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Intersecção entre Direito Administrativo disciplinar e Direito Penal.

Uma visão garantista do ilícito administrativo disciplinar

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15/01/2012 às 08:46
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2.INTERSECÇÃO ENTRE DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E DIREITO PENAL

O direito administrativo sancionador se conecta com os mais diversos ramos do direito.

(...) guarda relações com o direito civil (noções de domicílio, de pessoa jurídica), constitucional (princípios e garantias constitucionais incidem diretamente no processo administrativo disciplinar, como do juiz natural, da irretroatividade da norma penal, da inadmissibilidade de provas ilícitas, do contraditório e da ampla defesa, do devido processo legal, da legalidade, moralidade, eficiência, publicidade, etc), penal (conceito de crime contra a Administração Pública como falta disciplinar passível de pena demissória, contagem da prescrição das faltas administrativas pelos prazos prescricionais do Código Penal - art. 142, Lei federal n. 8.112/1990, idéias de excludentes de ilicitude e de culpabilidade, inimputabilidade, etc), processual civil e penal (procedimentos em audiências e para coleta de provas, etc), comercial (conceitos de comércio e gerência, de atividade comercial incompatível com a função pública, para fins de demissão do agente transgressor), dentre outros tantos exemplos (grifo nosso). [20]

Todavia é perceptível pela leitura da bibliografia colacionada, que a maior aproximação se dá sobremaneira com o Direito Penal, enquanto ramos do direito público de caráter punitivo.

Sem requerer aprofundamento nos temas, mas apenas para corroborar a dimensão em que se dá essa intersecção, é que, não exaustivamente, listamos institutos em que o Direito Administrativo Disciplinar tem o Direito Penal (material e processual) como fonte:

a) Código Penal:

- dos arts. 330 e 342, acerca dos crimes de desobediência e de falso testemunho,

- dos arts. 151 e 153, acerca dos crimes de revelação de correspondência e de revelação de segredo,

- do art. 26, acerca de inimputabilidade,

- dos arts. 69 e 70, acerca de concursos de normas ou de infrações,

- dos arts. 18 a 26, acerca da definição analítica de crime,

- dos arts. 92 e 312 a 326, acerca de crimes contra a administração pública e do efeito acessório da condenação penal de perda do cargo,

- do art. 63, acerca de reincidência,

- dos arts. 109 e 110, acerca de prescrição criminal, e

- do art. 107, acerca de extinção da punibilidade.

b) Código de Processo Penal:

- do art. 20, acerca de sigilo em sede investigativa,

- do art. 80, acerca de desmembramento,

- dos arts. 563 a 565, acerca de nulidade,

- dos arts. 111 e 112, acerca dos incidentes de suspeição e de impedimento,

- dos arts. 353, 360 e 362, acerca de notificações ou de citações por precatória, de réu preso e com hora certa,

- dos arts. 156 e 386, VI, acerca do ônus probante e da absolvição por ausência de provas,

- do art. 236, acerca de tradução,

- dos arts. 202 a 224, acerca de oitiva de testemunhas,

- do art. 226, acerca do reconhecimento de pessoas ou de coisas,

- dos arts. 159 e 174, acerca de perícias,

- dos arts. 229 e 230, acerca de acareação,

- do art. 157, acerca de provas ilícitas,

- dos arts. 151 e 153, acerca de vedação à violação das comunicações telefônicas,

- dos arts. 185, 186, 190 e 197a 200, acerca de interrogatório, dos direitos de o acusado não fazer prova contra si mesmo e de se manter calado e de confissão,

- dos arts. 149 a 152, acerca do incidente de insanidade mental,

- do art. 497 do CPP, acerca de defesa inepta,

- dos arts. 383 e 384, acerca de alteração de enquadramento, e

- dos arts. 65 e 935, acerca de independência das instâncias.

Nesta seção trataremos dos aspectos que se inter-relacionam nesses dois universos jurídicos, privilegiando, em função da dimensão desta obra, as temáticas voltadas para o objetivo principal do trabalho.

Apesar de o título poder sugestionar, não é o propósito abordar os crimes praticados pelo servidor público, em sua dimensão penal, (por exemplo, crimes contra a administração pública dos arts. 312 a 326 do CP e os crimes contra a ordem tributária do art. 3º da Lei nº 8.137, de 27/12/90, abuso de autoridade, conforme definidos nos arts. 3º e 4º da Lei nº 4.898, de 09/12/65.) senão apenas nos aspectos em que tiverem reflexo no mundo processual disciplinar.

Os atos funcionais cometidos por servidor que podem ser considerados crimes não serão administrativamente apurados como tal - como crimes - em função da independência das instâncias, da harmonia entre os Poderes e das competências exclusivas de cada Poder. Não se aceita que uma comissão disciplinar, no termo de indiciação ou no relatório de um processo administrativo disciplinar, enquadre o ato funcional infracional que também configura crime no dispositivo da lei penal, sob pena de sobrestar a instância administrativa até a manifestação definitiva da sede penal, exclusivamente competente para tal. Mas isso não significa que tais atos restem impunes na sede administrativa. Ao contrário, se o ato associado ao exercício do cargo público comporta tal gravidade e reprovabilidade social a ponto de configurar crime, também configurará ilícito administrativo disciplinar e, dentro dessa definição e com o devido processo legal da Lei nº 8.112, de 11/12/90, é que será administrativamente apurado e, se for o caso, penalizado, com enquadramento em algum dos incisos dos arts. 116, 117 ou 132 dessa Lei (grifo nosso). [21]

