Resumo: Têm a doutrina e jurisprudência brasileira majoritariamente negado o reconhecimento dos direitos laborais das profissionais do sexo, sejam empregadas sejam prestadoras de serviço, com o fundamento no Código Civil que não reconhece negócio jurídico cujo objeto seja ilícito, e no Código Penal que penaliza condutas relacionadas à prostituição. Todavia, o ato da prostituir-se, em si, não é considerado ilícito, havendo também divergências na doutrina penalista sobre a tipicidade daquelas condutas correlatas. De qualquer forma, o Direito Penal trata a profissional do sexo como vítima, o que se choca com essa posição majoritária. Há também um choque com os princípios constitucionais e de direito como o da dignidade da pessoa humana, da valorização social do trabalho, da não-discriminação, da função social da propriedade, da pluralidade, da vedação ao enriquecimento em causa, da não alegação da própria torpeza e com o princípio justrabalhista da proteção. Por outro lado, ao se vislumbrarem os direitos fundamentais e o seu atual referencial teórico, também fica difícil para essa posição majoritária sustentar-se, em razão da possibilidade de invocação desses direitos como direitos subjetivos das profissionais do sexo, em especial o direito fundamental à liberdade de ofício, assim como em virtude da dimensão objetiva desses mesmos direitos que faz com que se irradiem por todo o ordenamento jurídico pátrio influenciando na eleição da interpretação que lhe seja conforme, notadamente aquela que propugna pelo reconhecimento dos direitos trabalhistas das prostitutas.
Palavras-chave: Direitos trabalhistas, Profissionais do sexo, Prostituição, Princípios e Direitos Fundamentais.
Sumário: Introdução; 1. Tratamento legal da prostituição no brasil e no mundo: aspectos penais; 2. Princípios fundamentais e de direito do trabalho aplicáveis à situação; 2.1 A força normativa dos princípios; 2.2 O princípio da dignidade a pessoa humana; 2.3 O princípio da valorização social do trabalho; 2.4 O princípio da não-discriminação; 2.5 O princípio da função social da propriedade; 2.6 O princípio justrabalhista da proteção; 3. Direitos fundamentais das profissionais do sexo; 3.1 Conceito e características dos direitos fundamentais; 3.2 A dimensão objetiva dos direitos fundamentais como critério hermenêutico para uma solução concreta de interpretação; 3.3 O direito fundamental à liberdade de ofício; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O jurista Lênio Streck (2007) assim leciona:
"una “baja comprensión” sobre el sentido de la Constitución – en lo que ella significa en el ámbito del Estado Democrático de Derecho – inexorablemente acarreará una “baja aplicación”, con efectivo perjuicio para la concretización de los derechos fundamentales-sociales" (...) "Dicho de un modo más simple: si el intérprete posee una baja precomprensión, es decir, si el intérprete sabe poco o casi nada sobre la Constitución – y por lo tanto, sobre la importancia de la jurisdicción constitucional, la teoría del Estado, la función del Derecho, etc. – estará condenado a la pobreza de razonamiento, quedando restringido al manejo de los viejos métodos de interpretación y del cotejo de textos jurídicos en el plano de la mera infraconstitucionalidad; por ello, no es raro que juristas y tribunales continúan interpretando la Constitución de acuerdo con los Códigos y no los Códigos de conformidad con la Constitución!".
Com este referencial hermenêutico, que propugna pela superioridade hierárquica da Constituição Federal em face das normas infraconstitucionais revertendo antiga tradição que não conferia eficácia prática aos dispositivos constitucionais, de modo a proporcionar a concretização dos valores e direitos fundamentais positivados nessa mesma Constituição, analisar-se-ão as possibilidades de interpretação no sentido do reconhecimento ou não dos direitos trabalhistas das profissionais do sexo.
Tem sido predominante na jurisprudência e na doutrina o posicionamento pela negativa total dos direitos de referidas trabalhadoras, com base no Art. 104, inciso II que somente dá guarida a negócios jurídicos cujos objetos sejam lícitos, e nos artigos do Código Penal que visam a penalizar condutas relacionadas à prostituição. Entre outros, nesse sentido se posicionam três dos mais lidos e citados autores da doutrina justrabalhista brasileira atual: Maurício Godinho Delgado (2009), Alice Monteiro de Barros (2006), e Vólia Bonfim Cassar (2010). Todavia, não parece ser a solução mais adequada constitucional e principiologicamente como também a mais apta a proporcionar a efetivação dos direitos fundamentais dos trabalhadores.
Assim, após tratar-se inicialmente dos aspectos criminais de modo que sua relação com os aspectos trabalhistas seja feita de forma harmônica, tratar-se-á de fazer o necessário confronto da posição majoritária com cada um dos diversos princípios constitucionais e de direito expostos de modo a verificar sua conformidade com os mesmos. Ao final, tem-se um confronto da posição interpretativa dominante com a atual leitura da teoria dos direitos fundamentais e com direitos específicos, em especial o direito fundamental à liberdade de ofício.
