3.A tutela antecipada e sua integração ao recurso de apelação
No âmbito dos tribunais, constata-se que a antecipação dos efeitos da tutela tanto pode ser conferida nos processos em que o colegiado atua originariamente, como primeira instância, quanto naquelas hipóteses em que o órgão superior atua com competência recursal, seja mediante recurso, seja através de ação direita [45].
Nessa toada, a concessão da tutela antecipada na esfera dos tribunais, quando esses atuam como originariamente competentes, decorre, além de outros motivos, da própria localização do citado instituto processual – situa-se nas "Disposições Gerais" do "Processo e do Procedimento" – o que faz com que, por força do parágrafo único do artigo 272 do CPC, aplique-se subsidiariamente aos procedimentos especiais, desde que restem preenchidos seus pressupostos gerais.
No que tange à possibilidade de tutela antecipatória no âmbito recursal, viu-se anteriormente que tal hipótese é amplamente admitida nos agravos de instrumento, vez que resulta de expressa autorização legal – artigo 527, inciso III, do CPC.
Ocorre que, pode acontecer – e corriqueiramente tal se verifica – que, posteriormente à prolação da sentença pelo juiz singular surjam os pressupostos autorizadores da tutela antecipatória, não obstante o encerramento da tramitação do processo no órgão a quo.
Destarte, ressalvada a hipótese de ser viável a imediata execução provisória da sentença de procedência, haja vista a apelação ter sido recebida apenas no efeito devolutivo, pode ser que a sentença tenha sido de improcedência ou terminativa, ou mesmo o apelo ter sido recebido em ambos os efeitos – devolutivo e suspensivo – o que eventualmente originará o interesse do recorrente na obtenção da tutela provisória [46].
Ademais, o simples fato de o processo encontrar-se em fase recursal, ou de inexistir autorização legal expressa nesse sentido, não pode servir de óbice para que se conceda a tutela antecipatória no bojo da apelação cível.
E os argumentos em favor da extensão da antecipação de tutela ao recurso de apelação não são poucos, e nem desprovidos de sentido, conforme se verá.
Em primeiro lugar, destaque-se, como visto acima, que, quando o Estado assumiu o monopólio da função jurisdicional, o mesmo tomou para si a responsabilidade de tutelar de maneira adequada e efetiva o direito dos jurisdicionados.
Nessa toada, a antecipação de tutela, que foi concebida como uma das técnicas processuais para que o Estado cumprisse adequadamente sua tarefa, não pode ter o seu uso restringido de forma irrazoável, devendo, isso sim, ter aplicação dilatada o máximo possível, a fim de que sejam tutelados de maneira efetiva o direito daqueles que buscam os serviços do Judiciário.
Para além disso, a apelação cível, como se trata de uma espécie de recurso que faz parte do direito processual civil, não pode ser estudada como se fosse um mecanismo estanque em relação a esse ramo do direito, recebendo, portanto, seus influxos, o que envolve a necessária busca pela efetividade da tutela jurisdicional, inclusive, através dessa técnica de distribuição do ônus do tempo do processo.
Outrossim, viu-se linhas atrás que ocorreu a universalização da tutela antecipada, com o advento da Lei nº 8.952/94, que deu nova redação ao artigo 273 do Código de Processo Civil, porquanto o instituto era até então limitado a determinados procedimentos especiais.
