em suas vidas e, se o de cujus possuía um patrimônio considerável, pode surgir a idéia de capturar valores utilizando-se a geração de uma criança, mediante a reprodução assistida homóloga póstuma, como artifício para tanto. Tal ato certamente fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Maria Cláudia Crespo Brauner, citada por Belmiro Pedro Welter, demonstrando percepção contrária à reprodução assistida homóloga post mortem, destaca que o filho nasceria sem a perspectiva de conhecer seu genitor e de dispor da figura materna e paterna concomitantemente em sua vida. [349] Como se observa, este posicionamento atenta para a própria criança.

Constatando o lado paterno, mas permitindo defluir as conseqüências para o filho, Aline Mignon de Almeida, também referida por Belmiro Pedro Welter, pondera que a reprodução assistida, realizada após a abertura da sucessão do marido ou companheiro, fere de maneira letal o princípio da paternidade responsável, já que o de cujus não pode gerar um ser humano, ainda que deixe expressa manifestação de vontade a respeito. [350]

Maria Helena Diniz também é contrária à realização de reprodução assistida homóloga post mortem, porém, frisa que, apesar de seu posicionamento, faz-se necessário que o legislador discipline a questão, haja vista tratar-se de realidade social [351].

Guilherme Calmon Nogueira da Gama, outrossim, reputa que, no estágio atual da matéria no direito pátrio, tem-se inadmissível o acesso da ex-esposa ou da ex-companheira às técnicas de reprodução assistida homóloga, ainda que haja manifestação de vontade expressa neste sentido pelo falecido, em razão do princípio da igualdade em direitos entre os filhos. [352]

No que tange à igualdade em direitos entre os filhos, mister se faz salientar que além da Constituição da República Federativa do Brasil [353] e do Estatuto da Criança e do Adolescente [354], o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, também contém dispositivo que reprime a discriminação dos filhos quanto à filiação [355], qual seja, o item 5 de seu artigo 17: "A lei deve reconhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento como aos nascidos dentro do casamento." [356]

Neste norte, vale frisar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, mais conhecida, então, como Pacto de São José da Costa Rica, restou ratificada pelo Brasil em 1992, através do Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992 [357]. Logo, a proibição da discriminação entre os filhos deve prevista no mencionado diploma também deve ser levada em conta por força do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte." [358]

Desta feita vale refletir sobre duas abordagens que podem ser feitas com base neste princípio da igualdade entre os filhos. Veja-se que alguns autores, como Guilherme Calmon Nogueira da Gama, atribuem a tal princípio a razão do impedimento para a realização de inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas póstumas.

No entanto, não se pode olvidar que este mesmo princípio pode amparar as crianças que forem havidas por tais técnicas. Entende-se inadmissível o mero argumento de que, por ter sido concebida com material genético de seu falecido pai após a morte deste, a criança fique despida dos direitos que teria caso fosse havida conforme as hipóteses de presunção legal de filiação (artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002) ou, ainda, se beneficiada fosse pela sucessão testamentária (artigo 1.799 do Código Civil Brasileiro de 2002). Afinal, se foi suprimida a discriminação entre os filhos, todos devem ter iguais direitos, sobretudo porque a criança não tem qualquer culpa de ter sido concebida mediante inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem.

Finalizando esta seara, conveniente se faz trazer à baila a opinião de um profissional da área médica especializada acerca da realização de inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem. Assim sendo, o Dr. Fernando Cesar Sanches, como um dos médicos da Procriar – Centro de Fertilização Assistida, é contra a sua prática: "Não concordamos. Entendemos que o semen [sic] congelado de um indivíduo só pode ser usado para fins clínicos (inseminações) enquanto este encontrar-se vivo. Não há legislação (por nós conhecida) que apoie [sic] a inseminação post-mortem." [359]

Definitivamente, o Código Civil Brasileiro de 2002 não logrou êxito em abordar suficientemente a questão dos direitos hereditários dos filhos havidos por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem. As problematizações já se iniciam na determinação da filiação destas crianças e prossegue na diferenciação feita entre aqueles filhos que não se enquadram no rol das presunções de paternidade e também não foram beneficiados por disposição testamentária.

Desta feita, entende-se que, se não for proibida a utilização de técnicas de reprodução assistida homólogas póstumas, mister se faz a preservação dos direitos da criança assim oriunda, sob pena de se incorrer em desrespeito ao princípio da igualdade entre os filhos e da dignidade da pessoa humana. Não obstante, doutro lado tem-se a questão da segurança jurídica. Essa questão pode ser resolvida e/ou controlada mediante o estabelecimento de prazos para a efetivação da reprodução medicamente assistida, protegendo os demais herdeiros do de cujus e de eventuais terceiros de boa-fé, além de sanções para aqueles que não observaram tais prazos. Assim, não se estaria tolhendo os direitos sucessórios do filho havido por inseminação artificial ou fertilização in vitro homólogas post mortem em qualquer caso.

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Sobre a autora
Francieli Pisetta

- Autora do livro "Responsabilidade civil das prestadoras de serviço público: um enfoque sobre o não usuário" (Editora LTr)<br>- Autora do livro "Reprodução assistida homóloga post mortem: aspectos jurídicos da filiação e do direito sucessório" (Editora Lumen Juris)<br>- Especialista em Direito Público com habilitação para mercado de trabalho e exercício do magistério superior – pela FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau) <br>- Especialista em Direito Processual Civil com habilitação para mercado de trabalho – pela Rede de Ensino LFG (Luiz Flávio Gomes) em parceria com a UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina); - - Especialista em Direito Civil com habilitação para mercado de trabalho e exercício do magistério superior – pela FURB (Fundação Universidade Regional de Blumenau) e UNERJ (Centro Universitário de Jaraguá do Sul)<br>- Trabalhou como docente do Curso de Direito na UnC (Universidade do Contestado)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PISETTA, Francieli. A filiação e o direito sucessório dos filhos havidos por inseminação artificial e fecundação in vitro homólogas post mortem frente ao Código Civil brasileiro de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3000, 18 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20022. Acesso em: 19 abr. 2024.

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