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A constitucionalidade da Lei Maria da Penha à luz do princípio da igualdade

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05/10/2011 às 09:24

Resumo:

RESUMO



  • A evolução dos direitos das mulheres no Brasil, desde o sistema patriarcal até a Constituição de 1988, resultou em leis como o Estatuto da Mulher Casada e a Lei Maria da Penha, que buscam garantir a igualdade de gênero.

  • A violência doméstica e familiar contra a mulher é considerada uma violação aos direitos humanos, sendo abordada pela Lei Maria da Penha como uma ação afirmativa para corrigir injustiças e discriminações históricas.

  • A constitucionalidade da Lei Maria da Penha tem sido objeto de debates, mas sua aplicação é considerada constitucional, pois busca promover a igualdade material entre homens e mulheres, respeitando os direitos fundamentais e coibindo a violência de gênero.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A Lei Maria da Penha não afronta o princípio constitucional da igualdade, por ser uma ação afirmativa, destinada a coibir discriminações contraas mulheres.

RESUMO

Até meados de 1.916 vigorou no Brasil o sistema patriarcal, onde a dominação masculina sobre a mulher preponderava. Com as normas editadas dentre elas o Estatuto da Mulher Casada, o Código Civil e a Constituição Federal de 1.988, a mulher passou a ter seus direitos reconhecidos em igualdade com os homens, porém, ainda sofre com a violência doméstica e familiar. Essa violência se apresenta de várias formas e ofende a dignidade humana, além de constituir uma violação aos direitos humanos que pode acarretar a responsabilidade internacional do Estado. A Constituição Federal de 1.988 busca extinguir as desigualdades existentes entre homens e mulheres, proclamando a igualdade material, ou seja, buscando a igualdade de condições. A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, trata-se de uma ação afirmativa, cujo propósito é inserir na sociedade políticas públicas destinadas a corrigir situações de discriminação. Além disso, busca dar efetividade às convenções internacionais ratificadas pelo país para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. De acordo com a Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 19 (ADC/19), a Lei 11.340/06 não ofende o princípio da igualdade por tratar-se de uma ação afirmativa, que busca reparar as injustiças sofridas ao longo dos tempos pelas mulheres.

Palavras-chave: violência, mulher, igualdade, ação afirmativa, constitucionalidade.


INTRODUÇÃO

A Lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, recebeu esse nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, vítima da violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo que este artigo trata-se da constitucionalidade de tal lei.

A proteção da mulher e suas conquistas na legislação brasileira advém desde o Código Civil de 1.916, até a promulgação da Constituição Federal de 1.988 e mostra que violência doméstica e familiar contra a mulher constitui ofensa ao princípio da dignidade humana, além de ser uma forma de violação aos direitos humanos, capaz de gerar a responsabilidade internacional do Estado.

Diante dos casos de violência doméstica contra a mulher e em razão de denúncia contra o país à Organização dos Estados Americanos (OEA), o Brasil reconheceu a situação de desigualdade entre os sexos. Para corrigi-la, promulgou a Lei nº 11.340/06. Tal lei que reforça o princípio da igualdade e apesar das críticas existentes não estabelece qualquer desigualdade, mas evidencia que, na maioria das vezes a mulher é vítima da violência e o homem o agressor.

A Constituição Federal de 1.988, ao assegurar a igualdade entre homens e mulheres, coibiu a violência no âmbito das relações familiares, impondo ao país o dever de efetivar os direitos das mulheres previstos nas convenções internacionais ratificadas.

Além disso, a Lei 11.340/06 traz a questão das ações afirmativas e das políticas públicas, que visam a garantia dos direitos sociais para sanar as discriminações. A Ação Direta de Constitucionalidade n° 19 (ADC/19), ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF), que busca obter a declaração de constitucionalidade da Lei nº 11.340/06 é abordada neste artigo

Busca-se evidenciar com este estudo que a Lei Maria da Penha não afronta o princípio constitucional da igualdade, por ser uma ação afirmativa, destinada a coibir discriminações contra as mulheres. A história da mulher é de luta e resistência contra preconceitos, em prol de condição de vida como ser humano igual e digno, já que com a Constituição Federal de 1.988 adquiriram seu espaço na sociedade, não sendo somente esposa ou mãe, mas acima de tudo mulher, merecedora de igual respeito que o homem.


