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Direitos trabalhistas das profissionais do sexo: uma questão de princípios

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02/12/2011 às 08:41
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3. DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS PROFISSIONAIS DO SEXO

3.1. Conceito e Características dos Direitos Fundamentais

No que pese já o grande número de trabalhos científicos sobre o tema, há ainda celeuma sobre a conceituação e a natureza jurídica dos direitos fundamentais. São nominados também como “direitos humanos”, “direitos do homem”, “liberdades fundamentais”, “direitos humanos fundamentais” e outras expressões, o que denota ausência de consenso. Todavia tem-se majoritariamente convencionado na doutrina brasileira que “direitos fundamentais” são aqueles positivados em nossa Constituição Federal, enquanto “direitos humanos” seriam aqueles catalogados em normas internacionais, apesar de em certo sentido poderem ser, na maioria das vezes, direitos fundamentais e humanos ao mesmo tempo. Utilizar-se-á neste estudo a expressão direitos fundamentais neste sentido convencionado. Na mesma linha de entendimento Ingo Wolfgang Sarlet (2007, p. 33-34):

(...) importa considerar a relevante distinção quanto ao grau de efetiva aplicação e proteção das normas consagradoras dos direitos fundamentais (direito interno) e os direitos humanos (direito internacional), sendo desnecessário aprofundar aqui a idéia de que são os primeiros que – ao menos em regra – atingem (ou, pelo menos estão em melhores condições para isso) o maior grau de efetivação, particularmente em face da existência de instâncias (especialmente as judiciárias) dotadas do poder de fazer respeitar e realizar seus direitos. Cumpre lembrar, ainda, o fato de que a eficácia (jurídica e social) dos direitos humanos que não integram o rol dos direitos fundamentais de determinado Estado depende, em regra, da sua recepção na ordem jurídica interna e, além disso, do status jurídico que esta lhe atribui, visto que, do contrário, lhes falta a necessária cogência.

De outro lado, sua conceituação é difícil, principalmente por existirem diversas categorias e gerações de direitos fundamentais, com diferentes naturezas jurídicas. Sem se aprofundar neste tema tormentoso, elenca-se o conceito de José Afonso da Silva (apud MENDES: 237) para quem:

(...) os direitos fundamentais designam, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o [ordenamento jurídico] concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive.

A Constituição Federal elenca uma série de direitos fundamentais individuais no rol do Art. 5°, direitos fundamentais dos trabalhadores no rol do Art. 7°, além de outros espalhados pelo texto constitucional e mesmo “outros (direitos e garantias) decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (Art. 5°, parágrafo 2°).

A primeira consequência (e características) de ter um direito o “status” de fundamental é a sua aplicabilidade imediata, isto é, não dependente de regulamentação, conforme se extrai do parágrafo 1° do Art. 5°. Tal característica abrange todos os direitos fundamentais até mesmo os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p. 277):

(…) verifica-se que também um interpretação sistemática e teleológica conduzirá aos mesmo resultados. Neste sentido, percebe-se, desde logo, que a Constituição não pretendeu, com certeza, excluir do âmbito do art. 5º, § 1º, de nossa Carta, os direitos políticos, de nacionalidade e os direitos sociais, cuja fundamentalidade – pelo menos no sentido formal – parece inquestionável.

Outras características geralmente citadas pela doutrina são a universalidade (aplicam-se a todos os seres humanos), limitabilidade (não são absolutos, podendo eventualmente chocar-se com outros direitos fundamentais, quando se deve resolver o conflito através da ponderação de valores com auxílio do princípio da proporcionalidade), historicidade (seu alcance só pode ser medido dentro de um contexto cultural da época, transformando-se com o tempo), inalienabilidade e indisponibilidade (não podem ser preteridos mesmo que com consentimento do titular o direito).

Da mesma forma, costuma a doutrina tratar da característica da “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, que significa que a observância e promoção dos direitos fundamentais devem ser atendidas inclusive nas relações entre particulares, como nos contratos de prestação de serviços e de emprego. Assim sendo, todos os direitos fundamentais, especialmente aqueles constantes nos catálogos do art. 5° e art. 7° da Constituição Federal são oponíveis contra empregadores e tomadores de serviço, seja através de sua dimensão subjetiva (direito subjetivo individual do trabalhador) seja através de sua dimensão objetiva (“elementos fundamentais da comunidade”).

3.2. A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais como Critério Hermenêutico para uma Solução Concreta de Interpretação

Além da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, ou seja, de direito subjetivo individual, oponível contra terceiros, tem a doutrina reconhecido a dimensão objetiva dos mesmos, sendo que “a constatação de que os direitos fundamentais revelam dupla perspectiva (…) constitui, sem sombra de dúvida, uma das mais relevantes formulações do direito constitucional contemporâneo” (SARLET, 2009, p. 141).