Tal técnica antecipatória, tendo passado a integrar as "Disposições Gerais" do "Processo e do Procedimento", ensejou, por força do estabelecido no parágrafo único do artigo 272 do CPC, a generalização de seu alcance. Teori Albino Zavascki adverte o seguinte:
Mais que uma simples alteração de um dispositivo do Código, a nova lei produziu, na verdade, uma notável mudança de concepção do próprio sistema processual. As medidas antecipatórias, até então previstas apenas em determinados procedimento especiais, passaram a constituir providência alcançável, generalizadamente, em qualquer processo. A profundidade da mudança – que, como se disse, é, mais que da lei, do próprio sistema – se faz sentir pelas implicações que as medidas antecipatórias acarretam não só no processo de conhecimento, mas também no processo de execução, no cautelar e até nos procedimentos especiais. [47]
Dessa forma, como a apelação cível faz parte do sistema recursal, e como esse, por sua vez, integra o processo cognitivo, nada mais natural do que a viabilidade de estender-se àquela o instituto da antecipação de tutela. A esse respeito destaca Roberto Armelin que:
Da mesma forma, finalmente, em face da força do princípio geral de Direito espelhado no instituto da antecipação de tutela, sua posição geográfica não lhe impõe qualquer limite de eficácia. Aliás, estando previsto no capítulo que disciplina as disposições gerais do processo e do procedimento, somo autorizados a concluir que inexiste qualquer restrição de aplicabilidade do instituto exclusivamente ao processo de conhecimento em primeiro grau de jurisdição. [48]
Ressalte-se ainda que a edição da Lei nº 10.352, dando a atual redação do artigo 527, inciso III, encerrou a controvérsia existente no âmbito do agravo de instrumento, e que consistia justamente na dúvida sobre se seria possível com base no artigo 558, conceder, não exatamente o efeito suspensivo, mas a própria tutela pretendida pelo recorrente.
Na verdade, antes mesmo da nova redação dada ao artigo 527, inciso III, doutrina e jurisprudência, embora por motivos variados, já vinham admitindo o adiantamento de providência positiva em favor do agravante, com fundamento numa interpretação extensiva e teleológica do artigo 558 [49].
Com efeito, a redação dada ao artigo 558 do CPC, teve como escopo principal a redução do manejo do mandado de segurança e das cautelares inominadas contra ato jurisdicional, para a obtenção do efeito suspensivo, o que implicava numa perniciosa duplicidade de processamento para a obtenção de resultado provisório.
Não obstante isso, o uso do mandamus perdurou nos casos em que se buscava providência de natureza positiva.
E até mesmo as cautelares eram bastante manejadas com escopo de obtenção da tutela antecipada de efeitos relacionados ao próprio mérito da lide principal, o que deturpava sua natureza jurídica, tal como já foi dito acima.
Tais fatos levaram a interpretar-se o citado dispositivo legal extensivamente, para que também abrangesse o denominado efeito suspensivo ativo, ou melhor, a antecipação dos efeitos da tutela recursal.
Além disso, como o referido artigo 558 do CPC, nos termos de seu parágrafo único, alcança também o recurso de apelação, e não só o agravo, inexistia qualquer obstáculo que dificultasse a extensão daquela interpretação teleológica àquele recurso.
Do mesmo jeito, e pelas mesmas razões, não se vislumbra qualquer empecilho ao alargamento da aplicação do artigo 527, inciso III – que prevê de forma explícita a antecipação de tutela recursal no agravo de instrumento – para abranger também a apelação cível.
Conforme mencionado alhures, tanto no caso de suspensão pelo relator da execução de medida jurisdicional já deferida no primeiro grau, quanto no caso adiantamento provisório de medida indeferida pelo juízo a quo, trata-se de antecipação dos efeitos da provável decisão de procedência do recurso, ou seja, de antecipação da tutela recursal.
O que se inovou, foi a explicitação da possibilidade do relator também adiantar providências de natureza positiva, que antes estavam implícitas no sistema processual, decorrendo apenas de uma interpretação teleológica da doutrina e da jurisprudência.
Destarte, a tese da antecipação de tutela recursal no bojo da apelação, sustenta-se não só por uma interpretação teleológica dos dispositivos legais do CPC, ou mesmo por uma interpretação histórica – que toma em conta o contexto histórico de busca de superação da crise que envolve o Judiciário, gerada pela inefetividade e intempestividade de suas respostas –, mas também pela análise sistemática do Diploma Processual Civil.
Inclusive a jurisprudência, refletida no Superior Tribunal de Justiça, ao qual incumbe uniformizar a interpretação da legislação federal, posiciona-se pela admissão da tutela antecipada no âmbito do apelo voluntário [50].