1. A PROTEÇÃO DA MULHER E SUAS PRINCIPAIS CONQUISTAS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Por mais de três séculos, de 1.603 à 1.916, vigoraram no Brasil as Ordenações Filipinas, legislação conservadora e inspirada no poder patriarcal da Idade Média. Possibilitava-se ao homem, a aplicação de castigos corporais à mulher. O pátrio poder era exclusivo do marido e a mulher dependia de sua autorização para a prática de atos da vida civil. Restava clara a subordinação feminina aos homens.

Na sociedade patriarcal, culturalmente elaborada pelo masculino, a mulher não tem o mesmo status que o homem. Historicamente, as relações entre mulheres e homens são desiguais, pois marcadas pela subordinação da população feminina aos ditames masculinos que impõem normas de conduta às mulheres e as devidas correções ao descumprimento dessas regras, muitas vezes sutis e perversas, embutidas nesse relacionamento (TELES, 2006).

O Código Civil de 1.916 evidenciava a desigualdade de direitos entre os sexos, estabelecendo seus papéis: aos homens cabia a representação legal da família e às mulheres os afazeres domésticos e a criação da prole.

Em 1.962, o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62) alterou vários dispositivos do Código Civil de 1.916, como, por exemplo, ao permitir a concessão do pátrio poder à mulher, com ressalvas, contudo, não excluindo totalmente a dominação masculina. Somente com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), o pátrio poder foi conferido a ambos os pais. Em 2.002, o atual Código Civil passou a denominar o pátrio poder como poder familiar, sacramentando a comunhão de poderes ao casal.

Todas as Constituições Federais brasileiras consagraram o princípio da igualdade, de forma genérica, não proibindo expressamente a discriminação em função do sexo. Com a promulgação da Constituição de 1.988, ainda vigente, foram conferidos à mulher os mesmos direitos e obrigações do homem. Foram equiparados com relação à vida civil, ao trabalho e à família, por um sistema jurídico mais humanizado que objetiva a isonomia e o respeito à dignidade e à vida.

A Constituição Federal de 1.988 progrediu na efetivação dos direitos das mulheres, buscando diminuir as muitas discriminações e diferenças por elas sofridas ao longo dos tempos, conferindo-lhes algumas proteções. Assim, em seu artigo 5°, inciso I, iguala homens e mulheres em direitos e obrigações e prevê como proteção à mulher, a licença maternidade (artigo 7°, XVIII), o espaço no mercado de trabalho (artigo 7º, XX), o serviço militar (artigo 143, § 2°) e a aposentadoria (artigo 40, § 1°, III, alínea "a" e "b", combinado com o artigo 201, § 7°, I e II). Desse modo, segundo Dias (2005):

Essas distinções não se prendem, à toda evidência, a diferenças fisiológicas, mas são decorrência de um elemento cultural, pois, em face das responsabilidades familiares, as mulheres prestam dupla jornada de trabalho. Assume a esposa a integralidade das tarefas domésticas e a mãe o cuidado com os filhos, a exigir-lhe um maior esforço, levando-a a um precoce envelhecimento.

Observa-se, que esses preceitos são espécies de desigualdades que o próprio legislador constituinte estabeleceu, visando proteger certos grupos que ainda necessitam de amparo da lei. Segundo Araújo e Nunes Junior, apud Lenza (2009, p. 680):

O constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender necessitam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições.

Portanto, houve grandes avanços na legislação brasileira, de 1.962 até a Constituição Federal de 1.988 quanto aos direitos da mulher e sua participação na sociedade, pelos quais foi conquistando a tão almejada igualdade de direitos e obrigações para com os homens, com sua inclusão social.

1.1 A violência doméstica e familiar contra a mulher

A violência doméstica ou familiar contra a mulher decorre dos membros de sua comunidade familiar, por parentesco natural, civil ou por afinidade. Afirma Dias (2007, p.13) que "a violência freqüentemente está ligada ao uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não quer".

