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Intersecção entre Direito Administrativo disciplinar e Direito Penal.

Uma visão garantista do ilícito administrativo disciplinar

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15/01/2012 às 08:46
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3.UMA VISÃO GARANTISTA DO ILÍCITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

O tema Direito Administrativo Disciplinar é por deveras amplo e complexo. Não nos propomos a abarcar todos os aspectos desse tão intrincado braço do Direito Administrativo, senão o suficiente e necessário à complementação dos argumentos colacionados até aqui e que darão guarida aos fundamentos subsequentes.

Como introito, in verbis:

Direito Administrativo Disciplinar, como ramo do Direito Público, decorre da competência de a administração pública impor modelos de comportamento a seus agentes, com o fim de manter a regularidade, em sua estrutura interna, na execução e prestação dos serviços públicos. Nesse objetivo, o processo administrativo disciplinar é o instrumento legalmente previsto para o exercício controlado deste poder, podendo, ao final, redundar em sanção administrativa. A sanção legalmente prevista funciona para prevenir ostensivamente a ocorrência do ilícito e, acaso configurada, para reprimir a conduta irregular. Ou seja, o objetivo da sede administrativa disciplinar é manter e retomar o regular e eficiente funcionamento da administração pública federal. [59]

O que se intentará é demonstrar a necessidade de aplicação de, mais que uma visão, uma postura verdadeiramente garantista do Estado-administração diante de suposto ilícito administrativo disciplinar, no âmbito do Serviço Público Federal.

3.1.ASPECTOS INTRODUTÓRIOS

Nos termos do art. 24 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, os entes federativos ficaram obrigados a editar lei adequando-se ao novo texto constitucional. Em função disto, pela União, foi editada a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, denominada Estatuto ou Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis Federais.

Art. 24. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios editarão leis que estabeleçam critérios para a compatibilização de seus quadros de pessoal ao disposto no art. 39 da Constituição e à reforma administrativa dela decorrente, no prazo de dezoito meses, contados da sua promulgação.

De início há de se reconhecer certa frustração em virtude do desperdício de oportunidade de adequação do regime disciplinar dos servidores aos preceitos recém-estabelecidos na novel Constituição Cidadã.

Infelizmente, ao menos em matéria disciplinar não houve avanços com relação ao Estatuto dos Funcionários (Lei nº 1.711, de 28/10/52), o qual também reproduzia dispositivos de norma editada ainda durante o regime do Estado Novo (Decreto-Lei nº 1.713, de 28/10/39).

Tal situação já aponta preliminarmente que, ultrapassado no tempo, não poderia estar imune às críticas que receberá no presente trabalho. Sob o cochilo do legislador e vacilante jurisprudência é que ainda mais necessário se faz um papel de vanguarda da doutrina para corrigir tais desvios da norma com a realidade atual.

Da mesma forma que em outras sedes, o Direito Administrativo Disciplinar é composto de parte material e processual. O componente substancial é regulado pelo Título IV (Regime Disciplinar), arts. 116 a 142; e o instrumental encontra-se, precipuamente, no Título V (Processo Administrativo Disciplinar) arts. 143 a 182, tudo da Lei nº 8.112/90.

Enquanto no regime disciplinar encontra-se consubstanciado questões como o rol de infrações e penalidades aplicáveis, competência e prazos prescricionais; o processo define o rito, ou seja, proclama o procedimento com o encadeamento dos atos previstos, os quais podem se dar sob três diferentes ritos:

a)processo administrativo disciplinar stricto sensu (rito ordinário);

b)processo administrativo disciplinar stricto sensu (rito sumário); e

c)sindicância contraditória.

Essas duas faces (regime e processo) somam-se para compor o meio que o Estado-administração dispõe para exercer seu jus puniendi, reprimindo, mas também prevenindo as infrações capazes de abalar o regular desenvolvimento do serviço público.

O Estado, fazendo conhecer com caráter absolutamente legal e moral esta punição, adequada para a natureza da infração, ele, implicitamente, está fazendo também conhecer que possui inquestionavelmente a sua pretensão punitiva, e esta atua como que indiretamente numa verdadeira coação subjetiva de caráter genérico, quer para o agente potencial da infração estatutária, quer para o servidor público que, in concreto, cometeu um ilícito administrativo. [60]

3.1.1.Poder Disciplinar e Discricionariedade

Segundo Themístocles Cavalcanti, a "teoria do poder discricionário constitui um dos pontos essenciais da teoria e prática do poder disciplinar". [61]

Admitida a discricionariedade como um dos elementos presentes no poder disciplinar, reforça-se a defesa de que deixar a matéria disciplinar sujeita à discricionariedade desmedida do Estado é abrir espaço para o abuso e o excesso de poder. Assim,

convém insistir que o Estado tem a obrigação legal de exercer a sua força coercitiva para manter a disciplina no seu corpo diretivo em toda sua atividade funcional, porém insistimos, dentro desta obrigatoriedade legal, jamais poderá haver um laivo sequer de arbitrariedade pessoal ou diluída, porque, então, ela constituiria, inegavelmente, flagrante lesão de direito. É tão grande e tão importante esta obrigatoriedade do Estado em exercer o seu poder discricionário, que ela própria como que justifica e explica a existência concisa e concreta do direito administrativo disciplinar. [62]

No mesmo diapasão Celso Antônio Bandeira de Melo:

Demais, a discricionariedade é pura e simplesmente o furto da finitude, isto é, da limitação da mente humana. A inteligência dos homens falece o poder de identificar sempre em toda e qualquer situação, de maneira segura, objetiva e inobjetável, a medida idônea para preencher de modo ótimo o escopo legal. Logo, nos casos em que, em juízo equilibrado, sereno, procedido, segundo os padrões de razoabilidade, seja confiável que dada providência seguramente é a melhor ou que seguramente não o é, ter-se-á de reconhecer inexistência de discricionariedade na opção que houver discrepado de tal juízo. [63]

Assim, consumada a discricionariedade como inserta na essência do poder disciplinar, necessário se faz ainda mais a aplicação de uma concepção garantista do ilícito disciplinar, como forma de restrição a esta discricionariedade e potencialização das garantias fundamentais previstas no texto constitucional.

Felizmente, os tribunais superiores já denotam uma visão restritiva do aspecto discricionário no jus puniendi disciplinar, como que prevendo a necessidade de vigilância sobre os atos administrativos nessa seara:

Origem: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Órgão julgador: Quinta Turma

Classe e nº da decisão: Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 19.741

Nº do processo original e UF: 200500447835 - MT

Data da decisão: 11/03/08

EMENTA: I - "Tendo em vista o regime jurídico disciplinar, especialmente os princípios da dignidade da pessoa humana, culpabilidade e proporcionalidade, inexiste aspecto discricionário (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar."

II - "Inexistindo discricionariedade no ato disciplinar, o controle jurisdicional é amplo e não se limita a aspectos formais. [...]" (MS 12983/DF, Rel. Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, julgado em 12.12.2007, DJ 15.02.2008).

No mesmo diapasão:

Origem: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO

Órgão julgador: Sétima Turma Especializada

Classe e nº da decisão: Apelação Cível nº 361.011

Nº do processo original e UF: 200051010006367 - RJ

Data da decisão: 02/07/08

EMENTA: Constitucional. Administrativo. Servidor público civil federal ativo estável. Processo administrativo disciplinar. Preponderância da vinculação sobre a discricionariedade. Possibilidade de controle judicial. Prática de conduta tipificada como infração administrativa disciplinar. Realização de demissão. Direção da produção de provas dentro dos lindes da legalidade e conforme os nortes da razoabilidade.