Portanto, e ainda levando em conta que o próprio dispositivo regulador não fixa o momento oportuno para a antecipação dos efeitos da tutela pretendida, é possível tutelar-se o direito provisoriamente, por ocasião da interposição de apelação cível, também quando haja sentença de improcedência ou terminativa, ou mesmo quando a apelação tenha sido recebida em ambos os efeitos – devolutivo e suspensivo.
3.1 Requisitos necessários para a antecipação da tutela recursal
Com o advento da atual redação do inciso III do artigo 527 do CPC, findou a controvérsia sobre a ampla viabilidade de antecipação dos efeitos da tutela recursal, que, como se constatou linha atrás, também abrange também o recurso de apelação.
E precisamente por referir-se à antecipação dos efeitos da tutela recursal, a interpretação do citado dispositivo de lei não pode ser feita de maneira apartada do artigo 273, que rege de forma aprofundada o instituto da tutela antecipada, inclusive no que se refere aos seus requisitos indispensáveis.
No sentido da necessária obediência aos requisitos do artigo 273 do CPC, encontram-se os ensinamentos de Roberto Armelin, que, não obstante se referirem ao agravo instrumental, podem ser utilizados, sem qualquer prejuízo, à apelação cível:
Entretanto, data venia dos ilustres autores e magistrados, entendemos que o chamado efeito ativo do agravo de instrumento não passa de antecipação da tutela que se busca na decisão de mérito do próprio recurso. Ora, não é efeito suspensivo algum – não há o que se suspender!
Trata-se de pura e efetiva antecipação da tutela postulada no bojo do agravo de instrumento interposto, que, ademais, se concedida, deverá ser mantida (ou revogada) por ocasião do julgamento do mérito do recurso pela Turma competente segundo o regimento do tribunal.
E, assim sendo, a antecipação da tutela veiculada no agravo somente poderá ser concedida se presentes os requisitos e ausentes as vedações estabelecidas pelo art. 273 do CPC. [51]
Outrossim, ainda no que se refere aos requisitos necessários à concessão da medida antecipada, ressalvada a legitimidade para seu requerimento, que aqui pertence ao recorrente, não há diferenças substanciais entre a tutela antecipada pleiteada no primeiro grau de jurisdição e aquela requestada no âmbito dos tribunais. Aplicam-se, dessa forma, as observações já realizadas supra, quando do estudo genérico da medida antecipatória.
3.2 Processamento do pedido de tutela antecipada recursal
Ultrapassada a questão da viabilidade da tutela antecipatória no bojo do recurso de apelação, assim como de seus requisitos, cumpre perquirir sobre o procedimento a ser adotado para que se obtenha a tutela provisória nessa espécie recursal.
Como visto anteriormente, a apelação caracteriza-se por ser cabível em face de sentença – terminativa ou definitiva –, devolvendo a matéria impugnada à apreciação do órgão colegiado.
Após a publicação da sentença, nos termos do artigo 463 do CPC, o juiz só poderá alterá-la para corrigir erros materiais, de cálculos, ou em virtude do julgamento de embargos declaratórios.
Nesse contexto, com a interposição do recurso de apelação, ressalvadas as hipóteses acima descritas, o magistrado limitar-se-á a realizar o juízo de admissibilidade provisório do apelo voluntário, podendo ainda, excepcionalmente, deixar de recebê-lo acaso a sentença esteja em conformidade com súmula do STJ ou do STF.
Incumbirá ainda ao magistrado proceder ao regular processamento do recurso, intimando o apelado para contra-razões e encaminhando os autos ao tribunal.
Assim, pode-se vislumbrar que, caso o processo esteja em fase recursal, a competência para a apreciação do pedido de antecipação de tutela será, não do juiz singular, mas do órgão competente para o julgamento do recurso, qual seja, o tribunal ad quem. Assinala Fredie Didier Jr. que:
Se a sentença já foi proferida e o processo já está no tribunal, em grau de recurso, deve-se formular o requerimento de antecipação de tutela dirigido ao próprio tribunal, para que seja apreciado pelo órgão fracionário responsável pelo julgamento do recurso – pelo relator ou pelo Presidente do Tribunal, a depender do regimento interno [52].