Esclarece-se que o termo “profissional do sexo” é utilizado em detrimento do termo “prostituta”, pois foi encontrada tal reivindicação na literatura sobre o tema (RED DE MUJERES TRABAJADORAS SEXUALES DE LATINOAMÉTICA Y EL CARIBE) no sentido de que o termo prostituta traria consigo um maior grau de estigmatização e depreciação da pessoa humana. Esclarece-se também, que apesar de ter sido utilizado o termo no gênero feminino, todas as considerações aplicam-se também aos profissionais do sexo do gênero masculino. Utilizou-se o termo feminino por motivo meramente casual, pois quase toda a bibliografia consultada assim também o faz provavelmente em razão de a grande maioria dos profissionais do sexo serem mulheres.
Outrossim, informa-se que apesar de o objeto principal do estudo ser a interpretação sobre o reconhecimento de direitos trabalhistas das profissionais do sexo empregadas, ou seja, aquelas subordinadas e em cuja relação de trabalho estejam presentes todos os outros elementos fático-jurídico da relação de emprego, aplicam-se quase todas as conclusões às profissionais prestadoras de serviço, com exceção do princípio justrabalhista da proteção. Tal assertiva é importante principalmente em razão da atual competência da Justiça do Trabalho que abrange ambas as situações.
Por fim, reconhece-se que há um grande campo a ser explorado no tema, especialmente pela Sociologia do Direito, aspectos interessantes como a história da família monogâmica e da influência religiosa no estabelecimento de condutas criminosas, a “criminalização da pobreza” efetuada pelo Direito Penal, influências ideológicas, etc. Destarte, o presente artigo permanecerá, na medida do possível, no campo daquilo que se convencionou chamar de “dogmática jurídica”, sem imiscuir-se em investigações sociológicas, filosóficas ou criminológicas em sentido estrito, apesar do reconhecimento do caráter ideológico de cada posição interpretativa que se eleja ou do próprio Direito conforme analisa Rui Portanova (PORTANOVA, 2003). Por outro lado, evitar-se-á qualquer processo de fetichização do próprio Direito, no sentido da busca interpretativa através da “lei em si”, sem a necessária análise das condições sociais concretas.
1. TRATAMENTO LEGAL DA PROSTITUIÇÃO NO BRASIL E NO MUNDO: ASPECTOS PENAIS
Atualmente no mundo existem três sistemas legais de tratamento para a questão da prostituição: proibicionista, abolicionista e regulamentar (ALMEIDA, 2009).
O primeiro deles, proibicionista, é o mais extremo e considera crime a conduta de prostituir-se, sendo considerados como sujeitos ativos do crime o agenciador, a profissional do sexo e o próprio cliente. Tal sistema é adotado em alguns estados dos Estados Unidos da América.
Em segundo, o sistema regulamentar, que é adotado na Holanda desde o ano 2000, na Alemanha desde 2002, no Uruguai, Equador, Bolívia e em outros países. O argumento principal para a adoção de tal sistema legal por estes países foram o de que mantendo a atividade sob o controle estatal seria possível reduzir a exploração e a violência contra prostitutas, delimitar zonas de meretrício e da dessa forma também desenvolver políticas de saúde capazes de maximizar o controle de doenças sexualmente transmissíveis.
Em último lugar, o sistema abolicionista, que é o adotado pelo Brasil, Argentina, Portugal, alguns estados estadunidenses e pela grande maioria dos países. A adoção de tal sistema se funda na noção de que a profissional do sexo seria a vítima, agindo por coação ou necessidade. Como consequência somente são puníveis aquelas pessoas que exploram as profissionais do sexo auferindo lucros.
Nesse sentido, prevê o Código Penal Brasileiro de 1940, atualmente vigente, uma série de condutas ilícitas relacionadas à prostituição no capítulo V, intitulado “Do Lenocínio e do Tráfico de Pessoa para o Fim de Prostituição ou outra forma de Exploração Sexual”, destacando para o presente estudo os artigos 228 (“Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual”), 229 (“Casa de prostituição”) e 230 (“Rufianismo”). Os artigos citados visam a punir, respectivamente, àquele que favorece ou induz outrem à prostituição, àquele que mantém estabelecimento direcionado à prostituição e àquele que aufere lucros com a prostituição alheia (o rufião). O sujeito passivo de tais crimes, ou seja, a vítima, segundo Fernando Capez (CAPEZ, 2009), seria a própria profissional do sexo.
Importa ressaltar, todavia, que há verdadeiro debate jurídico em torno da vigência de tais dispositivos, em vista de ser a prostituição prática corriqueira e notória em quase todas cidades brasileiras, existindo casas de prostituição ostensivas sendo toleradas abertamente pelas autoridades policiais. Nesse sentido, parte da doutrina e jurisprudência entende aplicável à hipótese, além de outros entendimentos, a “teoria da adequação social da conduta” de Hans Welzel, que prescreve não ser possível aplicar uma punição a um indivíduo se a conduta por ele praticada é aceita pela sociedade, deixando a mesma de ser fato típico (LUCAS, 2010).