A Lei nº 11.340/06 em seu artigo 7° define as formas de violência doméstica ou familiar contra a mulher, que podem ser física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral. Tanto homens como mulheres são atingidos pela violência, porém, de forma diferenciada. Geralmente, os homens são vítimas da violência praticada no espaço público, ao passo que mulheres, sofrem com aquela que se manifesta em seus próprios lares, muitas vezes praticada pelo marido ou companheiro.

Também conhecida como violência de gênero, a violência doméstica vem de tempos remotos, devido à cultura machista. Ao homem era dado o direito de dominar sua mulher, podendo atingir os limites da violência. Assim, para Silva Júnior (2006):

Violência baseada no gênero é aquela praticada pelo homem contra a mulher que revele uma concepção masculina da dominação social (patriarcado), propiciada por relações culturalmente desiguais entre os sexos, nas quais o masculino define sua identidade social como superior à feminina, estabelecendo uma relação de poder e submissão que chega mesmo ao domínio do corpo da mulher.

Essa violência ofende o princípio constitucional da dignidade humana, reconhecido como valor universal, desde o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que prescreve que todos os direitos devem ser aplicados de forma igual a ambos, ou seja, sem distinção. O artigo 6º da Lei nº 11.340/06 dispõe que a violência doméstica ou familiar contra a mulher constitui forma de violação aos direitos humanos. Segundo Henkin, apud Mello (2000, p. 771):

Direitos Humanos constituem um termo de uso comum, mas não categoricamente definido. Esses direitos são concebidos de forma a incluir aquelas ‘reivindicações morais e políticas, que, no consenso contemporâneo, todo ser humano tem o dever de ter perante sua sociedade ou governo’ reivindicações estas reconhecidas como ‘de direito’ e não apenas por amor, graça ou caridade.

Já, Bobbio (1992) conceitua os direitos humanos, ou seja, os direitos do homem como aqueles que pertencem a todos os homens ou dos quais nenhum homem pode ser privado. São aqueles direitos cujo reconhecimento é condição necessária para que ocorra o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização.

O direito internacional é resultado da vontade coletiva dos Estados, que se manifesta nas convenções elaboradas por estes, aplicando-se por todo seu território e impondo deveres aos poderes estatais. Assim, o Poder Judiciário tem o dever de aplicá-las, o Poder Executivo deverá cumpri-las e o Poder Legislativo, caso seja necessário, deverá elaborar leis para sua execução.

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O fundamento de obrigatoriedade das convenções internacionais é o princípio pacta sunt servanda e sua violação acarreta a responsabilidade internacional do Estado. A partir do momento em que um Estado ratifica uma convenção, torna-se parte dela, assumindo obrigações que deverá cumprir.

Essa responsabilidade também é prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e tem como finalidade reparar o prejuízo de natureza civil. Somente com seu cumprimento pode-se obter o zelo efetivo de um Estado pela preservação dos direitos constitucionais. Nesse contexto, a responsabilidade internacional pode ocorrer de denúncia tanto de um Estado para com outro como de um indivíduo para com o Estado, como exemplificado pela atuação da Organização dos Estados Americanos (OEA) no âmbito internacional. De acordo com Ramos (2004, p. 69):

A responsabilidade internacional do Estado é, de regra, apresentada como sendo uma obrigação de reparação em face de violação prévia de norma constitucional. Nesse sentido, a responsabilidade internacional é uma verdadeira obrigação de reparar os danos oriundos de violação de norma do Direito Internacional.

Nesses casos, a OEA estabeleceu um procedimento para que as vítimas possam denunciar, no plano internacional, casos de violação aos direitos humanos, quando não obtiverem justiça e reparação perante o ordenamento interno de seus respectivos países. Cabe a ela o processamento das petições de denúncia e a emissão de relatório que indicará se houve ou não a responsabilidade estatal. A denúncia deve ser apresentada por petição escrita, pela própria vítima que tiver seus direitos humanos violados, por seu representante ou por qualquer pessoa ou grupo de pessoas, incluindo ainda, organizações não-governamentais. Deve conter alguns requisitos, entre os quais os dados pessoais da vítima, a descrição dos fatos que violaram os direitos humanos, a identificação do Estado violador e a demonstração do esgotamento dos recursos possíveis pela via judicial. Note-se que pode haver reparação sem a reclamação internacional, ou seja, em âmbito nacional.