I. Como no PAD - processo administrativo disciplinar prepondera a absoluta vinculação sobre a relativa discricionariedade, é possível a realização de controle judicial daquele, tanto sobre a legalidade administrativa quanto, em certa medida, sobre o mérito administrativo, em favor da observância dos princípios da legalidade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da motivação e da razoabilidade.

3.2.NO REGIME DISCIPLINAR

Debrucemo-nos agora sobre questões relacionadas à parte material do Direito Administrativo Disciplinar, agregando-as nesta seção sob o título (Uma Visão Garantista do Ilícito Administrativo) no Regime Disciplinar.

3.2.1.Ilícito Administrativo

Dos diversos ilícitos que estão passíveis de cometerem os servidores públicos federais, nos ocuparemos mais detidamente nesta seção do ilícito administrativo. Antes, porém, alguns apontamentos sobre os ilícitos civil e penal.

(...) ilícito é o comportamento contrário àquele estabelecido pela norma jurídica, que é pressuposto da sanção. É a conduta contrária à devida. É o antijurídico. Neste sentido, ilicitude e antijuridicidade são sinônimos e confundem-se num mesmo conceito, de unívoco conteúdo. [64]

Lei nº 8.112, de 11/12/90 - Art. 121. O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.

No Código Civil, o ilícito possui definição genérica: "CC - Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." Acarreta para o servidor o dever de indenizar, não tendo, portanto caráter punitivo.

O ilícito penal é a conduta descrita no Código Penal (e leis especiais), acarretando responsabilização pessoal do agente, com índole punitiva apurável em ritos previstos no Código de Processo Penal.

O ilícito administrativo-disciplinar por sua vez é a conduta contrária aos dispositivos estatutários praticados como atos funcionais pelo servidor.

O Estatuto, como já foi visto, fixou os deveres gerais dos servidores públicos e as proibições, cujo descumprimento constitui ilícito administrativo e, como tal, passível de aplicação, na forma da lei, de medidas disciplinares.

O ilícito administrativo, em suas origens, verifica-se pela perturbação do bom funcionamento da administração, em virtude do descumprimento de normas especialmente previstas no elenco de deveres, proibições e demais regras que integram o Regime Jurídico (...) do Servidor Público Civil da União.

Caracteriza-se, pois, pela ofensa a um bem jurídico relevante para o Estado, que é o funcionamento normal, regular e ininterrupto das atividades de prestação de serviços públicos. No ilícito administrativo, agride-se o funcionamento interno do Estado.

Assim é que o regime disciplinar prevê um elenco de hipóteses configuradoras de faltas administrativas de conceituação genérica concebidas, propositadamente, em termos amplos para abranger a um maior número de casos. Daí dizer-se que a infração disciplinar pode ser atípica para uns, de tipicidade aberta para outros, mas, para ambas as posições, de comprovado e bem caracterizado prejuízo ao interesse público (grifo nosso). [65]

Da combinação das espécies vistas, pode-se concluir pela existência da seguinte classificação de ilícitos administrativos:

a)Ilícito administrativo puro: afeta somente a administração;

b)Ilícito administrativo-civil: conduta contrária a dispositivo estatutário e causadora de prejuízo ao erário ou a terceiro;

c)Ilícito administrativo-penal: afeta não apenas a administração, mas a sociedade como um todo; e

d)Ilícito administrativo-penal-civil: além de afetar a administração e a sociedade, causa prejuízo ao erário ou a terceiro.

Os ilícitos administrativos englobam o descumprimento dos deveres do art., 116, das proibições do art. 117 e as condutas previstas no art. 132, todos da Lei nº 8.112/90:

Art. 116.  São deveres do servidor:

I - exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;

II - ser leal às instituições a que servir;

III - observar as normas legais e regulamentares;

IV - cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;

V - atender com presteza:

a) ao público em geral, prestando as informações requeridas, ressalvadas as protegidas por sigilo;

b) à expedição de certidões requeridas para defesa de direito ou esclarecimento de situações de interesse pessoal;

c) às requisições para a defesa da Fazenda Pública.

VI - levar ao conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo;

VII - zelar pela economia do material e a conservação do patrimônio público;

VIII - guardar sigilo sobre assunto da repartição;

IX - manter conduta compatível com a moralidade administrativa;

X - ser assíduo e pontual ao serviço;

XI - tratar com urbanidade as pessoas;

XII - representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder.

Parágrafo único.  A representação de que trata o inciso XII será encaminhada pela via hierárquica e apreciada pela autoridade superior àquela contra a qual é formulada, assegurando-se ao representando ampla defesa.

Art. 117.  Ao servidor é proibido:

I - ausentar-se do serviço durante o expediente, sem prévia autorização do chefe imediato;

II - retirar, sem prévia anuência da autoridade competente, qualquer documento ou objeto da repartição;

III - recusar fé a documentos públicos;

IV - opor resistência injustificada ao andamento de documento e processo ou execução de serviço;

V - promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição;

VI - cometer a pessoa estranha à repartição, fora dos casos previstos em lei, o desempenho de atribuição que seja de sua responsabilidade ou de seu subordinado;

VII - coagir ou aliciar subordinados no sentido de filiarem-se a associação profissional ou sindical, ou a partido político;

VIII - manter sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro ou parente até o segundo grau civil;

IX - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário;

XI - atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro;

XII - receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições;

XIII - aceitar comissão, emprego ou pensão de estado estrangeiro;

XIV - praticar usura sob qualquer de suas formas;

XV - proceder de forma desidiosa;

XVI - utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares;

XVII - cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias;

XVIII - exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho;

XIX - recusar-se a atualizar seus dados cadastrais quando solicitado.

Parágrafo único.  A vedação de que trata o inciso X do caput deste artigo não se aplica nos seguintes casos: 

I - participação nos conselhos de administração e fiscal de empresas ou entidades em que a União detenha, direta ou indiretamente, participação no capital social ou em sociedade cooperativa constituída para prestar serviços a seus membros; e 

II - gozo de licença para o trato de interesses particulares, na forma do art. 91 desta Lei, observada a legislação sobre conflito de interesses.

Art. 132.  A demissão será aplicada nos seguintes casos:

I - crime contra a administração pública;

II - abandono de cargo;

III - inassiduidade habitual;

IV - improbidade administrativa;

V - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;

VI - insubordinação grave em serviço;

VII - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;

VIII - aplicação irregular de dinheiros públicos;

IX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;

X - lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;

XI - corrupção;

XII - acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;

XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.

3.2.3.Ilicitude Material

Como já pontuado, o Direito Administrativo Disciplinar cuida desde condutas que ensejam concomitância aos crimes, afrontosas à normalidade da administração até as de ínfimo grau, fronteiriças com atitudes irrelevantes.

É sobre a delimitação dessa fronteira que vem o conceito de ilicitude material nos auxiliar a enxergar os marcos demarcatórios que devem afastar da repercussão disciplinar hipóteses sem ou quase nenhuma lesividade.

Por sua proximidade com a sede penal, não se pode olvidar aqui também da cautela necessária pautada no princípio da intervenção mínima, sem menosprezar ainda princípios como o da eficiência, razoabilidade e proporcionalidade, todos positivados no ordenamento pátrio, inclusive constitucionalmente (art. 37 da CF e caput do art. 2º da Lei nº 9.784/99).

Não pode o operador do direito disciplinar lançar mão da sede correicional de forma desarrazoada e antieficiente, escorado apenas na ilicitude formal da conduta.

Superada essa indispensável etapa, necessário ainda avaliar a caracterização da ilicitude material, que ocorre quando da lesão efetiva ao bem jurídico tutelado pela norma.

A tipificação do ato ilícito, na esfera do Direito Administrativo Sancionatório, passa por um dúplice estágio: formal e material. (...)