Nesse sentido assevera Guilherme Nucci a cerca do Art. 229 (apud ALMEIDA, 2009):
Consoante se verifica, a conduta denunciada, apesar de estar incriminada no Código Penal, há muito tempo, deixou de ser considerada crime no âmbito da jurisprudência, por ser socialmente aceita. Tanto passou a ser irrelevante para o Direito Penal a manutenção de casa de prostituição, que existem estabelecimentos dessa natureza em praticamente todos os municípios do país, fato que é conhecido da população e das autoridades policiais e administrativas. Ademais, a penalização da conduta em nada contribui para o fortalecimento do estado democrático de direito ou para o combate à prostituição. Ao contrário, se constituiu tratamento hipócrita apenas de casos isolados, normalmente marcado pela participação de pessoas de baixa renda, diante da prostituição institucionalizada, amplamente anunciada com rótulos como "acompanhantes", "massagistas" e outros, inclusive pelos meios de comunicação social.
Também assim se manifestou o Supremo Tribunal Federal (apud MIRABETE, 2007):
Casa de Tolerância em zona do meretrício: inexistência de crime – STF: Casa de prostituição. Exploração em Zona do meretrício. Inexistência de crime. Concessão de habeas corpus. Inteligência do art. 229 do Código Penal. A exploração de casa de tolerância em zona de meretrício não constitui crime (RT 405/433)
No mesmo sentido o seguinte julgado colacionado por Almeida (2009) em seu artigo:
Trata-se da imputação do crime de manter, por conta própria, casa de prostituição. Inviável a condenação dos acusados por esse crime. Pelo entendimento jurisprudencial, da aplicação do princípio da adequação social, torna-se o fato materialmente atípico. Embora estejam presentes a materialidade e autoria do delito, não devem os réus serem condenados, pois esse tipo de fato não ofende mais a moralidade pública, objeto jurídico protegido pelo crime imputado a ré. A conduta é aceita pela sociedade atual, inexistindo justificativa para manter a criminalização nesta situação
(BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Criminal n.º 70029939816, da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.).
Na mesma direção, ou seja, de reconhecimento e tolerância da atividade, caminhou o governo federal que através do Ministério do Trabalho e Emprego incluiu em 2002, sob o código 51-98-05, a atividade da profissional do sexo como ocupação no Cadastro Brasileiro de Ocupações – CBO (BRASIL), o que possibilitou o acesso a políticas públicas, inclusão no Censo, etc. Seguindo a mesma tendência, já foram também propostos dois projetos de lei visando a preservar os direitos laborais das profissionais do sexo assim como revogar os artigos do código penal que tratam da criminalização das atividades correlatas. São eles o projeto de lei 98 de 2003 de autoria do deputado Fernando Gabeira, e o projeto de lei n.º 2.244 de 2004 de autoria do deputado Eduardo Valverde.
Como conclusão, percebe-se que além de ser a prostituição e suas atividades correlacionadas práticas notoriamente toleradas pela sociedade e pelo Poder Público, a tipicidade das condutas e a punição é no mínimo incerta. Por outro lado, já se vislumbra um problema a ser desenvolvido no decorrer do presente estudo: se o Direito Penal brasileiro (abolicionista) trata a profissional do sexo como vítima, e vigorando no Direito do Trabalho o princípio da proteção (ao hipossuficiente trabalhador), seria possível vitimizar novamente a vítima ao não lhe conferir os direitos laborais pelos trabalhos prestados e, dessa forma, “premiar” a conduta ilícita do rufião ou da casa de tolerância que, além de ter como incerta sua punição, pode não ter que arcar com os valores pactuados?
2. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E DIREITO DO TRABALHO APLICÁVEIS À SITUAÇÃO
Passa-se agora a uma conceituação e caracterização geral e particular de princípios constitucionais e do Direito do Trabalho e de sua relação com a questão objeto deste estudo, ou seja, a possibilidade do não reconhecimento dos direitos trabalhistas das profissionais do sexo com base no inciso II do art. 104 do Código Civil, que traz como requisito para validade dos negócios jurídicos a licitude do objeto, posição esta que tem sido dominante na doutrina e jurisprudência pátria.
2.1. A Força Normativa dos Princípios
Não será aprofundada a discussão sobre o processo histórico de reconhecimento da força normativa dos princípios e as diversas teorias a respeito dos mesmos, minuciosamente examinadas pelo eminente constitucionalista pátrio Paulo Bonavides (2004). Porém tratar-se-á do tema na medida em que se torna necessário e útil ao presente estudo.
De acordo com Luís-Diez Picazo (apud BONAVIDES: 255) a ideia de princípio deriva da linguagem de geometria, ou seja, de que estão no princípio, ou de que designa as primeiras verdades. São normas com alto grau de generalidade que orientam a aplicação de todo o Direito, e sua força normativa têm sido contemporaneamente reconhecida pelas constituições e cortes supremas de diversos países:
A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os arestos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios cardeais (BONAVIDES, 2004, p. 286).