2.1.ILÍCITO PENAL E ILÍCITO ADMINISTRATIVO

De início, convém introduzir a temática abordando a análise de Aníbal Bruno, que trata da tentativa de encontrar diferenças entre os ilícitos civis e penais, e que se pode aplicar também na compreensão da adequada dimensão do ilícito administrativo:

Antes de tudo o problema fora mal formulado: o que se buscava era inexistente, não há diferença em substância entre ilícito penal e ilícito civil. O que os distingue é antes questão de grau que de essência. Todo ilícito é uma contradição à lei, uma rebelião contra a norma, expressa na ofensa ou ameaça a um bem ou interesse por esta tutelado. A importância social atribuída a esse bem ou interesse jurídico é, em grande parte, o que determina a natureza da sanção – civil ou penal. É uma questão de hierarquia de valores. Ao legislador é que cabe, tomando em consideração condições do momento, fixar que espécie de bens jurídicos devem ser elevados à tutela penal, e, portanto, a que determinados fatos se atribuirá o caráter de crime. Mas afinal a pena é um recurso extremo de que se vale o legislador quando de outro modo não lhe seria possível assegurar a manutenção da ordem jurídica. A sua oportunidade é marcada pela insuficiência da sanção civil (grifo nosso). [22]

Assim também é o entendimento de Nelson Hungria. Para o autor é irreal a distinção ontológica entre ilícito administrativo e ilícito penal, pois

conforme acentua Beling, a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau: está na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com a outra. O ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal. [23]

Na mesma trilha Cretella Jr.:

No campo do direito, o ilícito alça-se à altura de categoria jurídica e, como entidade categorial é revestida de unidade ôntica, diversificada em penal, civil, administrativa, apenas para efeito de integração, neste ou naquele ramo, evidenciando-se a diferença quantitativa ou de grau, não a diferença qualitativa ou de substância. Deste modo, o ilícito administrativo caminha em plano menos elevado do que o ilícito penal, é um minus em relação a este, separando-os o matiz de oportunidade conveniência, avaliado pelo critério axiológico, possível na esfera discricionária do administrador e do magistrado, contingente ao tempo e às áreas geográficas (grifo nosso). [24]

Complementando a análise dessa distinção, que, como exposto, não é de substância e sim de grau, vejamos algumas lições acerca do instituto que representa essa quantificação, consubstanciado no bem jurídico tutelado.

Conforme ensina Luiz Regis Prado:

Assim, originariamente, com base na mais pura tradição neokanista, de matiz espiritualista, procura-se conceber o bem jurídico-penal como valor cultural – entendida a cultura no sentido mais amplo, como um sistema normativo. Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam como em necessidades individuais. Estas se convertem em valores culturais quando são socialmente dominantes. E os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica. [25]

Os bens jurídicos são preexistentes ao direito, são bens da vida. Esse é o magistério de Arturo Rocco:

(...) como o bem, antes de ser jurídico, é um bem da vida humana individual e social, e o interesse, antes de ser jurídico, é um interesse humano, assim, o conceito de bem, antes de ser jurídico, é um conceito sociológico ou psico-sociológico (...). [26]

Ainda de acordo com Luiz Flávio Gomes: "Não é reduzido o grupo de doutrinadores que afirmam que a constituição é o referencial mais idôneo para que a teoria do bem jurídico venha a cumprir uma função crítica e limitadora do jus puniendi" (grifo nosso). [27]

É imperiosa a necessidade de se tutelar valores constitucionais a fim de legitimar qualquer ato jurídico. Não pode ser diferente nos atos emanados no bojo do processo administrativo disciplinar, seja pela comissão processante, seja pela autoridade instauradora/julgadora.

Ensina Salo de Carvalho que:

A estrutura arquitetônica piramidal elaborada por Kelsen, cuja concepção é cerrada sob a visualização da constituição lógico-formal e direcionada ao interior do sistema jurídico estatal, inverte-se e amplia-se, voltando seu olhar tanto para o interno quanto para os novos valores e princípios abstratos advindos do exterior. Trata-se de legitimidade que provem de fora ou, nas palavras de Ferrajoli, de um modelo heteropoiético de legitimação do direito – legitimità dal basso. O interessante é notar que esta legitimidade externa conforma sua nova estrutura escalonada dos ordenamentos jurídicos, não mais referendados por princípios e valores jusnaturalistas (metajurídicos), mas por instrumentos legais positivados pelos Estados signatários das declarações de direitos (grifo nosso). [28]

2.2.PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS

Não poderia ser o objetivo desse texto o esgotamento da análise dos princípios reitores do processo administrativo disciplinar. O rol é amplo, pois vai desde os princípios gerais de direito, passando pelos princípios constitucionais reitores da administração pública.

Como o escopo do presente trabalho são as conexões entre o direito administrativo disciplinar e o direito penal, é sobre os princípios constitucionais regentes deste último ramo com reflexos sobre a tese defendida que nos ocuparemos.

2.2.1.Normas Jurídicas

As normas jurídicas são compostas por duas categorias, a saber: os princípios e as regras. Dos princípios extraem-se mandamentos que perpassam todo o ordenamento jurídico e tem abrangência e abstração muito maiores que as regras.