A denúncia de um Estado tido como violador coloca-o em situação vexatória no cenário internacional. Poderá ser condenado mundialmente a reparar os danos sofridos pela vítima, além de ter as relações econômicas com outros Estados prejudicadas.

A denúncia com responsabilidade internacional do Estado ocorreu com o Brasil, denunciado junto à OEA por violência doméstica e familiar contra a mulher no país, em especial pelo caso Maria da Penha, que deu origem à Lei nº 11.340/06, conforme se abordará a seguir.

1.2. O princípio da igualdade e seus reflexos legais quanto às mulheres

Um dos objetivos da Constituição Federal de 1.988 é extinguir as desigualdades existentes entre homens e mulheres, conforme artigo 5°, I. Mesmo reconhecendo definitivamente a igualdade entre ambos os sexos, ainda existem, na prática, resquícios de uma sociedade de costumes machistas antigos. Por esse motivo, a Constituição Federal de 1.988 concedeu tratamento especial à mulher, facultando a legislação infraconstitucional procurar diminuir os desníveis de tratamento em razão do sexo, por meio de medidas que amenizem as diferenças físicas, emocionais e biológicas entre homens e mulheres.

O fundamento desse tratamento diferenciado é o princípio da igualdade, que se divide em formal e material. De acordo com Dias (2007), Silva (1999) e Souza (2007), a igualdade formal está presente na legislação e assegura o mesmo tratamento a todos, sem levar em conta critérios pessoais ou distinção de grupos. Por outro lado, a igualdade material é a oportunidade alcançada não só por lei, mas por políticas públicas, por grupos minoritários e hipossuficientes que necessitam de proteção especial, ou seja, é a igualdade de condições sociais.

A discriminação da mulher é histórica e viola não só a dignidade da mulher, como também lhe acarreta prejuízos em relação ao trabalho, à saúde e à vida. De acordo com Silva, (1999, p. 216), "as desigualdades naturais são saudáveis, como são doentes aquelas sociais e econômicas, que não deixam alternativas de caminhos singulares a cada ser humano único".

O princípio da igualdade não deve ser interpretado absoluto, ou seja, proibindo de modo geral as diferenciações de tratamento. O que se proíbe são somente as diferenciações arbitrárias e as discriminações. Conforme Aristóteles apud Silva (1999, p. 216), a idéia de igualdade está ligada à idéia de justiça, pela qual "o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam". Esse princípio proíbe a criação de privilégios para determinadas pessoas ou grupos, porém, como já foi frisado, é necessário diferenciar os iguais e os desiguais, pois dar ao maior o mesmo tratamento conferido ao menor poderia caracterizar injustiça. Segundo Kelsen (1974, p. 203):

Seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres.

Portanto, o princípio da igualdade assegura às pessoas de situações iguais os mesmos direitos, visando sempre o equilíbrio entre todos e não admitindo discriminações e diferenças arbitrárias. Os tratamentos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal brasileira de 1.988 e tais diferenciações devem ter finalidade razoável e proporcional, pois se forem usadas com fim ilícito, serão incompatíveis com a norma constitucional. Dias (2007, p. 55) entende que "leis voltadas a parcelas da população merecedoras de especial proteção procuram igualar quem é desigual, o que nem de longe infringe o princípio isonômico".

Deve-se buscar então, não só a igualdade formal, que é decorrente da lei, mas também a igualdade material, conforme Aristóteles em tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, buscando reduzir as diferenças sociais. A igualdade entre homens e mulheres demandou décadas de lutas contra a discriminação. Não se trata de mera isonomia formal, pois não é simples igualdade perante a lei, mas sim igualdade em direitos e obrigações.


2. LEI nº 11.340/06 – LEI MARIA DA PENHA

A violência doméstica ou familiar contra a mulher está presente na sociedade há muito tempo e muitos casos não são divulgados. Atinge muitas famílias, independentemente da raça, da classe social, da idade ou da orientação sexual de seus componentes.