E continua o constitucionalista:
Dantes, na esfera juscivilista, os princípios serviam à lei (…) Doravante, colocados na esfera jusconstitucional, as posições se invertem: os princípios, em grau de positivação, encabeçam o sistema, guiam e fundamentam todas as demais normas que a ordem jurídica instituiu e, finalmente, tendem a exercitar aquela função axiológica vazada em novos conceitos de sua relevância (BONAVIDES, 2004, p. 292).
Dessa forma, dado o posicionamento constitucional dos princípios, deverão sempre prevalecer quando em choque com a legislação ordinária, devendo os operadores do direito oferecer resposta interpretativa de acordo com os princípios, mesmo que deixando de aplicar as leis ordinárias que se encontram em choque com os mesmos. Sendo parte da Constituição, também terão sua interpretação e aplicação vinculados aos princípios de interpretação constitucional (“catálogo-tópico” dos princípios da interpretação constitucional”), conforme leciona o Canotilho (1993, p. 226), em especial o princípio da máxima efetividade, que determina que deve ser atribuído a cada princípio constitucional o sentido que lhe confira a maior efetividade prática.
O doutrinador e ora Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado ainda esclarece que os princípios desempenham algumas “funções diferenciadas e combinadas” (2004, p. 17): a interpretativa (auxiliam a interpretação jurídica), normativa subsidiária (seriam normas subsidiárias quando da existência de lacuna legal) e normativa própria (sendo normas efetivas que prevalecem inclusive a outras regras legais).
2.2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser elencado constitucionalmente no Brasil apenas a partir de 1988, em seu Art. 1°, inciso III, como fundamento do Estado Democrático de Direito. Em outros países também se pode dizer que, com exceção de casos isolados, começou a ser introduzido nas constituições a partir da Segunda Guerra Mundial (SARLET, 2009, p. 97), tendo sido positivado na Declaração Universal da ONU de 1948, portanto, com “status” de Direito Humano.
É descrito doutrinariamente como o “princípio fundamental”, “valor supremo da ordem jurídica” e “fundamento de todos os direitos fundamentais”. Todavia, o seu conteúdo carece de exatidão, constituindo uma categoria axiológica aberta, tendo alcance e sentido variantes de acordo com a época e o povo, ou seja, influenciados culturalmente. Para Sarlet seria incorreto conceituá-lo de maneira fixista, pois não se harmonizaria com o pluralismo e a diversidade de valores das democracias contemporâneas (SARLET, 2009, p. 100).
Destarte, é inegável seu caráter normativo e algumas violações a este princípio são facilmente perceptíveis. De modo a não deixá-lo adstrito ao campo da metafísica, passou-se a buscar sentidos e conteúdos que lhe possibilitasse aplicação prática, na evolução filosófica do próprio conceito. Nesse sentido, Immanuel Kant (apud SARLET, 2009, p. 99), cuja concepção de dignidade está baseada em dois pilares, a autonomia do ser humano e a impossibilidade de sua redução a objeto, ou seja, a impossibilidade de adoção de condutas que retirem do ser humano sua condição de sujeito de direitos. Essa concepção kantiana tem até hoje prevalecido na interpretação, pela doutrina pátria e comparada, do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo recorrente o fato de os autores que tratam do tema se referirem à possibilidade da pessoa humana de se auto-determinar, sem ingerência estatal ou alheia, e na impossibilidade de tratamento desumano, que seria aquele capaz de reduzir axiologicamente o ser humano à coisa, sendo comum o uso do termo “coisificação”.
Em relação à prostituição, em primeiro plano têm a doutrina e jurisprudência pátria majoritária justificado o não reconhecimento de direitos trabalhistas das profissionais do sexo em face da criminalização dos atos vinculados a esta prática, que se inspiram por sua vez no fato de que com a prostituição ocorreria exatamente a redução da pessoa humana (profissional do sexo) à condição de coisa no ato da venda do seu próprio corpo para fins sexuais. Entretanto, em se tratando do Direito do Trabalho, ao deixar de reconhecer o contrato de emprego vigente entre a profissional do sexo e a casa de prostituição, ou mesmo o contrato de prestação de serviços, cuja competência é atualmente da Justiça do Trabalho, com fundamento no mesmo raciocínio do Direito Penal, acaba-se justamente por negar novamente a dignidade da pessoa humana.
Torna-se necessário fazer uma reflexão sobre o Art. 104, do Código Civil, que em seu inciso III veda o negócio jurídico cujo objeto seja ilícito. Tal reflexão também será aplicável na análise dos demais princípios e direitos fundamentais a seguir expostos. A profissional do sexo ao realizar suas tarefas não está praticando nenhum crime ou contravenção, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o empregado do tráfico, que está a todo momento praticando alguma da conduta típica, como a posse de entorpecentes, a comercialização, a produção, etc. Assim, não é a profissional do sexo autora ou co-autora dos referidos tipos penais. É, pelo contrário, considerada o seu sujeito passivo (vítima). Portanto, não há ilicitude em sua conduta.