Conforme destaca Celso Antônio Bandeira de Mello:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, (...) no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônio (...). Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma (...); É a mais grave ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. [29]

Na mesma linha o mestre José Armando da Costa:

Não obstante, destaque-se que os princípios jurídicos são bem mais importantes do que as normas escritas, razão por que é bastante correto dizer que se afronta muito mais o direito quando se desacata um dos seus princípios do que quando se desatende a uma de suas normas textuais, posto que uma regra expressa contém apenas uma diretiva, enquanto que um princípio encerra um conteúdo informador e formador de várias normas. [30]

Caso haja colisão entre duas regras, deve-se optar por apenas uma a ser aplicada ao caso concreto. Já os princípios comportam aplicação simultânea devendo se reconhecer apenas que um deles deve obter maior relevância frente ao outro.

Nesse sentido observam Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:

A ponderação de valores, interesses, bens ou normas consiste em uma técnica de decisão jurídica utilizável nos casos difíceis, que envolvem a aplicação de princípios (ou, excepcionalmente, de regras) que se encontram em linha de colisão, apontando soluções diversas e contraditórias para a questão. O raciocínio ponderativo, que ainda busca parâmetros de objetividade, inclui a seleção de normas e de fatos relevantes, com a atribuição de pesos aos diversos elementos em disputa, em um mecanismo de concessões recíprocas que procura preservar, na maior intensidade possível, os valores contrapostos. [31]

2.2.2.Princípio da Intervenção Mínima

Perseguir esse princípio é admitir que o direito penal só deva entrar em ação em graves ofensas a bens jurídicos por demais importantes, quando não albergados satisfatoriamente por outros ramos menos invasivos ao direito do cidadão.

O direito penal é concebido como ultima ratio do Estado para tutelar um bem jurídico, a fim de que não sejam atingidos direitos fundamentais. Este princípio também é conhecido como princípio da subsidiariedade.

Pertencendo também ao ramo de direito público punitivo e visando tutelar bens jurídicos, que embora menos amplos, não podem ser vistos sempre como menos relevantes; ao direito administrativo disciplinar deve sim se estender a cautela proposta pelo principio da intervenção mínima.

Na esteira de tal entendimento é que se defende a tese de aplicação subsidiária da sede administrativa disciplinar em relação a outros remédios jurídicos ou de gestão no âmbito da administração pública (conforme subseção 3.3.1).

2.2.3.Princípio da Lesividade ou Ofensividade

Também denominado de princípio da exclusiva proteção a bens jurídicos, traduz a necessidade de ofensa efetiva a bem jurídico, não bastando a incidência em caso de conduta apenas formalmente típica, mas inofensiva.

Segundo Francesco Palazzo:

A afirmação do princípio de lesividade como indicação tendente a evitar que, em sua complexidade, o sistema se afaste de balizas de um direito penal da ofensa, é comum a todos os ordenamentos examinados. Deve-se, todavia, observar que o princípio se fez objeto de maior atenção e particular sistematização científica por parte da doutrina italiana, que bem lhe precisou a autonomia conceitual e o específico significado político-constitucional por intermédio de uma acurada reconstrução das referências normativo-constitucionais que o fundamentam. [32]

Na lição de Luiz Flávio Gomes:

Por força do princípio da ofensividade resulta impossível ao legislador configurar como delito uma mera desobediência ou uma simples transgressão de uma norma ou de um dever jurídico. Nem sequer é delito a conduta formalmente típica, mas sem nenhum resultado ofensivo. [33]

A cerca do princípio da ofensividade, nos valemos ainda da teoria do mestre Italiano Luigi Ferrajoli:

Este cânone tem o valor de critério polivalente de minimização das proibições penais. Ele equivale a um princípio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário e, com isso, reforçar a sua legitimidade e fiabilidade, pois, se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de qualquer relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos reparáveis, e à de ilícito administrativo todas as violações de normas administrativas, os fatos que lesionem bens não essenciais ou que são, só em abstrato, presumidamente perigosos. [34]

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2.2.4.Princípio da Legalidade

Apesar de não ser o principio da legalidade uma especificidade dos ramos em análise (direito penal e direito administrativo disciplinar), não poderia deixar de expor nossa visão crítica acerca desse princípio.

Embora seja um princípio fundamental, não pode este se sustentar sozinho de modo dissociado dos demais princípios gerais e específicos.

Escorado, principalmente, no art. 2º, parágrafo único, inciso I, da Lei nº 9.784, de 29/01/99, que estabelece que no processo administrativo, se atuará conforme a lei e o direito; não podemos ver o principio da legalidade como mandamento para um inquestionável e submisso acatamento da fria literalidade da lei.

Lei nº 9.784/99 - Art. 2º (...)

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

I - atuação conforme a lei e o Direito (grifo nosso);

Na aplicação do princípio em questão não se pode desprezar outros tantos como o da razoabilidade e da proporcionalidade, além de questões essenciais como senso de justiça e interesse publico. É ver a legalidade não apenas como uma legalidade formal, mas buscar enxergá-la em sua materialidade.

Afinal, na aplicação da lei, principalmente aquela capaz de ferir direitos arraigados do cidadão-servidor, deve-se sempre auferir a uma interpretação consoante o método teleológico, buscando atender aos fins sociais para os quais a lei foi editada, conforme preceitua o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: "LICC - Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

2.2.Principio da Reserva Legal e da Anterioridade e Irretroatividade da Lei Penal

Aberto tópico apenas para frisar que os princípios em tela, assentam-se perfeitamente ao direito administrativo disciplinar. Não há possibilidade de imputar responsabilidade disciplinar com aplicação da penalidade respectiva, para além das previstas no estatuto do servidor.