Ocorre que, como o processamento do recurso de apelação no juízo a quo é relativamente demorado, podendo acontecer a situação de perigo antes mesmo da subida dos autos ao colegiado, cumpre verificar qual a via adequada para o requerimento da medida antecipatória, visto que não há previsão expressa a respeito da providência cabível.
No que concerne à escolha da via cabível, a doutrina está longe de ser unânime.
Primeiramente, inexiste obstáculo a que se efetue o pedido antecipatório por intermédio de petição simples, que, uma vez distribuída de forma independente no tribunal, determinaria o relator prevento para conhecer e processar o recurso interposto.
Entende Teori Albino Zavascki, embora também admitindo outras formas possíveis, que, mesmo excepcionalmente, persiste no sistema processual brasileiro a possibilidade de impetração do mandado de segurança para que seja evitada lesão iminente e irreparável ao direito, especialmente quando não é imediato o acesso ao órgão hierarquicamente superior (instância ordinária), tal como se dá com a apelação cível [53].
Pode-se ainda cogitar acerca do manejo da medida cautelar inominada diretamente ao órgão competente para conhecer o recurso apelativo.
Nessa última hipótese, cumpre destacar que, apesar das diferenças existentes entre as tutelas cautelar e antecipada, como relatado linhas atrás, não se pode esquecer a finalidade semelhante que rodeia os institutos, consistente em assegurar que o tempo não se torne um fator de corrosão dos direitos.
Tal semelhança de fins, aliada à dificuldade corriqueira de aferir qual das medidas de urgência deve requestada, leva à adoção do princípio da fungibilidade entre as tutelas de urgência, consagrado no parágrafo 7º do artigo 273 do CPC, facultando-se ao órgão judicante conhecer a medida utilizada como aquela que seria a realmente adequada.
E, mesmo considerando ser inadequado o mandamus naqueles casos excepcionais acima referidos, o que se faz apenas ad argumentandum tantum, não se visualiza qualquer empecilho à aplicação da fungibilidade também nessas hipóteses, pois, desde que devidamente cientificada para manifestar-se, inexiste qualquer prejuízo à parte adversa, a qual pode, pelo contrário, estar beneficiando-se injustamente da demora na solução do litígio.
3.3 Recurso cabível contra a decisão antecipatória
A partir do advento da Lei nº 11.187/2005, que deu nova redação ao parágrafo único do artigo 527, a decisão que deferir efeito suspensivo ao agravo de instrumento ou que antecipar os efeitos da tutela recursal é irrecorrível, somente sendo passível de reforma no momento do julgamento do agravo, ressalvada a possibilidade de reconsideração do relator.
Ocorre que, essa restrição legal – irrecorribilidade desse tipo de decisão incidental do relator – somente diz respeito ao agravo de instrumento, e não se pode interpretar extensivamente para abranger os demais recursos do processo civil, dentre os quais se inclui a apelação cível.
Acerca dessa conclusão, são bastante elucidativos os argumentos defendidos por Teresa Arruda Alvim Wambier:
a) a regra, no direito processual civil brasileiro, é a recorribilidade das interlocutórias. Diante disso, as exceções – isto é, as situações em que, segundo a norma, não se admite o recurso – devem ser interpretadas restritivamente;
b) consta da ementa da Lei 11.187/2005 que a mesma dá "nova disciplina ao cabimento dos agravos retido e de instrumento", e não a outros recursos;
c) a finalidade da Reforma foi a de reduzir a quantidade de recursos de agravo de instrumento em trâmite nos tribunais, e não de outros recursos, como, por exemplo, a apelação; e
d) a decisão sobre os efeitos da apelação relaciona-se, imediatamente, com o pedido (= lide, ou objeto litigioso), enquanto o agravo de instrumento muitas vezes diz respeito a questões menos importantes, que podem ser resolvidas quando do proferimento da sentença ou do julgamento da apelação [54].
Ademais, afigura-se cabível contra a decisão do relator, ou mesmo do colegiado, que julga o pedido de antecipação de tutela recursal, o recurso de embargos declaratórios, desde que tenham o intuito de combater omissão, contradição ou obscuridade no âmbito da decisão vergastada (artigo 535, incisos I e II, do CPC).