A tipificação formal é apenas um primeiro passo no enquadramento da conduta do agente, fruto, via de regra, de uma leitura preliminar do texto legal, na perspectiva de incidência da norma. Necessário, ainda, verificar a adequação material de sua conduta à norma proibitiva, o que pressupõe valorações mais profundas, exame de particularidades comportamentais, circunstâncias concretas, causas e motivações específicas e relevantes do agir humano, fatores sociais complexos e influentes no resultado, enfim, um conjunto interminável de circunstâncias. Logo, a tipicidade formal é uma espécie de estágio preliminar no raciocínio jurídico da decisão, não o estágio definitivo.

O efetivo impacto da conduta formalmente típica no bem jurídico tutelado pela norma repressiva é pressuposto da adequação típica material. Trata-se de um processo que exige complexas valorações, notadamente do julgador, mas também da autoridade administrativa. (...). Descreve-se a conduta proibida com suporte em um juízo abstrato, valorativo de pautas comportamentais básicas, levando em conta padrões de conduta abstratos. Sem embargo, a ocorrência efetiva da conduta no mundo real torna imperioso o exame das particularidades do caso concreto, daí emergindo a possibilidade de uma real conduta que não ofenda, de fato, o bem juridicamente protegido. [66]

Cerne da questão, a todo instante defendida no presente trabalho, estando o Direito Administrativo Disciplinar ainda carente de normas claras, jurisprudência e doutrina robusta, não se pode desprezar a contribuição que pode ser obtida junto aos sedimentados princípios e institutos do Direito Penal.

Dessa outra seara punitiva do Direito público emprestamos os ensinamentos do insigne Francisco de Assis Toledo:

Para que a conduta humana seja considerada crime, é necessário que dela se possa, inicialmente, afirmar a tipicidade, isto é, que tal conduta se ajusta a um tipo legal de crime (...). Temos, pois, de um lado, uma conduta da vida real; de outro, o tipo legal de crime, constante da lei penal. A tipicidade formal consiste na correspondência que possa existir entre a primeira e a segunda.

(...) se considerarmos o tipo não como simples modelo orientador ou diretivo, mas como portador de sentido, ou seja, como expressão de danosidade social e de periculosidade social da conduta descrita, ampliar-se-á consideravelmente esse poder de decisão a nível de juízo de atipicidade. (...) se o fenômeno da subsunção (= sotaposição de uma conduta real a um tipo legal) estiver subordinado a uma concepção material do tipo, não bastará, para afirmação da tipicidade, a mera possibilidade de justaposição, ou de coincidência formal, entre o comportamento da vida real e o tipo legal.

Será preciso algo mais (...). Modernamente, porém, procura-se atribuir ao tipo, além desse sentido formal, um sentido material. Assim, a conduta, para ser crime, precisa ser típica, precisa ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito (‘nullum crimen sine lege’). Não obstante, não se pode falar ainda em tipicidade, sem que a conduta seja, a um só tempo, materialmente lesiva aos bens jurídicos, ou ética ou socialmente reprovável. [67]

Decerto já se podem enxergar alguns exemplos no seio da administração de tal abordagem. Vejamos um exemplo extraído de Despacho da Consultoria-Geral da União:

Observo, inicialmente, que a reafirmação do entendimento contido em diversas manifestações desta Advocacia-Geral da União, no sentido da obrigatoriedade da aplicação da pena de expulsão quando configurada infração disciplinar prevista no art. 132 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, vale como regra geral.

Ocorre, entretanto, que, na linha do despacho do Consultor-Geral da União, na apreciação da Nota nº AGU/WM-24/2003, de 16 de junho de 2003, relativa ao processo nº (...), já aprovado por Vossa Excelência, não se exclui a possibilidade de, ‘quando for o caso, em face de infrações menores, de potencial insignificante, afasta-se a aplicação da penalidade em razão de atipia, como a concebem os tribunais no campo penal’. Em resumo, faltando objetiva relevância jurídico-administrativa, a conduta, mesmo irregular, pode ser considerada insuficiente para aplicar-se a penalidade. [68]

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3.2.4.Erro Administrativo Escusável

A autoridade administrativa e as comissões disciplinares não podem perder de vista como pressuposto fático indissociável, também no labor administrativo, a falibilidade humana.

Ensejando erros de fato ou erros de direito, várias podem ser as causas colhidas na experiência do dia-a-dia das repartições: desatenção, precipitação, pressa, cansaço, falta de concentração, atividades repetitivas, etc.

Às vezes a simples iniciativa no desempenho de tarefas novas já podem acarretar erros não pretendidos, pois só não erra quem nada faz.

(...) Não é porque se trate [a Administração] de um ambiente profissional, onde haja deveres de informação, mais acentuados, que se desprezará o espaço aos erros razoáveis, dentro dos parâmetros técnicos reconhecidamente aplicáveis ao setor especializado. Afinal, os profissionais também erram, e de modo escusável, mesmo os maiores especialistas. [69]

A falha escusável não pode ser inibida pela punição disciplinar, pois inerente à condição humana, sendo assim, não estará o jus puniendi cumprindo seu papel precípuo de prevenção de novas práticas.

O erro administrativo escusável pode ser definido como uma conduta em desconformidade com a norma, cuja repressão disciplinar não se mostre condizente com o principio da razoabilidade.

Seriam três os requisitos cumulativos para que sobreviesse o erro administrativo escusável. São eles: [70]

a)atitude culposa;

b)eventualidade; e

c)ofensividade mínima

Por óbvio que carece também o reconhecimento do erro e sua reparação por parte do servidor, sob pena de não se validar tal entendimento para o caso.

Na analogia com o Direito Penal, enquanto o principio da insignificância e a consequente atipicidade material se apresentam como excludentes da tipicidade, no erro administrativo escusável se opera a exclusão da culpabilidade.

Portanto, tal leitura favorece e reforça a uma sistemática de aplicação garantista da norma estatutária, ao apresentar ao operador do direito na seara disciplinar, mais uma oportunidade (ou uma barreira a depender do ponto de vista) de preservação das garantias do servidor acusado em processos administrativos disciplinares.

3.2.5.Impossibilidade de Responsabilização Objetiva

Para a imposição de penalidade administrativa, requer-se a comprovação de que a conduta do servidor se deu de forma dolosa ou culposa. Não havendo provas nesse sentido, não se pode pleitear responsabilização.

Lei nº 8.112, de 11/12/90 - Art. 124. A responsabilidade civil-administrativa resulta de ato omissivo ou comissivo praticado no desempenho do cargo ou função (grifo nosso).

Não é suficiente, por exemplo, a ocorrência pura e simples do extravio de um patrimônio para que se vislumbre responsabilização do servidor detentor, sendo crucial explicitar qual conduta dolosa ou culposa, omissiva ou comissiva, deu causa ou contribuiu para o sinistro.

Ao vedar responsabilidade objetiva para mero ressarcimento dos cofres públicos, a Carta Política também veda, implicitamente, responsabilidade objetiva no Direito Punitivo. Ao consagrar necessária responsabilidade subjetiva para o Direito das responsabilidades derivadas de ações ou omissões de agentes públicos, o constituinte sinaliza tendência à responsabilidade por culpabilidade no Direito Sancionador (grifo nosso). [71]

É necessário enfatizar que o direito, dentro da nova ordem constitucional, (...) não se compraz com a responsabilização e punição sem culpa, aferida objetivamente. (...)

Assim, diante do atual quadro normativo vigente, entendemos imprescindível a culpa, ‘lato sensu’, como elemento necessário para a caracterização da infração administrativa (grifo nosso). [72]

É, portanto necessário, além da comprovação do fato e sua relação causal com a conduta do servidor, que se comprove ainda que tal conduta ensejou ânimo no mínimo culposo.