Também tem reflexo em sede disciplinar a irretroatividade da lei, em caso de inovação legislativa, salvo, é claro, a retroatividade benigna.

2.2.5Principio da insignificância

Tendo sua sede na esfera penal, a fim de atender ao princípio da insignificância, defende Damásio que, "o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves". [35]

Verifica-se assim que, ao ver-se sacudido pelo princípio da insignificância, o fato torna-se atípico, pois afastada estará a tipicidade material.

Rogério Greco, [36] escorado na douta visão de ZAFFARONI, leciona que a tipicidade penal é formada pela tipicidade formal e pela tipicidade conglobante, estando esta última subdividida em:

a)conduta antinormativa;

- contrária à norma penal, e

- não imposta ou fomentada por ela; e

b)ofensiva a bens de relevo para o direito penal, (tipicidade material).

Portanto, sendo insignificante o bem ofendido excluída estará a tipicidade material e consequentemente a tipicidade de forma geral, não se podendo a partir de então considerar mais o fato como criminoso.

Conclui-se assim, que se reconhecendo o princípio da tipicidade no âmbito do direito administrativo disciplinar, como se defenderá adiante (subseção 2.3), este, por conseguinte sofrerá afetado também pelo princípio da insignificância ou da bagatela.

Da mesma forma que não se pode lançar mão do Direito Penal para coisas insignificantes, assim também para o Direito Administrativo Disciplinar. "Não se mata um mosquito com um canhão". [37]

Não significa que o fato sem lesividade não vá ser objeto de intervenção pela a administração. Porém, outros mecanismos (jurídicos ou de gestão) devem ser suficientes para solucionar o caso, sem carecer lançar mão do direito punitivo, consubstanciado nos processos administrativos disciplinares.

O jus puniendi no âmbito administrativo só deve ser exercitado em hipóteses com significância, sob pena de intoxicação do serviço público com um remédio em dose amarga e acima da recomendada.

Indo além, acabamos por concluir que tal princípio se faz ainda mais necessário nos ilícitos administrativos, por compreender um espectro maior de lesividade do que nos ilícitos criminais. Explico: enquanto ao direito penal importa à persecução de condutas de maior grau de afronta aos bens jurídicos tutelados; ao direito administrativo disciplinar cabe perquirir um amplo universo de gravidade de infrações, estando a analisar condutas tais como pontualidade, urbanidade, presteza no atendimento, todas em grande maioria ensejadoras de lesividade inexpressiva ao interesse público.

2.3.TIPICIDADE DO ILÍCITO DISCIPLINAR

O majoritário entendimento da doutrina pátria ainda é que os ilícitos penais são típicos e os ilícitos administrativos são atípicos. Tal fato encontraria respaldo e conexão com a discricionariedade de que é dotada parte do poder estatal.

Segundo essa corrente, "basta que a lei defina genericamente a infração, para que a autoridade administrativa aplique a pena, usando nessa aplicação, de uma larga margem de poder discricionário, tal como definido e justificado". [38]

Nessa linha, Fábio Medina Osório ministra:

Como se vê, a garantia da tipicidade não pode ser interpretada em dissonância com o princípio da segurança jurídica, tendo em conta, sempre, a dinâmica interna do Direito Administrativo Sancionador, que é diferente do Direito Penal, mas guarda raízes comuns com a normativa que preside o Direito Público Punitivo. Essas peculiaridades do terreno administrativo admitem uma tipicidade proibitiva mais ampla, genérica, tendo por referência o comando legislativo, mas também exigem coberturas normativas que induzam à previsibilidade dos comportamentos proibidos.

Resulta clara a possibilidade de uso de normas em branco, cujos preceitos primários são incompletos, carentes de uma integração normativa, em matéria de Direito Administrativo Sancionador, até porque tal técnica não constitui novidade nos sistemas punitivos comparados e nacional. (...)

Conceitos ou termos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais serão instrumentos comumente utilizados no Direito Administrativo Sancionador, especialmente nos casos em que há relações de sujeição especial envolvendo agentes públicos, visto que nesses casos há peculiaridades ligadas à necessária tipicidade permissiva da conduta dos agentes públicos. Assim, uma norma proibitiva de comportamento de agente público resulta indissoluvelmente ligada à norma permissiva, vale dizer, ao princípio da legalidade positiva, visto que o agente público somente pode atuar com suporte em comandos legais. Não é raro, portanto, que, em casos como esses, o legislador utilize tipos proibitivos bastante amplos, genéricos, sem vulnerar a garantia da tipicidade, da lex certa, porque o Direito Administrativo Sancionador pode apanhar relações de sujeição especial em que se encontrar envolvido um agente público. No terreno disciplinar, tais relações assomam em importância e intensidade, diante dos valores protegidos pelo Estado e da especialidade intensa das relações (grifo nosso). [39]

Também pela atipicidade do ilícito disciplinar, a professora Maria Sylvia Zanella DI PIETRO:

No direito administrativo prevalece a atipicidade. São muito poucas as infrações descritas na lei, como ocorre com o abandono de cargo. A maior parte delas fica sujeita à discricionariedade administrativa diante de cada caso concreto; é a autoridade julgadora que vai enquadrar o ilícito como ‘falta grave’, ‘procedimento irregular’, ‘ineficiência no serviço’, ‘incontinência pública’, ou outras infrações previstas de modo indefinido na legislação estatutária. Para esse fim, deve ser levada em consideração a gravidade do ilícito e as conseqüências para o serviço público (grifo nosso). [40]

Como já se alertou outrora, mesmo que se adotasse tal entendimento, não caberia ao administrador se utilizar desse poder-dever a ele atribuído para lançar-se à arbitrariedade e abuso de poder, sob pena de ter seu ato apreciado pelo Poder Judiciário:

Origem: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO

Classe e nº da decisão: Apelação Cível nº 100.1131.417

Nº do processo original e UF: 199901001131417 - DF

Data da decisão: 27/04/00

EMENTA: Administrativo. Sanção disciplinar. Exame judicial. Possibilidade. Advertência. Ausência de indisciplina. Desvio de finalidade.