Por outro lado, para se incluir no referido conceito de “objeto ilícito”, como faz grande parte da doutrina pátria, valores morais e conceitos abstratos e vagos pertencentes ao campo da metafísica como “bons costumes” é necessário o fazer em conformidade com a Constituição Federal, com os princípios constitucionais como o da própria dignidade da pessoa humana e o da não-discriminação, com os direitos fundamentais e principalmente com o princípio constitucional do pluralismo, positivado no Art. 1°, inciso V, da da Constituição Federal, que estabelece um verdadeiro “direito fundamental à diferença em todos os âmbitos e expressões da convivência humana” (MENDES, 2008, p. 156). Nesse sentido, Luciana Caplan lembra que “é curiosa a hipocrisia que prevalece na atribuição de significado às expressões “ordem pública” e, especialmente, “bons costumes” (CAPLAN, 2009, p. 289).
Não há como recriminar qualquer atividade particular que a pessoa humana desenvolve, como as de natureza sexual, que estão no âmbito da intimidade e/ou privacidade do indivíduo que tem a autonomia (portanto, a dignidade) de o fazer da maneira que desejar “com a só condição de que suas escolhas pessoais não causem prejuízo a outrem” (MENDES, 2008, p. 157). E no fato, não há prejuízo a terceiros.
Chega-se a mesma conclusão utilizando a interpretação lógica e sistemática do ordenamento jurídico, pois como o Código Penal elegeu a profissional do sexo à qualidade de vítima de algumas condutas típicas, não há como lhe imputar a prática (autoria) de conduta contrária aos “bons costumes” ou à “moral pública” com o objetivo único de lhe negar ainda outros direitos fundamentais (valores estes de criação doutrinária, pois não estão positivados no ordenamento jurídico, pelo menos literalmente).
Em relação à “coisificação” da pessoa humana que ocorre com a venda do próprio corpo, em ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, há que se fazer uma ressalva. Conforme o ensinamento de Ingo Wolfgang Sarlet antes exposto, o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana é flexível, dando margem à discussão se tal ato viola ou não a dignidade, dependendo dos valores sociais de cada grupo ou de cada indivíduo, incluindo o da própria profissional do sexo que pode considerar intimamente o oposto (diversos movimentos de profissionais do sexo pelo mundo, como a “Red de Mujeres Trabajadoras Sexuales de Latinoamperica y el Caribe” e a “Rede Brasileira de Prostitutas”, têm se posicionado dessa forma, ou seja, contra a vitimização e o abolicionismo e buscando o reconhecimento da profissão, que entendem perfeitamente digna como qualquer outro trabalho). Em realidade todo tipo de trabalho, em última instância, consiste na venda do próprio corpo. É de se refletir, por exemplo, em casos como o de obreiros que vendem seu corpo como força de trabalho na construção civil carregando tijolos, ou trabalhadores em indústrias siderúrgicas que vendem o corpo para o trabalho com metais e mesmo aqueles que trabalham respirando excesso de vapores prejudiciais em verdadeira venda da própria saúde, que é paga com os adicionais de insalubridade. Nesse sentido, se poderia também discutir se tais trabalhos, ou mesmo se a própria venda do corpo em si como força de trabalho para os proprietários dos meios de produção não seria atentatória ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Sem a necessidade de se realizar as discussões acima anunciadas, o que necessitaria ingressar em um campo estritamente filosófico e que não é o objetivo desse trabalho, pode-se visualizar e discutir a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana em uma etapa posterior, menos abstrata. Assim, mesmo em se considerando que houve uma “coisificação” da profissional do sexo no momento do ato de prostituição, ou do período de prostituição no caso de prostitutas subordinadas, o que ocorre no momento em que se nega concretamente o reconhecimento dos direitos trabalhistas dessas profissionais, como o direito às prestações salariais pactuadas, é uma “re-coisificação” da sua pessoa, chocando-se com o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, seguindo a matiz kantiana de dignidade da pessoa humana exposta, suprime-se a qualidade de sujeito de direitos dessas profissionais. Por outro lado, haveria um certo incentivo ao rufião ou à casa de prostituição, pois apesar de ter praticado as condutas ilícitas, vitimizado ou “coisificado” a profissional do sexo, não será obrigado a efetuar o pagamento pactuado.
Assim também entende o jurista e juiz do trabalho Jorge Luiz Souto Maior (2008, p. 79-80):
Quem explora a prostituição comete um crime, mas a atividade de prostituição em si não é vista como tal. Assim, não há, propriamente, no que se refere ao trabalho prestado, um ilícito praticado, não havendo óbice, por conseguinte, à configuração da relação de emprego. Pelo ilícito praticado, no que se refere à obtenção de benefício pela situação, o empregador deverá responder, ainda, criminalmente. Aliás, não conferir direitos trabalhistas à hipótese representa fomentar a lógica do proveito econômico pela exploração da prostituição alheia, que é, exatamente, o que a lei penal quer punir .
Dessa forma, há que se fazer uma releitura do Art. 104, inciso III, do Código Civil, quando da sua invocação para o não reconhecimento dos direitos trabalhistas das profissionais do sexo. As únicas interpretações válidas são aquelas que não venham a se chocar com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, dado sua superior hierarquia no ordenamento jurídico. De acordo com tal princípio, impraticável é a interpretação que suprima a qualidade da profissional do sexo de sujeito de direitos.