Dito de outra forma, a responsabilização de índole punitiva tem natureza subjetiva, não objetiva, carecendo que se comprove que o fato ocorreu em virtude de imperícia, negligência, imprudência ou que a conduta se deu com consciência e intenção pelo acusado.

Felizmente, nossos tribunais superiores vêm reafirmando seus posicionamentos a cerca da necessidade da análise de elementos subjetivos na conduta do acusado em processo administrativo disciplinar, em respeito a princípios constitucionais regentes do Direito Sancionador de forma geral.

ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. INFRAÇÃO FUNCIONAL. CONDUTA CULPOSA. DEMISSÃO (LEI Nº 8.112/90, ART. 132, VII). ILEGALIDADE. DISSENSO ENTRE A PENA SUGERIDA E A PENA IMPOSTA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO.

- Em sede de processo administrativo instaurado para apurar infração funcional consubstanciada em conduta de natureza culposa, é inaplicável a regra do art. 132, VII, do Estatuto (Lei nº 8.112/90), sendo descabida a pena de demissão.

- Segundo a regra do art. 168, do Estatuto, somente é cabível a discrepância entre a penalidade sugerida pela Comissão de Inquérito e a imposta pela autoridade julgadora quando contrária à prova dos autos, demonstrada em decisão fundamentada.

- Segurança concedida.

Os verbetes e ementas acima transcritos corroboram o preceituado pelo professor Sebastião JOSÉ LESSA, ao ensinar que "o direito disciplinar, como já dito, não é infenso à analogia penal, ainda mais quando se cogita de pena de natureza grave, conforme se vê do entendimento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, manifestado no RE78.917 (RTJ 71/284): ‘O direito disciplinar não é infenso à analogia penal, ao que ensina Themístocles B. Cavalcanti nos casos das penas puramente administrativas, os mesmos princípios podem também ser aplicados por analogia (Direito e Processo Disciplinar, p. 179)’. Então vigoram no âmbito administrativo os mesmos princípios observados na esfera processual penal. (grifo nosso). [73]

Em suma, a responsabilização decorrente de ato funcional, requer a comprovação de ânimo subjetivo do agente, quer seja por culpa, quer seja por dolo. Comprovação e não presunção, pois no processo administrativo disciplinar, assim como nos demais, o que pode e deve ser presumível é a inocência do servidor.

3.2.6Atos da Vida Privada

Grave risco corre o servidor caso se opere uma leitura equivocada da norma constante do art. 148, in fine, da Lei nº 8.112/90, por poder gerar uma zona cinzenta na sua interpretação.

Art. 148 O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido (grifo nosso).

Analisemos o que alguns doutrinadores explanam sobre a (im)possibilidade da extensão do regime disciplinar para atos da vida privada do servidor. Renomada doutrina aponta no sentido de que apenas os atos praticados pelo agente na condição de servidor são alcançados pelo direito disciplinar:

Poder disciplinar é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração (...)

O poder disciplinar é exercido como faculdade punitiva interna da Administração e, por isso mesmo, só abrange as infrações relacionadas com o serviço (...) [74]

(...) a má conduta na vida privada, para caracterizar-se como ilícito administrativo, tem que ter, direta ou indiretamente, algum reflexo sobre a vida funcional, sob pena de tudo, indiscriminadamente, poder ser considerado ‘procedimento irregular’ (...) [75]

Embora bastante escassa doutrina específica de Direito Administrativo Disciplinar, segue ainda alguns autores que trataram o tema abordado no citado final do art. 148 da Lei nº 8.112/90.

Também favoráveis ao alcance restrito do dispositivo apenas para os atos funcionais:

Outro exemplo ocorrerá quando a representação informa que a servidora fulana de tal está se prostituindo nos fins de semana. Ora, a prostituição no Brasil não é crime, crime é explorar a prostituição alheia. Mas mesmo que fosse um crime, ele não teria relação com o exercício do cargo nem estaria sendo cometido no horário de expediente. Assim, num exame perfunctório de tal denúncia, a autoridade já poderia arquivá-la ao fundamento de que o fato denunciado não constitui ilícito disciplinar (grifo nosso). [76]

A responsabilidade que interessa ao Direito Administrativo Disciplinar é aquela que se refere à coisa pública, e a fenomenologia da sua configuração está diretamente ligada aos meios de prova permitidos em lei. [77]

(...) a responsabilidade do servidor só pode ser cobrada como resultante de ação ou omissão, praticados no desempenho de seu cargo. Afinal, sua vida privada não pode ser invadida pela Administração Pública. (...) os atos da vida privada dizem respeito somente a ele (grifo nosso). [78]

Em sentido oposto, alguns autores intentam alargar esse espectro de abrangência para abarcar o servidor também em sua conduta particular:

O artigo 148 da Lei nº 8.112, de 11/12/90 estabelece que tanto as irregularidades praticadas, pelo servidor, no exercício das atribuições específicas do seu cargo, quanto aquelas não específicas, mas apenas indiretamente com elas relacionadas, ensejam formação e condução de processo disciplinar. Natural que assim seja, porque irregularidades o servidor pode praticar não só no exercício próprio de seu cargo, como também desempenhando funções apenas eventualmente relacionadas com aquelas. [79]

Não obstante, o bom conceito que deve gozar a coisa pública perante a coletividade dos administrados é tão importante e essencial que se requer do funcionário não apenas uma conduta normal dentro da repartição em que serve. Exige-se, também, procedimento privado regular, pois que este, uma vez não sendo recomendável, poderá pôr em descrédito a moralidade e a seriedade do serviço que é realizado pelo órgão em que é lotado esse elemento inescrupuloso e ímprobo.

Em sentido material, pode-se definir transgressão disciplinar como proceder anômalo, interno ou externo, do agente público que, além de pôr em descrédito a administração, redunda em detrimento da regularidade do serviço público.

Escudando-se nestas noções, podem-se, desde logo, dividir as transgressões disciplinares em internas e externas. As internas infringem deveres profissionais; enquanto que as externas referem-se a comportamentos da vida particular do funcionário. São cometidas fora do exercício da função.

Ressalte-se que os conceitos ‘interna’ e ‘externa’ não pretendem rigorosamente expressar que seja a conduta exercida dentro ou fora da repartição, respectivamente. E, sim, traduzem que as primeiras (internas) são realizadas, dentro ou fora, em razão do exercício da função pública. Já as segundas, são exteriorizadas em atividade meramente particular, sem nada a ver com a atividade funcional. A não ser porque repercutem negativamente em seu detrimento (grifo nosso). [80]

Procedimento correto na vida pública e privada. O desempenho da função pública deve ser, por princípio, confiável e respeitável, impondo-se ao servidor zelar, a todo o tempo, para que esse princípio seja efetivamente uma verdade.

Esse cuidado deve começar obviamente por si próprio, seja no exercício de suas atribuições públicas, seja no procedimento cotidiano, em sua vida privada, mas sem desrespeitar-se, é claro, a liberdade e a privacidade de cada um, na aplicação desta determinação (grifo nosso). [81]

Apesar de ter tentado dar à outra visão a possibilidade do convencimento racional, ao sopesar os argumentos, não pôde ser outra a conclusão deste graduando senão a de rechaçar peremptoriamente qualquer invasão do Estado-Administração nos atos da vida cotidiana e pessoal do servidor.