1. Cabe ao Poder Judiciário apreciar os atos administrativos, para aferir a sua conformidade com a lei, inclusive no que se refere ao mérito administrativo, desde que, sob esse rótulo "se aninhe qualquer ilegalidade resultante de abuso ou desvio de poder" (Hely Lopes Meirelles, 21ª edição, pg. 138).

2. Nulo, portanto, o ato administrativo consubstanciado na penalidade de advertência, se o julgamento não se ateve aos critérios objetivos fixados na Lei nº 8.112/90 (arts. 116, XI e 127 e 129).

3. Inexistência, outrossim, de elementos fáticos que autorizem, no caso, a caracterização de ausência de urbanidade no trato com as pessoas, a possibilitar a pena de advertência nos termos do art. 116, XI, da Lei 8.112/90.

4. Robusta prova testemunhal confirmando a lhaneza da servidora no trato social com seus colegas e superiores hierárquicos (grifo nosso).

Em homenagem a essa situação de proteção minimizada do servidor, é que alguns doutrinadores vêm defendendo a aproximação da seara administrativa disciplinar da sede penal. Assim, Barros Junior, proclama:

As modernas legislações oferecem, aliás, aos acusados, suficientes garantias de objetividade, no procedimento para a apuração das faltas disciplinares. A propósito deste aumento de proteção, alude-se à tendência jurisdicionalizante do processo disciplinar, que consistiria, precisamente, na adoção das formas e meios da repressão penal e conseguinte diminuição do poder discricionário das autoridades, nesse assunto (grifo nosso). [41]

O Direito Administrativo Sancionador, no que se refere à previsão da conduta ilícita e das penas cabíveis, possui natureza de direito penal geral, enquanto visa a inibir determinadas condutas nocivas ao desenvolvimento da administração pública.

Ainda, é sabido que algumas penas previstas no Estatuto do Servidor ultrapassam e muito em impacto na vida do cidadão quando comparadas aquelas infrações penais de menor potencial ofensivo, por exemplo.

Some-se a isto o fato de que durante o processo administrativo disciplinar o Estado-administração atua como vítima, parte e Juiz e teremos o servidor acusado em posição de total inferioridade no que se refere a garantias de direito material e processual, comparados com o delinquente penal.

Em que pese à laboriosa doutrina na defesa do princípio da atipicidade disciplinar, [42] vislumbra-se aqui a necessidade premente de avanço na forma de análise da conduta no que podemos chamar de tipo disciplinar.

O tipo disciplinar não autoriza ilação preguiçosa e descuidada no sentido de complementar a indeterminação da conduta para o prejuízo do servidor. O que se deve operar sim é apropriação dessa característica, a fim de respeitar ainda mais as garantias constitucionais do acusado em processos disciplinares.

Se no tipo penal, que por característica principal tem sua especificidade, é necessário ainda percorrer um homérico percurso, ultrapassando as "barreiras" da tipicidade (em todos os seus elementos), da antijuridicidade e da culpabilidade, não pode o julgador administrativo se abstrair de tais análises ao decidir sobre a vida funcional do servidor, muitas vezes até quanto ao seu fim, como no caso de demissão.

O escopo do presente trabalho foi delimitado a abarcar o universo dos servidores públicos civis federais. Assim, as condutas ilícitas nessa esfera estão prevista no Título denominado Regime Disciplinar da Lei nº 8.112/90, contendo descrições normalmente abertas e flexíveis.

Baseado nesse aspecto é que a doutrina comumente sustenta estarem os ilícitos disciplinares afetados pelo princípio da atipicidade. Desprezando outras repercussões da aplicação do princípio em comento, nos concentremos no que se refere ao afastamento da análise dos elementos objetivos, subjetivos e normativos do tipo disciplinar, sob o manto da discricionariedade administrativa.

Entretanto, sopesando os argumentos dos nobres administrativista, não nos resta o convencimento nesse sentido, principalmente nos casos de faltas graves e gravíssimas, [43] pois tal discricionariedade não proporciona uniformidade nas decisões, dificultando a apuração de possível abuso de poder na prática do ato administrativo de julgamento.

Tal situação afronta ao devido processo legal material e ao principio da igualdade, pois dá margem a aplicação de penas distintas para iguais condutas e punições similares para casos distintos.