De acordo com a pesquisa realizada em 24 de abril de 2.009 pelo Instituto IBOPE Inteligência, 55% dos brasileiros entrevistados (em um total de 2.002 entrevistas) conhecem casos de agressão contra a mulher.

Destaca-se caso que deu origem à lei em estudo. Em 1.983, Marco Antônio Heredia Viveiros, marido de Maria da Penha Maia Fernandes, tentou matá-la por duas vezes. Na primeira vez a tiros e na segunda vez, tentando eletrocutá-la. A violência deixou-a paraplégica e com muitas outras sequelas (DIAS, 2007). Somente dezenove anos após esse fatos o ex-marido de Maria da Penha foi condenado a oito anos de reclusão, porém foi libertado em 2.002, após cumprir somente dois anos da mesma.

As reiteradas violências sofridas por Maria da Penha e a demora do país para punir o agressor fizeram com que a vítima levasse ao conhecimento internacional a situação do Brasil, que acabou sendo condenado perante a Organização dos Estados Americanos (OEA). O país teve que pagar indenização à ela, além de ser obrigado a adotar medidas em relação à violência doméstica ou familiar contra a mulher. A luta desta mulher foi reconhecida com a edição da Lei nº 11.340/06, que o país passou a chamar de Lei Maria da Penha.

Dias (2007, p. 13-14) resume a trágica história de Maria da Penha:

Por duas vezes, seu marido, o professor universitário e economista M.A.H.V., tentou matá-la. Na primeira vez, em 29 de maio de 1983, simulou um assalto fazendo uso de uma espingarda. Como resultado ela ficou paraplégica. Após alguns dias, pouco mais de uma semana, nova tentativa, buscou eletrocutá-la por meio de uma descarga elétrica enquanto ela tomava banho.

Tais fatos aconteceram em Fortaleza, Ceará. As investigações começaram em junho de 1983, mas a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984. Em 1991, o réu foi condenado pelo tribunal do júri a oito anos de prisão. Além de ter recorrido em liberdade ele, um ano depois, teve seu julgamento anulado. Levado a novo julgamento em 1996, foi-lhe imposta a pena de dez anos e seis meses. Mais uma vez recorreu em liberdade e somente 19 anos e 6 meses após os fatos, em 2002, é que M.A.H.V. foi preso. Cumpriu apenas dois anos de prisão.

Essa é a história de Maria da Penha. A repercussão foi de tal ordem que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Apesar de, por quatro vezes, a Comissão ter solicitado informações ao governo brasileiro, nunca recebeu nenhuma resposta. O Brasil foi condenado internacionalmente em 2001. O Relatório da OEA, além de impor o pagamento de indenização no valor de 20 mil dólares em favor de Maria da Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a adoção de várias medias, entre elas "simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual".

Apesar de ser mais um entre os inúmeros casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, o caso de Maria da Penha ficou conhecido internacionalmente com sua denúncia à OEA. O Brasil foi o primeiro país a ser condenado no plano internacional, como exemplo de impunidade, já que não havia somente esse caso isolado, mas também muitos outros. Desde a denúncia a OEA monitora as ações de combate e prevenção à violência de gênero no país e o Brasil se comprometeu a apresentar informações sobre o problema da violência doméstica e familiar contra a mulher e a adotar medidas para cumprir as recomendações impostas. Para Dias (2008):

A Lei Maria da Penha veio para atender compromissos assumidos pelo Brasil ao subscrever tratados internacionais que impõem a edição de leis visando assegurar proteção à mulher. A violência doméstica é a chaga maior da nossa sociedade e berço de toda a violência que toma conta da nossa sociedade.

A referida lei busca cumprir as determinações das convenções internacionais adotadas pelo país, sendo criada com o intuito de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, buscando-se tutelar a violência de gênero, abrangendo não somente a mulher, mas principalmente a dignidade, a harmonia e o respeito que orientam as famílias.