Não obstante haver certo consenso no reconhecimento da dimensão objetiva, há certas controvérsias a cerca de seu significado e conteúdo, mas é possível traçar um delineamento consensual básico. Nesse contexto:

(...) a doutrina e jusrisprudência (alemã) continuam a evocar a paradigmática decisão proferida em 1958 pela Corte Federal Constitucional (Bundesverfassungsgericht) da Alemanha no caso Lüth, na qual, além de outros aspectos relevantes, foi dado continuidade a uma tendência já relevada em arestos anteriores, ficando consignado que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos (SARLET, 2009, p. 143).

E continua o eminente professor Sarlet (2009, p. 144):

(...) a faceta objetiva dos direitos fundamentais (...) significa, isto sim, que às normas que preveem direitos subjetivos é outorgada função autônoma, que transcende esta perspectiva subjetiva, e que, além disso, desemboca no reconhecimento de conteúdos normativos e, portanto, de funções distintas aos direitos fundamentais. É por isso que a doutrina costuma apontar para a perspectiva objetiva como representando também (…) uma espécie de mais-valia jurídica, no sentido de um reforço da juridicidade das normas de direitos fundamentais.

Continua ainda o eminente professor com sua análise trazendo algumas implicações da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, sendo a primeira e mais interessante para o presente estudo a “eficácia irradiante” dos direitos fundamentais (2009, p. 144):

Como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme os direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada – ainda que com restrições – como modalidade semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação conforme à Constituição.

Assim sendo, tem-se que os dispositivos definidores de direitos dos trabalhadores catalogados no art. 7° (além de outros) da Constituição Federal, como o direito fundamental ao salário, ao pagamento de horas extraordinárias, à redução dos riscos à saúde e segurança e outros se tornam parâmetros hermenêuticos de interpretação da legislação infraconstitucional. Não seria possível através deste critério, por exemplo, negar reconhecimento a uma relação de emprego entre a profissional do sexo e um prostíbulo de modo a afastar a aplicação do art. 7°, inciso XXII, que positiva o direito fundamental à redução dos riscos existentes no trabalho, que especialmente neste tipo de trabalho são de grande monta.

Na mesma direção, a interpretação do operador do direito a cerca do Art. 104, inciso II do Código Civil, notadamente do que seria o “ato ilícito”, deve ser aquela contaminada axiologicamente pelos direitos fundamentais constitucionais, especialmente aqueles positivados nos arts. 5° e 7°. Nesse sentido, acaba restando dificilmente sustentável a interpretação que proporcione o não reconhecimento dos direitos trabalhistas das profissionais do sexo, pois desdenha de valores fundamentais com o do pagamento do salário, promoção da saúde e segurança no trabalho, limitação de jornada de trabalho e outros, sem que sequer haja choque com outro direito fundamental.

3.3. O Direito Fundamental à Liberdade de Ofício

Dispõe o texto constitucional em seu Art. 5°, inciso XIII: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Tal disposição é o fundamento constitucional para aquilo que a doutrina convencionou chamar de direito fundamental à “liberdade de ofício”, “liberdade de profissão”, “liberdade de atividade profissional” ou ainda “liberdade de trabalho”. Costumam também os manuais de Direito Constitucional alertarem para o fato de que tal dispositivo possui a natureza jurídica de “norma de eficácia contida” segundo a tradicional e notória classificação de José Afonso da Silva (PAULO, 2009, p. 127), tendo, portanto, eficácia imediata plena, mas que pode vir a ser restringida posteriormente por lei.

Roger Stiefelmann Leal esclarece que pode ocorrer limitação da fruição de tal direito também em virtude de outros direitos fundamentais, porém desde que haja fundamentação constitucional (LEAL, 2008):

A liberdade de trabalho, ofício ou profissão, a exemplo de outras liberdades públicas, é direito fundamental passível de restrição. A presença no texto constitucional de uma carta de direitos implica necessariamente a tutela de vários bens jurídicos eleitos pelo constituinte como fundamentais. Contudo, deve-se admitir que, em determinados casos, os direitos de liberdade encontram na própria Constituição - embora nem sempre de modo expresso - imposições que autorizam a instituição de limites ao seu exercício. A própria restrição ou a sua viabilidade devem ter fundamento no texto constitucional. Não há restrição a direito fundamental sem base constitucional.