Adiante Luiz Flávio Gomes leciona a cerca do substantive process of law:

De nada adianta estabelecer limites formais à atuação estatal, se ela não conta com barreiras no precioso momento da formulação dessas mesmas regras jurídicas, primordialmente as que se destinam a restringir a liberdade das pessoas. Justo ou devido, portanto, deve ser não só o processo, senão também o próprio procedimento de elaboração da lei [ ou de qualquer outro ato normativo] , seja no aspecto formal, seja no substancial (material), porque o legislador não pode transformar em ‘processo devido’ o que é, por natureza, arbitrário, desproporcional, indevido. (...) Toda pessoa tem o direito de reivindicar não somente que qualquer restrição a sua liberdade ou propriedade ocorra rigorosamente consoante os ditames legais (judicial process), senão sobretudo que o legislador observe o valor de justiça também no momento da construção dessas normas [ ou dos seus atos] , de tal modo a impedir-lhe que crie um arbitrário e injusto conjunto normativo (substantive process). (...) O significado essencial do substantive process of law (aspecto material) previsto no art. 5.° da Cf consiste em que todos os atos públicos devem ser regidos pela razoabilidade e proporcionalidade, incluindo-se primordialmente a lei [ ou qualquer outro ato emanado do poder legislativo] , que não pode limitar ou privar o indivíduo dos seus direitos fundamentais sem que haja motivo justo, sem que exista razão substancial (grifo do autor). [44]

Seguindo na crítica à indeterminação conceitual dos tipos disciplinares, agressora também do princípio da segurança jurídica, nos valemos das lúcidas lições a seguir. Heleno Taveira Tôrres pontua:

(...) e um direito será definido como ‘seguro’ quando dele possa decorrer previsibilidade, pela certeza, previsibilidade, legalidade, respeito à hierarquia normativa e publicidade, e quando fique garantida a isonomia, a irretroatividade do não favorável, e a interdição da arbitrariedade. Com isso, figuram como inteiramente incompatíveis atuações discricionárias da Administração, bem como o uso de conceitos indeterminados (grifo nosso). [45]

Na mesma senda o insigne Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

O princípio da segurança jurídica, elemento fundamental do Estado de Direito, exige que as normas restritivas sejam dotadas de clareza e precisão, permitindo que o eventual atingido possa identificar a nova situação jurídica e as conseqüências que dela decorrem. Portanto, clareza e determinação significam cognoscibilidade dos propósitos do legislador (grifo nosso). [46]

Consolidando os apontamentos até aqui delineados, se está a defender, com base nos fundamentos propostos, a limitação da discricionariedade na decisão da autoridade julgadora em sede disciplinar, escondido sob o manto da indeterminação dos tipos disciplinares, sob pena de ferir garantias fundamentais consignadas na Constituição Federal, consubstanciado no devido processo legal material.

Ementa: (...) O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida estatal - que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos - exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos (grifo nosso). [47]

Todavia, com a alteração do quadro só podendo vir com a atuação do legislador ordinário ou com a declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos presentes na Lei nº 8.112/90, seguimos na proposição de aproximar doutrinariamente, cada vez mais, o Direito Disciplinar do Direito Penal.

Rogerio Greco pontifica:

A certeza da proibição somente decorre da lei. O princípio da reserva legal não impõe somente a existência de uma lei anterior ao fato cometido pelo agente, definindo as infrações penais. Obriga, ainda, que no preceito primário do tipo penal incriminador haja uma definição precisa da conduta proibida ou imposta, sendo vedada, portanto, com base em tal princípio, a criação de tipos que contenham conceitos vagos ou imprecisos. A lei deve ser, por isso, taxativa. Exemplo de tais conceitos vagos ou imprecisos seriam encontrados naqueles tipos penais que contivessem em seu preceito primário a seguinte redação: ‘São proibidas quaisquer condutas que atentem contra o interesse da pátria.’ O que isso significa realmente? Quais são essas condutas que atentam contra o interesse da pátria? O agente tem de saber exatamente qual a conduta que está proibido de praticar, não devendo ficar, assim, nas mãos do intérprete, que dependendo do momento político pode, ao seu talante, alargar a sua exegese, de modo a abarcar todas as condutas que sejam de seu exclusivo interesse (nullum crimen nulla poena sine lege certa), como já aconteceu na história do direito penal no período da Alemanha nazista e da Itália fascista (grifo do autor). [48]

Sandro Lúcio Dezan, adaptando a doutrina de GRECO relacionada ao princípio da legalidade para o Direito Administrativo Disciplinar, propõe a:

- proibição da retroatividade da lei. (nullum sanctio iuris sine lege praevia);

- proibição de criação de ilícitos administrativos e penas pelos costumes. (nullum sanctio iuris sine lege scripta);

- proibição do emprego da analogia para definir ilícitos administrativos e fundamentar ou agravar penas. (nullum sanctio iuris sine lege stricta);

- proibição de incriminação vagas e indeterminadas. (nullum sanctio iuris sine lege certa). [49]

Ratificando, assim como no direito penal, os tipos disciplinares vagos e indeterminados não se coadunam com os princípios elencados supra, por ofender aos direitos e garantias fundamentais albergados pela Carta da República.

A fim de concretizar o tema, confrontamos dois tipos disciplinares, ambos ensejadores da pena capital ao servidor (demissão); respectivamente, exemplos do que deveria e do que não deveria ser a tipificação de um ilícito administrativo disciplinar:

a)Art. 132, inciso VII da Lei 8.112/90:

"ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem".

b)Art. 132, inciso V da Lei 8.112/90:

"incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição".

No primeiro caso, presente um verdadeiro tipo-total de injusto, rico em elementos objetivos descritivos (ofensa física, em serviço), normativos (a servidor ou a particular) e excludentes de ilicitude no próprio tipo (salvo em legítima defesa própria ou de outrem).