Assim no seguinte julgado:

TRF da 1ª Região, Apelação em Mandado de Segurança nº 1999.01.00.061930-0: "Ementa: 1. O art. 143 da Lei nº 8.112, de 11/12/90, prevê: ‘A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa’. Assim, o fato gerador para abertura de sindicância ou processo administrativo é a ciência de irregularidade no serviço público, não se estendendo a fatos da vida privada, ocorridos em uma partida de futebol, sem qualquer relação ou repercussão no exercício da função pública. 2. Na hipótese dos autos, a sindicância foi desvirtuada de sua natural finalidade, para punir servidor público que não cometeu nenhuma irregularidade no exercício de suas funções. Instauração de sindicância nula (grifo nosso).

Já se poderia prenunciar pelo posicionamento até aqui colocado, frente aos mais diversos temas, que esta seria nossa postura. Tal entendimento, mesmo que minoritário, não pode ser bem vindo à doutrina administrativista disciplinar, por ferir sorrateiramente a intimidade do cidadão-servidor, caracterizando uma intromissão descabida do Estado.

Na honestidade profissional, ao contrário, homens com vícios morais podem encaixar-se tranqüilamente, desde que observem as regras de bom exercício de suas atividades funcionais. (...)

Os agentes públicos gozam de direitos fundamentais, entre os quais está, é óbvio, o direito à intimidade, à privacidade, ao desenvolvimento livre de seus privados estilos de vida e personalidades. Em todo caso, os agentes públicos têm, sem lugar a dúvidas, espaços privados nos quais podem praticar atos imorais, desde que esses atos não transcendam os estreitos limites da ética privada, não afetem bens jurídicos de terceiros. Os direitos humanos, fundamentais, do homem e do cidadão, protegem o indivíduo contra atuações abusivas, ilícitas, desnecessárias, do Estado (grifo nosso). [82]

3.2.7.Infração Moral

Do interesse do presente trabalho por emanar ainda certa dose de cerceamento desse aspecto, que em principio seria alheio ao direito, analisemos a questão da moral na seara administrativa disciplinar.

Certamente podemos encontrar correlação da temática, de forma mais abrangente, com o principio da moralidade, de assento constitucional, e, especificamente, no dever funcional insculpido no art. 116, IX da Lei nº 8.112/90: "manter conduta compatível com a moralidade administrativa".

Um pouco extensa, mas extremamente elucidativa quanto à afetação de direitos fundamentais pela pretensão punitiva do estado relacionada à moralidade, segue lições no ministério de Fábio Medina Osório:

Desde logo, cabe aduzir que existem limites materiais de tipificação dos comportamentos, construindo-se os tipos na base dos valores e princípios constitucionais, das liberdades públicas e dos direitos fundamentais da pessoa humana. É na exemplificação dos processos tipificatórios que pretendo abordar o problema das chamadas ‘infrações morais’, categorias tão presentes em ordenamentos jurídico-administrativos, estatutos disciplinares e legislação extravagante. É um tema atual, portanto. Mais ainda, é um tema relevante, porque envolve a produção de um raciocínio jurídico lastreado na defesa de direitos fundamentais, que não podem ser afetados indevidamente pela pretensão punitiva do Estado, ainda que esta venha veiculada em esferas de relações de especial sujeição entre o Poder Público e o infrator. (...)

Se para o Direito Penal essas considerações parecem pertinentes, creio que também ao Direito Administrativo, em sua medida, se revelam adequadas as mesmas cautelas. O Direito Administrativo não pode qualificar de ilícita uma conduta tão-somente porque se revele eventualmente atentatória ao juízo de moralidade comum, porque tal perspectiva abriria um vasto campo de insegurança jurídica, desmoronando o pilar de legalidade que sustenta o Estado de Direito. Não creio que isso seja possível. (...)

Nesse contexto, sabe-se que a moralidade protegida pelo Direitoinsere-se no campo da Ética pública, diferenciando-se da ‘Ética privada’. (...). O Direito é o campo por excelência da Ética pública. Por tal motivo, as normas jurídicas não devem adentrar o campo privado dos comportamentos imorais, eis um outro pilar da autonomia destas instâncias de controle. Preceitos morais, no entanto, tratando de condutas privadas de pessoas, incorporados ao Direito numa perspectiva de Ética pública, não constituem uma raridade jurídica. Pelo contrário, no setor público são comuns as iniciativas de normatização de comportamentos imorais situáveis ordinariamente na esfera privada dos indivíduos.

(...) parece importante insistir na idéia de que a moralidade pública exige pautas bem mais objetivadas de condutas, não podendo ingressar na esfera mais subjetiva da autonomia volitiva inerente ao campo da moralidade crítica. Insisto que o problema não reside tanto na tentativa de apartar, definitivamente, Direito e Moral, até porque ninguém duvida de que seja saudável a aproximação correta dos dois fenômenos. Ninguém advogaria pela existência de normas jurídicas ‘imorais’ ou mesmo ‘amorais’, dada a natureza ética do fenômeno jurídico. O que ocorre é a notória dificuldade na identificação de limites da moralidade, que não podem ser invadidos pelo Direito, eis o ponto crucial da polêmica relação entre Direito e Moral. No campo sancionatório, essa separação (dos limites ou fronteiras) resulta fundamental para a proteção das liberdades individuais e dos direitos fundamentais da pessoa humana, visto que uma infração pode, em tese, utilizar elementos tão indeterminados e genéricos que, na prática, eventualmente suscitam dúvidas e incertezas, cabendo ao intérprete (operadores jurídicos) a tarefa de delimitar claramente o âmbito de incidência da norma.

(...) A moralidade do ato administrativo resta atrelada a uma moral da instituição, o que a diferencia da moralidade comum. Parece pouco dizer isso, lugar-comum na doutrina? É verdade que não se trata de uma advertência nova, até porque remonta ao início do século XX, com Maurice Hauriou, mas não deixa de ser importante, porque nos remete à idéia correta de que a tutela jurídica da moral, nas mais variadas dimensões, não equivale a absorver essa mesma moralidade pelo Direito, menos ainda esgotá-la. O universo jurídico tem a prerrogativa de selecionar temas ou problemas morais, emprestando seu próprio enfoque, seu olhar concentrado e especializante. E pode valer-se da terminologia ‘moralidade’ para designar espaços jurídicos funcionalmente abertos ao controle ético, mais maleáveis e adaptáveis aos casos de transgressões, cujo alcance se ambiciona. A moralidade institucional, nessa perspectiva, é uma moral fechada, com um conteúdo bastante específico, podendo revestir-se de juridicidade específica do Direito Administrativo. É extremamente complicado estabelecer um parâmetro adequado ou universal ao juízo de moralidade comum, donde incabível confundir, de forma direta, moral comum e moral administrativa ou pública, em que pese a possibilidade de convergência em muitos casos. É induvidoso que as instâncias se relacionam, tanto que encontram valores convergentes para efeito de proteção, daí porque muitos ilícitos jurídicos configuram graves atentados às normas morais vigentes. As relações entre moralidade aberta, fechada, institucional, administrativa e outras categorias jurídicas não escapam às zonas de penumbra, mas, nem por isso deixam de adentrar numerosos campos de inequívoca significação. Essa pode ser considerada a visão padrão de um pensamento dominante no cenário nacional.

Em realidade, necessário efetuar distinção entre Moral e Direito no mínimo a partir da interioridade e exterioridade, deixando-se um âmbito próprio à personalidade do indivíduo, que fica livre da ingerência do Estado. Pelo menos a consciência individual ficaria completamente fora do poder do Estado, aí residindo uma importância fundamental de separar Direito e Moral.

Ademais, outorgar ao princípio jurídico da moralidade administrativa ou aos tipos sancionadores de condutas eticamente reprováveis um sentido tão amplo a ponto de abarcar todo e qualquer ato imoral dos agentes públicos, com a devida vênia de entendimento diverso, equivaleria a liquidar com o Estado Democrático de Direito e seu pilar de legalidade. Se o administrador ou agente público somente pode agir fundado em lei, a mera inobservância de um preceito moral não poderia acarretar-lhe sanções. Anote-se, nesse terreno movediço, que o próprio administrado ficaria exposto a ações administrativas amparadas na moralidade e não na juridicidade, se acaso resultasse admitida a confusão progressiva entre as instâncias. (...)