Como não há qualquer vedação legal ao ato da prostituição ou outro direito constitucional que poderia ser contraposto, tem-se que a liberdade de ofício da profissional do sexo é plena, em primeiro lugar àquelas que trabalham sem o agenciamento de terceiros. Em relação àquelas que são empregadas de casas de prostituição ou de rufiões, também se pode argumentar o mesmo, já que as condutas puníveis são imputadas ao empregador e não às mesmas. Nesse sentido caminhou o Estado brasileiro ao reconhecer, através do Ministério do Trabalho e Emprego, a atividade da profissional do sexo como ocupação no Cadastro Brasileiro de Ocupações - CBO, conforme explicitado no primeiro capítulo deste trabalho.

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Outrossim, dada a supremacia da Constituição Federal, resta insustentável a interpretação jurídica que nega o reconhecimento dos direitos trabalhistas destas profissionais em favor de uma construção doutrinária civilista a cerca do “objeto ilícito” do Art. 104, inciso II, do Código Civil, sem qualquer fundamento constitucional. Pode-se dizer que esta interpretação na realidade inverte a ordem de hierarquia normativa como se o Código Civil estivesse situado em um nível acima da Constituição.

Portanto, estando positivado o direito fundamental à liberdade de ofício no Art. 5, inciso XIII, da Constituição Federal, erige o direito subjetivo dessas profissionais em atuarem da maneira que entendem, além das implicações decorrentes da dimensão objetiva deste mesmo direito fundamental, que faz com que o seu conteúdo axiológico se irradie por todo o ordenamento jurídico como critério hermenêutico, determinado que a interpretação do referido dispositivo do Código Civil se faça em conformidade com o seu conteúdo. Desse modo, posição interpretativa que faça discriminação suplantando direitos trabalhistas seria manifestadamente inconstitucional.


CONCLUSÃO

Em face do tudo o que se apresentou, confrontando a posição doutrinária e jurisprudencial majoritária, que oferece interpretação que veda o reconhecimento dos direitos trabalhistas das profissionais do sexo, com diversos princípios constitucionais e de direito e direitos fundamentais, percebe-se a incompatibilidade da mesma com o ordenamento jurídico pátrio.

Tal posição ao contrário de proporcionar a concretização dos valores constitucionais do Estado Democrático de Direito tem atuado no sentido de acentuar a discriminação e estigmatização de todo um setor social, cuja grande maioria se trata de pessoas das classes sociais mais carentes e deficitárias de políticas públicas, geralmente vulneráveis e expostas a todo tipo de violência, inclusive do próprio Poder Público. Na realidade, a adoção dessa posição majoritária concretamente para a grande maioria das profissionais do sexo se traduz em uma nova violência estatal, ao despojar destas profissionais a qualidade de sujeito de direitos.

Faz-se necessário e urgente a adoção pelos operadores de direito como advogados, promotores e procuradores do trabalho, auditores fiscais do trabalho e juízes do trabalho da solução hermeneuticamente mais adequada que é a do reconhecimento desses direitos trabalhistas, seja através de relação de emprego, seja através de contratos de prestação de serviço, invertendo a lógica hermenêutica predominante no Brasil que tem proporcionado aquilo que Lênio Streck chamou de “baixa constitucionalidade”. Assim, especialmente em relação ao Poder Judiciário, poderia se dizer que a extinção do processo em que se busca o reconhecimento desses direitos trabalhistas por carência de ação (impossibilidade jurídica do pedido), por exemplo, restaria inviabilizada em face deste entendimento e em homenagem ao princípio processual da instrumentalidade das formas.

A adoção do entendimento propugnado pelo presente estudo, mais consente com a Constituição Federal, proporcionaria maior eficácia aos direitos fundamentais das trabalhadoras (e trabalhadores) desse setor social, ao conferir-lhes a maximização da cidadania, valor essencial da democracia, consequentemente minimizando aspectos relacionados à estigmatização dessas pessoas, que por sua vez está intrinsecamente relacionada à violência existente contra quase todo este segmento.

Portanto, a necessária transformação da sociedade propugnada pela Constituição Federal em uma sociedade mais justa e solidária, com a promoção da justiça social, dos valores sociais do trabalho, da pluralidade de pensamento e outros, passa inicialmente pela contenção da violência estatal resultante de interpretações jurídicas equivocadas, como a que não reconhece os direitos trabalhistas das profissionais do sexo.

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Sobre o autor
Brunno Manfrin Dallossi

Auditor Fiscal do Trabalho em Florianópolis (SC). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DALLOSSI, Brunno Manfrin. Direitos trabalhistas das profissionais do sexo: uma questão de princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3075, 2 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20541. Acesso em: 16 abr. 2024.

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