Para um melhor entendimento, seguem algumas definições da lavra do mestre Guilherme de Souza Nucci, [50] acerca dos elementos do tipo:

a) objetivos descritivos: "são todos aqueles que não dizem respeito à vontade do agente (...), passíveis de reconhecimento por juízos de realidade (sentidos humanos)".

b) objetivos normativos: "desvendáveis por juízos de valoração (...), distante da mera descrição de algo (...). Juízos de valoração jurídica".

c) tipo-total de injusto: "é o tipo que congrega, na sua descrição (...) as causas de justificação" (... salvo em legítima defesa própria ou de outrem).

Seguindo na crítica, no segundo exemplo, ocorre total indeterminação dos elementos e consequentemente alargada demasiadamente a margem de discricionariedade ao julgador.

Sujeitar-se a tais tipos disciplinares afronta sobremaneira os princípios constitucionais da segurança jurídica, da igualdade e do devido processo legal substancial, por deixar o cidadão-servidor refém de aspectos alheios ao universo jurídico, tais como a formação e moralidade do julgador, bem como cultura e costume regional.

Em conclusão parcial, filiamo-nos aos argumentos do jurista Romeu Felipe Barcelar Filho, que aceita a aplicação do princípio da tipicidade no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar, pelo que nos permitimos transcrever trecho de festejada obra, in verbis:

Nesse sentido, cabe citar alguns dispositivos da Lei n.° 8.112/90: ‘insubordinação grave ao serviço’ (art. 132, inc. IV), ‘incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição’ (art. 132, inc. V), ‘corrupção’ (art. 132, inc. XI), dever de ‘exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo’ (art. 116, inc. I). Como qualificar escândalo, zelo ou dedicação?

A abertura legislativa está presente não somente na definição da conduta ilícita, mas também na aplicação da sanção, como exemplifica o art. 128 – ‘Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais’; o § 2.° do art. 130 – ‘Quando houver conveniência para o serviço, a penalidade de suspensão poderá ser convertida em multa, na base de 50% (cinqüenta por cento) por dia de vencimento ou remuneração, ficando o servidor obrigado a permanecer em serviço’. Como ponderar os elementos natureza/gravidade/dano/agravantes/atenuantes? Como identificar conveniência ou inconveniência?

A Constituição de 1988 não se compatibiliza com afirmação do tipo ‘no Direito Administrativo Disciplinar admite-se a atipicidade da infração e a ampla discricionariedade na aplicação da sanção, que é renunciável pela Administração, possibilidade inconcebíveis em Direito Penal’. Afinal, o princípio da reserva legal absoluta em matéria penal (5.°, XXXIX, da Constituição Federal) – nullum crimen, mulla poena sine lege – estende-se ao direito administrativo sancionador.

(...) Para Marçal JUSTEN FILHO, a compreensão segundo a qual a competência punitiva é discricionária mostra-se incompatível com o Estado democrático de Direito. Afinal, ‘não se admite, numa democracia, que o Estado receba competência para impor punições àqueles que ‘agirem mal’ ou ‘descumprirem seus deveres’. Essas cláusulas genéricas retratam poderes não delimitados, que põem em risco valores constitucionalmente tutelados.

(...) ‘Na doutrina espanhola, Eduardo GARCIA DE ENTERRÍA e Tomás RAMON FERNANDEZ incluem a tipicidade entre os princípios do direito administrativo sancionatório, a exigir descrição legal de uma conduta específica conectada a um sanção administrativa e a vedar (i) cláusulas gerais ou indeterminadas de infração administrativa e (ii) aplicação analógica de normas definidoras de infrações ou sanções’(grifo nosso). [51]

2.4.TEORIA DA AÇÃO NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Tem-se inicialmente como pressuposto que inexiste diferença substancial entre os ilícitos previstos no diversos ramos do ordenamento jurídico, constituindo em categoria jurídica, e não "noção privativa de nenhum ramo do Direito, podendo assumir várias modalidades, conforme o aspecto das ciências jurídicas que, no caso, seja abordado". [52]

A necessidade de um ponto de partida decorre da divergência dos administrativistas, quanto às teorias aplicáveis na interpretação do operador do direito (autoridade, comissão, corregedorias) no bojo do processo administrativo disciplinar.

Temos tanto os defensores de que o direito administrativo carrega doutrina particular quanto à imputação disciplinar, [53] quanto os que apresentam uma proposta intermediária, trazendo para a seara disciplinar, institutos do direito penal. [54]

A doutrina clássica, influenciada pelo caráter absoluto da sanção, com origem em Hegel e Kant, sustenta que devem estar presentes três elementos para a constatação da imputação disciplinar:

O juízo pelo qual o magistrado imputa civilmente a um cidadão uma ação de antemão declarada, pela lei politicamente imputável, é, por sua vez, a decorrência de três diferentes juízos. O magistrado encontra naquele indivíduo a causa material do ato, e lhe diz: fizeste – imputação física. Acha que aquele indivíduo praticou tal ato com vontade inteligente, e lhe diz: fizeste voluntariamente – imputação moral. Verifica que aquele fato era proibido pela lei da cidade, e lhe diz: obraste contra a lei – imputação legal. É apenas em conseqüência dessas três proposições que o magistrado pode declarar o cidadão: Eu te imputo este fato como delito. [55]

Essa visão defendida por Carrara serviu de base para o desenvolvimento da teoria da imputação de crime no sistema causal, naturalista da ação, e psicológico da culpabilidade, aprimorada por Franz Von Liszt, que inseriu os elementos anímicos: dolo e culpa.