Claro que não se quer o divórcio absoluto de Direito e Moral, como se apenas o que não é moral pudesse ser juridicizado. Seria uma perspectiva absurda de análise. O que se quer, e nisso se deve insistir, é a garantia de que o foro íntimo do indivíduo não seja punido, compreendendo-se esse foro íntimo a partir de seus desdobramentos em diversos estilos de vida. [83]

Tão identificado com as ideias acima – motivo pelo qual nos delongamos - nos resta ratificar seu inteiro teor, acrescentando apenas que o princípio da moralidade, encartado no art. 37 da Constituição Federal guarda relação, a nosso ver, mais com as condutas enquadráveis em improbidade administrativa, enquanto imoralidade qualificada. nos termos da Lei nº 8.429/92, do que com a vaga norma estatutária.

Por conseguinte, consideramos temerário o comando presente no inciso IX do art. 116 da Lei nº 8.112/90, por sua generalidade e imprecisão, pois pode dar margem à má interpretação da "moralidade administrativa", situando-a mais próximo à moral comum do que ao princípio constitucional, mais uma vez invadindo parcela constitucionalmente protegida da intimidade e da privacidade do servidor.

Deve existir, entre o descumprimento do preceito ‘moral’ e a função pública que se busca preservar, uma dependência necessária. Há hipóteses em que a vida privada de um sujeito pode, irremediavelmente, comprometer a dignidade de suas funções, mas esse juízo valorativo não será tão elástico quanto o é um simples juízo de moralidade. Será necessário avaliar se, em um dado contexto, o comportamento que se buscacensurar realmente abala a noção média que se tem a respeito da dignidade das funções públicas ou do cargo ocupado pelo agente. Será indispensável avaliar a real gravidade e nocividade do comportamento privado aos valores defendidos pela Instituição a que pertence o agente público. Imperiosa será a análise dos reflexos negativos, reais e potenciais, do aludido comportamento na sociedade e no campo institucional.

Não se cogita, portanto, de uma equiparação dos juízos de moralidade comum e moralidade administrativa ou pública, e tampouco se sustenta eventual alegação de que as pessoas detentoras de cargos públicos importantes não poderiam ter suas vidas privadas, ter suas pequenas distorções humanas.

Nem se diga, nesse passo, que bastaria uma norma jurídica genérica dizendo que ‘é obrigatório respeitar a moral e os bons costumes’, pois semelhante norma tampouco aniquilaria com a distinção entre os círculos jurídico e moral. Moralidade jurídica já é, por definição, conceito que escapa aos contornos da moralidade comum. Assim sendo, moral administrativa não se confunde com moral comum. Infrações que sancionam comportamentos imorais, no Direito Administrativo Sancionador, devem ser interpretadas restritivamente, com vinculação inarredável aos limites dos conceitos indeterminados e das cláusulas gerais (grifo nosso). [84]

3.3.NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Sob o título acima, analisemos caros aspectos que se relacionam ao componente instrumental do Direito Administrativo Disciplinar.

3.3.1.Instauração e a Subsidiariedade da Esfera Disciplinar

A autoridade com poder disciplinar não deve confundir sua competência correicional com os atos de gerência de pessoal comuns ao cotidiano das repartições. A competência disciplinar deve ser vista como residual em relação às demais, mesmo considerando seu caráter vinculado.

Por obvio que não se defende a omissão ou condescendência da autoridade. Defende-se aqui que na grande maioria das vezes o administrador pode lançar mão de outros mecanismos capazes de voltar os rumos do serviço público para a normalidade. Citemos em ordem de invasividade na vida do servidor-cidadão:

a) comissões de ética;

b) procedimentos investigativos prévios; e

c) auditórias

Desperdiçar esses mecanismos despertando precipitadamente o direito administrativo disciplinar, atenta contra os princípios da eficiência e razoabilidade, ferindo garantias e direitos do servidor.

Além do ónus material (recursos humanos, financeiros e estrutura) o processo desnecessário atinge aspectos imateriais da vida do servidor como honra, imagem e reputação; vulgarizando, banalizando e trazendo certa ojeriza para o Direito Administrativo Disciplinar.

Para que o processo disciplinar seja instaurado com legitimidade não basta tão-somente que seja a autoridade hierárquica competente para tanto, havendo, de rigor jurídico, a necessidade de um mínimo legal que, traduzindo possibilidade de condenação (‘fumus boni juris’), se estribe em elementos concretos indicadores de tal viabilidade.

Não é jurídico nem democrático que o servidor público venha, sem mais nem menos, responder a processo disciplinar.

A garantia constitucional do devido processo legal não somente contenta-se em que o processo recepcione a ampla defesa e o contraditório, como também exige, para sua legítima inauguração, que haja, no mínimo, um princípio de prova. Sem esse princípio de prova (‘fumus boni juris’), sinalizador da plausibilidade da pretensão punitiva da Administração, não poderá haver processo disciplinar.

Tais elementos, embora não seja exigível que já possam, no limiar do processo, traduzir um juízo seguro ou razoável de certeza, devem, contudo, apresentar, pelo menos, um juízo de possibilidade condenatória em desfavor do servidor imputado. Consistindo em qualquer detalhe lícito produtor de convicção definível como princípio de prova, esses elementos constituem os conectivos processuais ensejadores da abertura de tal empreitada apuratória de possíveis transgressões disciplinares. Sem tais conectivos, não é lícita a abertura de tais procedimentos.

O Direito Processual Disciplinar exige a presença desses conectivos (princípios da prova) como forma de evitar que venha o servidor público sofrer os incômodos e os aborrecimentos oriundos de um processo disciplinar precipitadamente instaurado, além de, com tal cuidado, proporcionar resguardo à dignidade do cargo ocupado pelo acusado, o que reverte-se, por fim, em benefício da normalidade e regularidade do serviço público, escopo inarredável a que deve preordenar-se toda repressão disciplinar (grifo nosso). [85]

Momento importante para o atingimento desse mister é sem dúvida o de juízo de admissibilidade, relevante decisão exercida pela autoridade com poder disciplinar previamente à instauração, a qual deve ser a mais profunda e detalhada possível, embasada em prévia instrução, a fim de evitar instaurações inócuas por falta de objeto.

Lei nº 8.112, de 11/12/90: Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.

Art. 144. Parágrafo único. Quando o fato narrado não configura evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a denúncia será arquivada, por falta de objeto (grifo nosso).

Saliente-se que já nesse momento pré-processual é imperioso que sejam considerados, além dos indícios de materialidade e autoria, outros aspectos como: prescrição, viabilidade de produção de provas e bens tutelados, sempre amparados em princípios como da intervenção mínima, da insignificância e da lesividade.

3.3.2.Designação da Comissão de Apuração (e não de Acusação)

No processo judicial encontra-se presente uma tríade de atores, onde há uma parte que acusa/pleiteia, outra que defende/contesta e acima o Estado-juiz que julga, dizendo o direito.

No processo administrativo não há (ou pelo menos não deveria haver) antagonismo entre partes, mas somente uma relação processual composta pelo Estado-administração atuando na condução do apuratório, por oficialidade, e do outro o servidor a tentar defender-se.

Um primeiro ponto delicado nesse percurso é que o mesmo Estado-administração que dá cabo da apuração (embora com atores diferentes) procede também ao julgamento.