2.1 Lei Maria da Penha: a questão das ações afirmativas e as políticas públicas

As ações afirmativas são modo de discriminação positiva, pois inserem na sociedade aqueles que foram discriminados, tendo como função específica a promoção de oportunidades iguais para vítimas de discriminação. Não abrangem indivíduos, mas os grupos a que pertencem, ou seja, negros, mulheres, idosos, e se destinam a igualar em condições esses grupos em desvantagens, conforme os preceitos constitucionais. Conforme Piovesan (2004):

A discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade. Ocorre quando somos tratados como iguais em situações diferentes, e como diferentes em situações iguais.

No mesmo sentido, Souza, (2007, p. 39) ensina que:

O princípio da igualdade, preconizado no art. 5º da CRFB não proíbe, e, ao contrário, impõe que o legislador leve em conta a necessidade e conveniência de dar um tratamento diferenciado para viabilizar a efetiva realização dos valores ‘justiça’ e ‘igualdade’ que o Constituinte consagrou já no preâmbulo da Carta Política vigente e que esse papel foi desenvolvido na elaboração desta Lei 11.340/06, ao prever ações afirmativas em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, como aliás, já houvera feito no campo da legislação social em face do Trabalhador (CLT), da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e do Consumidor (Lei 8.078/90).

Para Cozer, Corino e Pepe (2008), as ações afirmativas:

Consistem na adoção de um conjunto de medidas legais e de políticas públicas, de caráter temporário, que objetivam eliminar as diversas formas de discriminação que limitam oportunidades de determinados grupos sociais. São necessárias para buscar a igualdade e a dignidade da pessoa humana, previstas pela Constituição Federal de 1988, pois de nada adianta regras positivadas sem instrumentos que as efetivem.

As desigualdades entre homens e mulheres decorrem dos papéis sociais impostos a ambos, da dominação masculina ao longo dos tempos e da proteção da mulher como hipossuficiente, fruto da cultura patriarcal.

Contribuíram para a transformação da sociedade as convenções internacionais que foram ratificadas pelo Brasil, sendo responsáveis pelos avanços das mulheres ao efetivar seus direitos.

A Lei Maria da Penha, em seu preâmbulo menciona duas convenções internacionais: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará). Ambas dispõem sobre a violência doméstica ou familiar contra a mulher, protegendo-as contra a discriminação e prevendo a adoção de medidas afirmativas. Dias (2007, p. 27) leciona que:

A Lei Maria da Penha vem para atender esse compromisso constitucional. Porém, chama a atenção que, na sua ementa, há referência não só à norma constitucional, mas também são mencionadas as Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e sobre a Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Esse tipo de referência pouco usual na legislação infraconstitucional, além de atender à recomendação da OEA, decorrente da condenação imposta ao Brasil, também reflete uma nova postura frente aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.

As medidas protetivas da lei buscam o equilíbrio e a igualdade material e, para se eliminar a discriminação contra as mulheres é necessária a adoção de políticas públicas. Segundo Bucci (2002, p. 241):

Políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a realização de objetivos relevantes e politicamente determinantes.

As políticas públicas servem para garantir a todos a concretização dos direitos fundamentais, gerando melhores condições de vida. São programas governamentais e cabe aos cidadãos exigir do Estado a implementação dessas políticas, que são impostas pelo próprio texto constitucional. Importante ação do governo federal foi a criação, por Medida Provisória nº 103/93, da Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres. Ela estabelece políticas públicas para a melhoria de vida das mulheres, garantindo seus direitos sociais. Coloca em prática os compromissos assumidos pelo país com a Constituição Federal de 1.988 e as convenções internacionais, enfrentando diferenças sociais e sexuais.

Deste modo, as ações afirmativas buscam inserir na sociedade políticas públicas com o objetivo de sanar discriminações. A Lei Maria da Penha é exemplo de ação afirmativa, sendo um grande avanço da sociedade para coibir a violência doméstica ou familiar contra a mulher. Garante igualdade de oportunidades, conforme fundamentos e objetivos da República.

2.2 A constitucionalidade da Lei nº 11.340/06 à luz do princípio da igualdade

Há muitas discussões acerca da constitucionalidade da Lei nº 11.340/06. A principal delas baseia-se na afronta ao princípio da igualdade contido na Constituição Federal de 1.988. Aqueles que alegam a inconstitucionalidade da lei, sustentam a que cria desigualdades, pois atribui à mulher tratamento diferenciado em relação ao homem.