2.3. O Princípio da Valorização Social do Trabalho
A argumentação desenvolvida a cerca do princípio da dignidade se aplica, em grande parte, a este princípio e aos seguintes no que tange ao seu desatendimento pela posição majoritária da doutrina e jurisprudência ao não reconhecer os direitos trabalhistas das profissionais do sexo, sendo que analisaremos aqui suas especificidades, que podem acrescentar argumentos no sentido da inconstitucionalidade desta posição.
O princípio da valorização social do trabalho está positivado em diversos dispositivos da Constituição Federal. Desde o preâmbulo; passando pelo catálogo de “princípios fundamentais” da República Federativa do Brasil do art. 1°, inciso IV; nos princípios gerais da atividade econômica do Art. 170, “caput”; e no Art. 193 que estabelece o primado do trabalho na a ordem social. Como consequência, o direito fundamental ao trabalho e uma série de direitos fundamentais trabalhistas decorrentes da relação de trabalho estão positivados nos arts. 6° e 7°.
A análise dos dispositivos constitucionais descritos leva à conclusão que o trabalho foi eleito à categoria essencial e primordial para o Estado Democrático de Direito, devendo portanto ser valorizado. Maurício Godinho Delgado assevera que (2007, p. 70):
Reconhece a Constituição a essencialidade da conduta laborativa como um dos instrumentos mais relevantes de afirmação do ser humano, quer no plano de sua própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar e social. (…) Sabiamente, detetou a Constituição que o trabalho, em especial o regulado, assecuratório de certo patamar de garantias ao obreiro, é o mais importante veículo (senão o único) de afirmação comunitária da grande maioria dos seres humanos que compõem a atual sociedade capitalista, sendo, desse modo, um dos mais relevantes (senão o maior deles) instrumentos de afirmação da Democracia na vida social
Tais assertivas, conjugadas com o caráter constitucional do referido princípio, trazem algumas consequências imediatas ao presente estudo. Há uma implicação principiológica diretamente na “teoria trabalhista das nulidades”, exposta em todos os manuais de Direito do Trabalho. Tendem os autores, em sua grande maioria, a repetir que quando o serviço prestado não ofende a ordem pública, como é o caso do trabalho do menor de idade (seria então um trabalho proibido e não um trabalho ilícito) incidiria plenamente a teoria trabalhista das nulidades, obrigando o empregador ao pagamento daquele serviço prestado pelo menor com todos os direitos trabalhistas. No caso de um trabalho ilícito, como o do empregado do tráfico de drogas ou de assassinos profissionais, incidiria a teoria clássica civilista das nulidades, não devendo o empregador ser compelido a efetuar aquele pagamento, de acordo com o art. 104, III do Código Civil. Citam ainda, geralmente, a aplicação mitigada da teoria das nulidades trabalhistas em casos como o de empregado do Poder Público que trabalhou sem prévia aprovação em concurso público, devendo ser indenizado por todos os direitos trabalhistas, porém não podendo ser reconhecido como empregado com assinatura de carteira de trabalho, pois nesse caso estaria envolvido o interesse público (DELGADO, 2009, p. 478 - 481).
O fundamento último para essa aplicação da(s) teoria(s) das nulidades seria o princípio constitucional da valorização do trabalho. Depois da prestação do trabalho, dado não ser possível retornar ao “status quo” anterior, devem ser reconhecidos os direitos trabalhistas daqueles obreiros, como pagamento de salários atrasados, horas extraordinárias, etc. Assim também restaria homenageado o princípio geral de direito da “vedação ao enriquecimento sem causa”, positivado no Código Civil em seu Art. 884, e aplicado analogicamente ao Direito do Trabalho, por força do Art. 8° da Consolidação das Leis do Trabalho.
Seguindo tal raciocínio em relação ao trabalho das profissionais do sexo, através da interpretação lógica e sistemática do ordenamento jurídico, tem-se que caso exista interesse público para a aplicação das teorias das nulidades na situação objeto deste estudo, o mesmo seria direcionado no sentido do reconhecimento de seus direitos trabalhistas. Pois tendo o Direito Penal as tratado como vítimas e não criminosas ao estabelecer tipos penais vedando condutas exploratórias desses trabalhos, visou a impedir novos casos de exploração do trabalho sexual por terceiros. Não se coaduna com essa ideia uma posterior negativa de reconhecimento de direitos trabalhistas porque tal posicionamento acabaria por “re-vitimizar” a vítima, pois mesmo após ter sido sujeito passivo de um crime, poderá nem sequer receber as prestações pactuadas, que têm caráter alimentar. Conforme o pensamento do professor Maurício Godinho Delgado exposto, através da positivação do princípio da valorização social do trabalho na Constituição, o salário e os demais direitos decorrentes do trabalho foram reconhecidos como instrumentos de afirmação de outros direitos fundamentais da grande maioria da população e, no tema do estudo, já tendo a profissional do sexo prestado o serviço, o mesmo deve ser reconhecido e indenizado segundo o mesmo princípio, impedindo também o enriquecimento sem causa. E mais, em não havendo vedação legal a este tipo de trabalho, o exercício da atividade é livre, conforme o direito fundamental à liberdade de ofício positivado no 5º, XVIII que será tratado à frente e que possui a natureza jurídica de norma constitucional de eficácia contida e imediata (ou seja, até que haja regulamentação opera com eficácia plena). Assim sendo, e dado ao fato de também ter sido a pluralidade eleita à categoria de princípio constitucional (implicando em pluralidade de pensamentos e de ofícios), deveria ser a profissional indenizada com o reconhecimento de todos os seus direitos trabalhistas (restringindo é claro aqueles que proporcionem maior discriminação, como a assinatura de carteira de trabalho).