Não ocorrendo, como já exposto, essa bipolaridade, com um Juiz acima e no vértice, a sopesar os trabalhos realizados, deve a busca das provas serem marcadas pela atuação imparcial da comissão, o que nem sempre se observa nos processos do mundo real no Serviço Público Federal.

A comissão não pode fechar os olhos para essa ausência de bipolaridade acusação/defesa, sob pena de transformar-se sempre numa comissão de acusação ao invés de uma verdadeira comissão de apuração, caracterizada pela imparcialidade e interesse público.

"Em outras palavras, a comissão não acusa, mas sim apura. A comissão não atua como acusação, mas sim como polo de apuração. Apurar não necessariamente se confunde com acusar". [86]

3.3.3.Praxe Administrativa e Legalidade

À luz do princípio da razoabilidade, não podem as comissões disciplinares e a autoridade julgadora desprezar aspectos relacionados à realidade do órgão na análise do caso em concreto.

As condições de trabalho e as especificidades regionais, inclusive culturais, o contexto, enfim, a praxe administrativa deve sim ser levada em conta ao processar ou julgar o servidor no processo administrativo disciplinar.

Entendido o principio da legalidade em seu sentido material, a lei não pode encorajar análise distanciada da realidade e do contexto concretamente apurados. Não se pode estar em busca de super-homens que operem acima e além das condições ofertadas pelo Estado-administração.

Destarte, invariavelmente, o que se observa é o servidor a suprir lacunas deixadas pela falta de amparo da administração, ainda fechando os olhos quando de supostas faltas atribuídas ao servidor, muito embora decorrentes da ineficiência do próprio serviço público.

Ademais, impõe-se aos integrantes dos conselhos disciplinares e autoridades decidir acerca do cometimento de infração funcional pelo servidor, de acordo com a realidade logística e estrutural de trabalho, o ambiente e as circunstâncias nas quais se encontrava o acusado quando do exercício do seu cargo (...), enfim, aplicando o direito administrativo disciplinar sob uma ótica concreta, e não, como sói ocorrer, de se exigir do funcionário processado a perfeição no cumprimento dos seus ofícios públicos (...). [87]

As praxes administrativas configuram a cristalinização da atividade reiterada e uniforme da Administração no tratamento e na solução de determinados casos

Embora haja divergências entre os doutrinadores sobre a validade das praxes administrativas como fonte do direito, desposamos o entendimento de que elas, nos casos em que forem silentes as leis, podem prestar valioso auxílio ao Direito Processual Disciplinar.

As praxes, conquanto não se confundam, em sentido rigorosamente científico, com os costumes, devem, no nosso entender, ter a mesma receptividade conferida a estes. De conformidade com a Lei de Introdução ao Código Civil, os costumes são fontes secundárias do direito (art. 4º) (grifo nosso). [88]

3.3.4.Verdade Sabida e o Devido Processo Legal

Partindo do pressuposto de que ao instaurar o processo ocorreram ao menos indícios de falta disciplinar enxergado pela autoridade com poder disciplinar, não pode a comissão se contentar apenas com uma fagulha indiciária, o qual pode conduzir a erros de julgamento.

Não deve a comissão fazer da apuração mera formalidade, pois caracterizaria forte pré-julgamento baseado em mera presunção. Descabido, portanto, impor determinada conclusão à vista apenas de suspeitas não comprovadas.

Não pode ser este o intento do processo administrativo disciplinar. A manifestação da comissão deve estar confirmada pelas provas dos autos de maneira insofismável. Não se pode julgar por presunção ou suspeita. Somente a prova tem o condão de afastar o erro de julgamento, o que acarretaria impor ao servidor penalidade injusta e afastada da verdade real.

Assim já se manifestou a Advocacia-Geral da União em parecer vinculante, ao referir-se a forma de atuação da comissão:

10. A atuação da comissão processante deve ser pautada pelo objetivo exclusivo de determinar a verdade dos fatos, sem a preocupação de incriminar ou exculpar indevidamente o servidor, motivo por que lhe é atribuído o poder-dever de promover a tomada de depoimentos, acareações, investigações e diligências, com vistas à obtenção de provas que demonstrem a inocência ou culpabilidade, podendo recorrer, se necessário, a técnicos e peritos. Com esse desiderato, efetua a completa apuração das irregularidades e, em consequência, indicia somente aqueles em relação aos quais são comprovadas a existência da infração e sua autoria (grifo nosso). [89]

O que se pode esperar da comissão é envidar os máximos esforços nos atos de instrução, pois a falta de provas inviabiliza completamente o exercício do direito da defesa, pois fere os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, não se cogitando mais o emprego da antiga e odiosa verdade sabida.

Assim, não cabe mais falar no instituto da ‘verdade sabida’. Se este permitia à autoridade que tomasse conhecimento pessoal e imediato de fato punível, poder aplicar a sanção independentemente de apuração em processo disciplinar ou sindicância, com o advento da citada norma constitucional do art. 5°, LV, passa-se ao entendimento de que ‘mesmo nas penalidades de advertência e suspensão de até 30 dias, impõe-se a instauração de sindicância para apuração de responsabilidades, observando-se o princípio da ampla defesa - Parecer SAF n° 83/92, DOU 23.03.92. [90]

3.3.5.Indeferimento de Testemunhas e o Princípio da Ampla Defesa

Por certo que a lei faculta o indeferimento de pedidos de provas impertinentes e protelatórias ou que nada auxiliem para o esclarecimento dos fatos.

Lei nº 8.112, de 11/12/90:

Art. 156. É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial.

§ 1º O presidente da comissão poderá denegar pedidos considerados impertinentes, meramente protelatórios, ou de nenhum interesse para o esclarecimento dos fatos.

Frise-se, entretanto, que indeferimento dessa estirpe deve estar precisa e fundamentadamente justificado, pois, estará surrupiando do acusado o direito a uma prova que requereu.

Na esteira de respeitada doutrina:

(...) a denegação dos pedidos precisará estar razoavelmente fundamentada, demonstrando-se quão indevido é o pedido. Em assim não acontecendo, remanescerá ao requerente um claro direito à obtenção da prova, factível até pela via do mandado de segurança (grifo nosso). [91]

As garantias da ampla defesa e do contraditório devem ser encaradas pela comissão como a base da condução do processo, pois são os pilares da validade dos atos processuais, da decisão prolatada e de todo o processo em si, independentemente do rito (se processo administrativo disciplinar em rito ordinário ou sumário ou se sindicância punitiva). A comissão deve reservar, no curso de todo o apuratório, constante atenção a esses dois direitos, visto que, como regra, no processo administrativo disciplinar, sua inobservância é a causa mais comum de nulidade (grifo nosso). [92]

A negativa imotivada da oitiva de testemunhas arroladas pelo acusado (e não de defesa, pois as testemunhas são do processo) carreia o processo de nulidade de maior gravame, por ferir de morte os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Repisando, são os princípios que direcionam a elaboração das normas. Nesse sentido, pode se revelar muito mais afrontoso ao Direito não observar um princípio do que descumprir uma norma positivada. Assim, um processo conduzido com inobservância de princípios reitores só poderá desaguar em nulidade.

Segue julgado a corroborar tais assertivas:

Origem: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Classe e nº da decisão: Mandado de Segurança nº 7.469

Nº do processo original e UF: 200100463797 - DF

Data da decisão: 11/09/02

EMENTA: (...) 2. A falta de fundamentação no indeferimento de ouvida de testemunha caracteriza cerceamento de defesa.

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO MANDADO DE SEGURANÇA Nº 7.469/DF

RELATÓRIO

O Senhor Ministro Paulo Gallotti: A União opõe embargos de declaração contra acórdão assim ementado:

"Mandado de segurança. Administrativo. Servidor público. Processo disciplinar. Acumulação de cargos. Incompatibilidade de horários não comprovada. Conclusões de relatório e de pareceres antagônicos entre si. Indeferimento não fundamentado de ouvida de testemunha de defesa. Cerceamento caracterizado.