O artigo 5°, I da Constituição de 1.988, coloca como inaceitável a discriminação em razão do sexo, porém, mas admite diferenciações com a finalidade de atenuar desníveis. Deste modo, a própria Constituição Federal brasileira de 1.988 cria distinções entre homens e mulheres, à luz do princípio da igualdade material.

Além do tratamento diferenciado entre homens e mulheres previsto constitucionalmente, a legislação infraconstitucional também interfere positivamente no particular, porém nunca beneficiando um deles, mas sim regulando a vida em sociedade. As pessoas devem receber tratamento proporcional à situação em que se encontram, ou seja, devem ser tratadas com equidade.

A Lei nº 11.340/06 não pode ser considerada inconstitucional, pois a Constituição Federal de 1.988 no § 2° do artigo 5°, atribui aos direitos internacionais natureza de norma constitucional. Assim, o parágrafo seguinte deste artigo possibilita que as convenções internacionais sobre direitos humanos integrem a Constituição Federal brasileira como emendas constitucionais e que as convenções de outra natureza tenham força de lei ordinária. Em outras palavras, os direitos e garantias expressos na Constituição Federal de 1.988 não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados e das convenções internacionais de que o Brasil seja parte. Conforme Pereira (2007, p. 194): "a própria Emenda Constitucional n° 45/04 cuidou de elevar os tratados que cuidem de direitos fundamentais após a devida ratificação, ao patamar de cláusula constitucional". Nesse sentido, observa-se a jurisprudência:

CAUTELAR. PRETENSÃO DO EX-MARIDO DE COMPELIR A EX-MULHER A FICAR LONGE DELE COM BASE NO ART. 22, III, "a", DA LEI DA MARIA DA PENHA. Inadmissibilidade porque a lei se destina à violência doméstica praticada contra a mulher e não pela mulher. Inaplicação do princípio da isonomia. Indeferimento acertado. Recurso improvido, por maioria.(APELAÇÃO CRIMINAL N° 652.125-4/5 - COMARCA DE REGISTRO/SP – RELATOR EXMO SR. DES. MAIA DA CUNHA. ACÓRDÃO JULGADO EM 27/08/09).

A Lei Maria da Penha foi elaborada para proteger a mulher e esse tratamento concedido às mulheres não afronta o princípio da igualdade, pois se trata de ação afirmativa que busca reparar injustiças sofridas pelas mulheres e que violam os direitos humanos. A Lei nº 11.340/06 protege a família, pois a prática de tal violência traz consequências não só para as mulheres, mas também para sua família e à sociedade em geral. Pelas palavras de Dias (2008):

Demagógico, para não dizer cruel, é o questionamento que vem sendo feito sobre a constitucionalidade de uma lei afirmativa que tenta amenizar o desequilíbrio que ainda, e infelizmente, existe nas relações familiares, em decorrência de questões de ordem cultural. Não ver que a Lei Maria da Penha consagra o princípio da igualdade é rasgar a Constituição Federal, é não conhecer os números da violência doméstica, é revelar indisfarçável discriminação contra a mulher, que não tem mais cabimento nos dias de hoje.

Não basta analisar o aspecto literal da lei, sustentando que é inconstitucional pelo simples fato de não conceder proteção ao homem É necessário também verificar seu cunho social. A questão da violência doméstica ou familiar contra a mulher é assunto relevante na sociedade e a Lei nº 11.340/06 foi editada para contornar esse problema social.

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Sobre a autora
Bruna Massaferro Aleixo

Graduada pela Faculdade de Direito de Mogi Mirim/SP.Cursando Pós-graduação em Ciências Penais sob a coordenação de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini pela Universidade Anhanguera-Uniderp - Rede LFG -Mogi Mirim/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALEIXO, Bruna Massaferro. A constitucionalidade da Lei Maria da Penha à luz do princípio da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3017, 5 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20139. Acesso em: 22 dez. 2024.

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