Nesse sentido o voto do então deputado federal Sérgio Carneiro ao projeto de lei 99 de 2003:
A prestação de serviços de natureza sexual é um fenômeno presente, e muito significativo, não apenas na sociedade brasileira, como também em todas as outras sociedades do mundo. Modernamente, como dissemos, o que corresponde ao interesse social e à ordem pública não é mais a marginalização social nem a manutenção dessa realidade em um limbo jurídico, mas sim que essa atividade não constitua motivo de exploração, violência e degradação para os homens e mulheres que a exercem.
2.4. O Princípio da Não-discriminação
Tendo intima relação com os demais princípios, especialmente no que tange ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao do pluralismo, elencam alguns doutrinadores o princípio da não-discriminação, que foi positivado na Constituição Federal em seu Art. 3°, inciso IV, no Art. 5°, “caput” e inciso I, além de algumas disposições específicas trabalhistas constantes no rol do Art. 7°, como a vedação a discriminação para efeitos salariais do inciso XXX. Descende diretamente do princípio da isonomia, que seria mais amplo e de função positiva. Ao contrário, a função deste princípio é essencialmente negativa, no sentido de vedar condutas injustamente discriminatórias.
Maurício Godinho Delgado (2004, p. 49) assim define discriminação para a conceituação deste princípio, aplicável ao Direito do Trabalho segundo:
Discriminação é a conduta pela qual nega-se à pessoa, em face de critério injustamente desqualificante, tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada.
E continua, a cerca da causa da discriminação:
A causa da discriminação reside, muitas vezes, no cru preconceito, isto é, um juízo sedimentado desqualificador de uma pessoa em virtude de alguma característica, determinada externamente, e identificadora de um grupo ou segmento mais amplo de indivíduos (cor, raça, sexo, nacionalidade, pobreza, etc). Ou, como afirma Ronald Dworkin, do fato de ser “membro de um grupo considerado menos digno de respeito, como grupo, que outros.
No presente estudo, constatou-se que se tem negado o reconhecimento de direitos trabalhistas das profissionais do sexo em virtude da aplicação do Art. 104, inciso II do Código Civil, que só reconhece negócios jurídicos com objetos lícitos. E não havendo conduta criminosa da profissional do sexo, tem-se que a fundamentação jurídica consiste em que o tal “objeto ilícito” abrangeria os atos contrários aos “bons costumes”, à “ordem pública” e à moral, conforme lecionam os autores da doutrina civilista pátria, e assim sendo a prostituição seria ofensiva aos “bons costumes” não havendo como reconhecer direitos trabalhistas na hipótese (seja em contrato de emprego, seja em contrato de prestação de serviços).
Maria Helena Diniz cita unicamente como exemplo de ato atentatório à “moral e os bons costumes”, capaz assim de tornar o negócio jurídico nulo, a compra e venda de coisa roubada (DINIZ, 2002). Por este exemplo percebe-se de plano a diferença para a situação objeto deste estudo. Neste exemplo oferecido pela eminente professora há um interesse concreto de terceiro, uma ofensa ou possibilidade de ofensa a interesse de terceiro, que seria a pessoa de quem cuja coisa foi roubada. Nesse caso, tem-se como razoável a aplicação de referido conceito de “moral e bons costumes“ como artifício a dar solução em conformidade com senso médio de justiça da população (notoriamente não se acha “justo” a venda de coisa roubada). Porém na hipótese objeto do presente estudo, a invocação de tal conceito de “moral e bons costumes”, que não está no texto da lei, funda-se em critério discriminatório, ao destituir do grupo de profissionais do sexo a possibilidade de acesso à justiça em virtude de sua condição pessoal e privada de vida. Não havendo conduta ilícita na atuação dessas profissionais, não havendo ofensa alguma ao interesse de terceiros, sendo os atos praticados intimamente, torna-se difícil vislumbrar qualquer possibilidade de exclusão de seus direitos trabalhistas por atentarem contra os “bons costumes”, dado que o conteúdo axiológico do princípio da não-discriminação irradia-se por todo o ordenamento jurídico. Conforme visto, dado vigorar na ordem jurídica o princípio da pluralidade, não cabe ao intérprete do direito eleger e assim discriminar as atitudes íntimas e pessoais que ofendem ao valor metafísico da “moral e bons costumes” de forma a criar um grupo de pessoas destituído de direitos sociais fundamentais.