O avanço da Teoria causal da ação foi trazer a imputação pautada na responsabilidade subjetiva (dolo/culpa), seja na teoria tricotômica (conceito de crime), seja na teoria dicotômica (pressuposto de aplicação da pena).

Passando pelo sistema neoclássico de Reinhard Franck (erro de proibição / inexibilidade de conduta diversa), desaguou a teoria da ação no sistema finalista de Hans Welzel, que reordenou os elementos integrantes do conceito de crime.

Esse breve sobrevoo sobre as teorias da ação no direito penal, aplicáveis aos demais ramos do direito nos quais o Estado exercita seu jus puniendi, serve de introdutório para as críticas seguintes ao cenário atual do tema no âmbito do Direito Administrativo Disciplinar.

Embora muitos doutrinadores administrativistas já não enxerguem diferenças ontológicas entre os ilícitos administrativos e penais, custam ainda a transpor o avanço das teorias penalistas para o universo punitivo estatutário.

Ocorre que já há muito, com a égide da Constituição Cidadã, não mais se deve restringir as garantias presentes naquela carta à esfera penal, mas sim estender a todo Direito sancionador que limite os direitos do cidadão, incluindo-se aqui os servidores na condição de acusado em processos administrativos disciplinares.

Com efeito, insta deferir ao ilícito administrativo disciplinar a decorrência de um fato típico, antijurídico e culpável, a exemplo ilícito no direito penal, aferindo-se a conduta finalística dolosa ou culposa, dentro do fato típico, composto do resultado, do nexo causal e da tipicidade, sendo esta uma descrição fática legal, minuciosa e analítica (nullum sanctio juris sine lege certa), sem embargo das análises da antijuridicidade e da culpabilidade normativa. A culpabilidade deve ser formada pelos seguintes elementos: imputabilidade (regular situação do servidor público, investido no cargo ou na função sob o amparo de uma relação jurídica de direito material estatutária válida), exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude(grifo nosso). [56]

O direito administrativo disciplinar não deve se prestar a impor a sanção como simples meio de vingança da administração, carecendo a suplantação de visão retrógrada da autoridade julgadora, substituindo por uma postura garantista na análise da conduta do servidor acusado.

Assim, há de se refutar a imputação disciplinar pautada simplesmente na análise da imputação física, moral e legal, sistema pré-causal com análise incipiente e ao acaso dos elementos anímicos de forma implícita quando da análise da voluntariedade (Escola Clássica Italiana), para, com fins garantistas, visar à dignidade da pessoa humana e, com efeito, a certeza e a justiça do Direito, aplicando-se, destarte, teoria finalista do delito, de Welzel, ao ilícito em sede de Administração Pública Disciplinar.

Contudo, nada obsta que se aplique a teoria funcionalista moderada de Claus Roxin, inserindo a imputação objetiva quando da análise do primeiro elemento do conceito analítico de ilícito disciplinar. Essas novas possibilidades que se apresentam com a transposição de teorias desenvolvidas por estudiosos do Direito Penal só veem a ampliar de forma harmônica com a nossa Carta Magna o leque de direitos e garantias fundamentais do agente acusado de prática de ilícito (grifo nosso). [57]

Levantados esses aspectos relacionados à ilicitude administrativa, avancemos à consequência imediata da falta disciplinar: a sanção.

De início convém ressaltar que

as sanções disciplinares são meios de que dispõe o Estado para manter a boa ordem do serviço e para assegurar a observância dos deveres prescritos, porque a relação de serviço do direito público acarreta, necessariamente, fidelidade e devoção especiais e qualquer contravenção não representa que esse fato isolado tem importância muito maior, porque dele se podem inferir conclusões sobre a existência de sentimentos que estão de acordo com aquela exigência fundamental. [58]

Conforme a gravidade do fato será aplicada a sanção prevista. Aqui mais uma vez se apresenta a discricionariedade como elemento de ponderação.

O que se defende nessa obra, é a possibilidade de que o dispositivo que traz essa abertura seja aplicado também em momento anterior à aplicação da sanção.

Assim, embora com respaldo doutrinário e jurisprudencial ainda tímido no Brasil, como até aqui exposto, defende-se que já na análise inicial da autoridade, quando faz seu juízo de admissibilidade, seja o art. 128 da Lei nº 8.112/90, enquanto fundamento normativo, interpretado à luz de princípios da insignificância e lesividade; servindo, portanto, como verdadeira porta de entrada legal para a teoria garantista e constitucional do delito na seara disciplinar.

Art. 128. Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais.

Tal aferição se aproximaria da verificação da tipicidade material do direito penal, onde se levanta aspectos relacionados à lesividade e insignificância da falta já na análise da conduta. Ou seja, No mesmo rumo das mais modernas teorias penalistas, deve a apreciação do desvalor da ação do servidor supostamente irregular ser antecipado para fases anteriores e não apenas quando da aplicação da penalidade.

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Sobre o autor
Marcelo Aguiar da Silva

Policial Rodoviário Federal em Boa Vista (RR). Bacharel em Direito pela UFRR. Estudioso do Direito Administrativo Disciplinar, tendo atuado com autoridade julgadora, presidente de comissões e Corregedor Regional do DPRF/MJ em Roraima.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Aguiar. Intersecção entre Direito Administrativo disciplinar e Direito Penal.: Uma visão garantista do ilícito administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3119, 15 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20853. Acesso em: 29 mar. 2024.

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