2.5. O Princípio da Função Social da Propriedade
Historicamente houve em todo o mundo uma relativização do conceito de direito à propriedade, de forma a harmonizar o seu exercício com o interesse público. Assim, na vigente Constituição Federal pátria, foi positivado como princípio da ordem econômica e social, no art. 170, III e como verdadeiro direito individual fundamental no art. 5°, XXIII:
(...) a função social foi encarada pelo constituinte como princípio próprio e autônomo, apto a instrumentalizar todo o tecido constitucional, e, por via de conseqüência, todo o ordenamento infraconstitucional. O direito de propriedade é garantido, desde que cumprida a sua função social. É tratado, ao mesmo tempo, como direito individual fundamental e de interesse público, visando a atender os anseios sociais (MOESCH, 2005).
Portanto, determina a Constituição que toda a propriedade deve cumprir sua função social. E mais do que isso: dado o seu caráter constitucional, irradia-se por todo o ordenamento jurídico, devendo os operadores do direito conferir-lhe a máxima eficácia optando por soluções interpretativas do direito infraconstitucional mais assentes com este princípio.
Nesse sentido, tenderia a posição do não reconhecimento de direitos trabalhistas das profissionais do sexo a chocar-se com o princípio da função social da propriedade na medida em que retira a última hipótese de valor social ao trabalho prestado. Sem a necessidade de se entrar na discussão sobre a existência de uma função social nos prostíbulos, fica patente que uma casa de prostituição que enriquece sem causa ao explorar trabalho sexual (quando não é obrigada a arcar com os direitos trabalhistas) tem menos função social do que aquela que arca com tais direitos. Em outras palavras, a solução jurídica interpretativa mais assente com o princípio da função social da propriedade é também a de reconhecer de tais direitos fundamentais (e sociais), atendendo à diretriz interpretativa da máxima efetividade da Constituição.
2.6. O Princípio Justrabalhista da Proteção
O princípio da proteção é geralmente o primeiro princípio tratado nos manuais de Direito do Trabalho. É conhecido ainda como “princípio protetor”, “princípio tutelar”, sendo também às vezes utilizado o termo “in dubio pro operario”. É aplicável às relações de emprego (exclui-se, portanto, o seu uso como fundamentação para o reconhecimento de direitos pelo trabalho de profissionais do sexo prestadoras de serviço).
É o princípio central do Direito do Trabalho que vem a estruturar todo esse ramo jurídico sob a perspectiva da hipossuficiência do trabalhador. Por considerar a vulnerabilidade econômica do trabalhador no sistema capitalista, onde depende da venda de sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produção para a sua sobrevivência, está o Direito do Trabalho construído de modo a proporcionar a defesa desse trabalhador, estabelecendo patamares mínimos de direitos a serem observados pelos empregadores. Nesse sentido Maurício Godinho Delgado (2004, p. 82):
De fato, a estrutura conceitual e normativa do Direito do Trabalho, e acentuadamente do Direito Individual do Trabalho, constrói-se a partir da constatação fática da diferenciação sócio-econômica e de poder substantivas entre dois sujeitos da relação jurídica central desse ramo jurídico – empregador e empregado.
Em relação à sua manifestação prática, o jurista uruguaio Américo Plá Rodriguez (apud DELGADO, 2004, p. 82-83) considera manifestar-se em três dimensões: o princípio do “in dubio pro operario”, o princípio da condição mais benéfica e o princípio da norma mais favorável. Este último determina que o interprete deve sempre oferecer solução mais favorável àquele que trabalha quando houver a possibilidade de interpretações distintas.
Logo, já é possível lançar questionamento a cerca da relação deste princípio com a interpretação dada majoritariamente em relação ao reconhecimento de direitos trabalhistas das profissionais do sexo. Se o Direito Penal trata as profissionais do sexo como vítimas punindo condutas de exploração do seu trabalho, ou seja, buscando a proteção dessas mulheres, por que não deveria o Direito do Trabalho, fundado também na idéia de proteção, dar tutela aos seus direitos trabalhistas? Em realidade, através de interpretação lógica do ordenamento jurídico, entendendo o Direito Penal pela proteção assim também deveria o Direito do Trabalho se posicionar, mormente sendo este ramo informado justamente por um princípio da proteção. O não reconhecimento desses direitos trabalhistas é, pois, a interpretação menos favorável, calcada na eleição de lei infraconstitucional em desprestígio do princípio da proteção e de diversos outros princípios, como os já elencados. Portanto, em face da vulnerabilidade reconhecida tanto pelo Direito Penal quanto pelo Direito do Trabalho, a lógica do sistema seria a de prevalência do princípio justrabalhista da proteção das profissionais do sexo, reconhecendo-se os direitos trabalhistas pelos trabalhos realizados.
Por outro lado, a eleição da interpretação majoritária acaba também munindo o rufião ou a casa de prostituição, “hiper suficientes” da relação de trabalho, com a possibilidade da alegação da própria torpeza durante eventual demanda judicial trabalhista, em violação a outro princípio, o princípio geral de direito da não-alegação da própria torpeza, também aplicável ao Direito do Trabalho conforme leciona Maurício Godinho Delgado (2009, p. 179).