1. O antagonismo existente entre os diversos relatórios e pareceres constantes dos autos evidenciam não estar devidamente comprovada a alegada incompatibilidade de horários no exercício dos cargos públicos acumulados pelo impetrante.

2. A falta de fundamentação no indeferimento de ouvida de testemunha caracteriza cerceamento de defesa.

3. Ordem concedida." (...)

Daí se vê que o processo administrativo não pode ser tido como regular, acabando por violar o princípio constitucional da ampla defesa, reproduzido tanto na Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico único dos servidores públicos, como na Lei nº 9.784/99, que regula sua tramitação no âmbito da administração pública federal, estabelecendo esta última, em seu art. 2º, parágrafo único, X, a garantia da produção de provas.

Em casos semelhantes, esta Corte tem reiteradamente decidido, ‘verbis’:

'Mandado de segurança. Administrativo. Servidor público. Demissão. Processo disciplinar. Falta de inquirição de testemunha de defesa. Cerceamento de defesa caracterizado. Desídia não configurada.

A testemunha-chave, devidamente apresentada pelo impetrante, deixou de ser ouvida, entendendo a administração que se trataria de medida protelatória do impetrante, sem maiores argumentações, o que caracteriza, plenamente, o cerceamento de defesa.

Provas insuficientes para a caracterização da desídia.

Ordem concedida com vistas a anular o ato demissório, reintegrando-se, em conseqüência, o impetrante no cargo de que fora demitido.

(MS nº 6.900/DF, Relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca, DJU de 04/06/2001)'

No caso concreto, frente à apontada divergência entre os pareceres e ao evidente cerceamento de defesa, é de se ter como viciado o processo administrativo, devendo ser anulado o ato demissionário que dele se originou (grifo nosso).

3.3.6.Indiciamento Genérico e o Exercício do Contraditório

A não especificação dos fatos no indiciamento impossibilita o exercício do direito de defesa. Especificar significa: "(...) 2. Explicar miudamente; esmiuçar: O relatório especifica todas as particularidades. 3. Apontar individualmente; especializar: O réu especificou todos os seus crimes". [93]

Assim, não se especifica todos. Narrar todos os fatos não é especificar. A comissão, não tendo convicção de qual fato se caracteriza irregular opta por narrar "todos" os fatos, a fim de que ao final, no relatório possa citar o que considera irregular, pois se "todos" foram citados na indiciação, nada poderia ter ficado de fora!

Não é essa a função da indiciação, que tem por objeto justamente delimitar dentro do universo geral dos fatos apurados, quais atos ou circunstâncias praticadas pelo servidor entende-se como irregular.

Especial atenção deve ser dada à descrição do fato apurado, pois não será legítimo alterá-la, acrescentando novos detalhes no relatório, já após a defesa, pois tais detalhes restarão não contraditados. Até pode ocorrer de, após a defesa, no relatório, a comissão alterar o enquadramento legal sem que isso, por si só, provoque nulidade; mas não se pode alterar a descrição fática (grifo nosso). [94]

Ementa: 1. No inquérito administrativo, semelhantemente ao que ocorre no processo penal, não pode o servidor ser punido com base em fato não constante da imputação que lhe foi inicialmente feita (´mutatio libelli´)...2. No inquérito administrativo é de rigor que se formule o indiciamento do acusado com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas (art. 161 da Lei 8.112/90), para que possa formular sua defesa. A falta dessa formalidade nulifica o processo, ainda mais quando caracterizado o prejuízo à defesa (grifo nosso). [95]

O despacho de indiciamento tem por fim delimitar, processualmente, a acusação, o que significa dizer que a autoridade competente para julgar não poderá levar em conta fatos que não tenham sido articulados em seu contexto, sobre os quais não se estabeleceu contraditório e defesa (grifo nosso). [96]

É pacífico o entendimento do STF "no sentido de que o indiciado defende-se dos fatos descritos na peça acusatória e não de sua capitulação legal". [97]

Origem: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Órgão julgador: Tribunal Pleno

Classe e nº da decisão: Mandado de Segurança nº 23.299

UF: SP

Data da decisão: 12/04/02

EMENTA: (...) IV. Processo administrativo disciplinar: congruência entre a indiciação e o fundamento da punição aplicada, que se verifica a partir dos fatos e não de sua capitulação legal.

Portanto, é necessária a descrição pormenorizada dos fatos tidos como irregulares, não bastando apenas exposição do ocorrido de forma genérica, sem apontar quais as condutas específicas praticadas pelo servidor que se enquadram nas proibições/deveres previstos no estatuto.

Tal prática impede que o servidor identifique dentre toda a sequência de acontecimentos, qual ato para o qual a comissão entende preliminarmente merecedor de sanção, tornando o Termo de Indiciamento uma verdadeira incógnita.

Essa questão é essencial para a elucidação da verdade real, a qual traz sérios prejuízos à defesa do acusado, porquanto não se tem ao certo contra qual(is) fato(s) deve se defender, caindo por terra o exercício do devido e necessário contraditório.

Por fim, sendo o contraditório constituído pelos elementos informação e reação, sem o detalhamento preciso do fato reprovável, impossível rebater as imputações articuladas.

3.3.7.Relatório Final e a Presunção de Inocência

Em homenagem à presunção de inocência, principio consagrado no texto constitucional, ratifica-se a máxima jurídica de que o ônus da prova incumbe a quem acusa.

8. (...) É reiterada a orientação normativa firmada por esta Instituição, no sentido de que o ônus da prova, em tema de processo disciplinar, incumbe à administração (grifo nosso). [98]

Ementa: (...) Incumbe à administração apurar as irregularidades verificadas no serviço público e demonstrar a culpabilidade do servidor, proporcionando seguro juízo de valor sobre a verdade dos fatos. Na dúvida sobre a existência de falta disciplinar ou da autoria, não se aplica penalidade, por ser a solução mais benigna.(...)

50. (...) compete à administração, por intermédio da comissão de inquérito, demonstrar a culpabilidade do servidor, com satisfatório teor de certeza (grifo nosso). [99]

Como se tem desenvolvido até aqui, as provas não devem ter como desiderato apontar presunções e suspeitas, mas sim infligir alto grau de certeza na convicção da comissão e, consequentemente da autoridade julgadora.

No processo em que, esgotada a busca de provas, não se logrou comprovar a responsabilização do servidor por ausência de prova condenatória, em respeito à presunção de inocência, opera-se o princípio do in dubio pro reo, desaguando necessariamente na absolvição.

CF/88 - Art. 5º, LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Lei nº 9.784, de 29/01/99 - Art. 2º A administração pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência (grifo nosso).

Ementa: A administração pode editar o ato punitivo apenas na hipótese em que esteja convencida quanto à responsabilidade administrativa do servidor a quem se imputa a autoria da infração. A dúvida deve resultar em benefício do indiciado (grifo nosso). [100]

Ementa: (...) Incumbe à administração apurar as irregularidades verificadas no serviço público e demonstrar a culpabilidade do servidor, proporcionando seguro juízo de valor sobre a verdade dos fatos. Na dúvida sobre a existência de falta disciplinar ou da autoria, não se aplica penalidade, por ser a solução mais benigna.(...)

50. (...) compete à administração, por intermédio da comissão de inquérito, demonstrar a culpabilidade do servidor, com satisfatório teor de certeza (grifo nosso). [101]

Por fim, encerrada a instrução processual sem que a comissão tenha logrado êxito em auferir provas da ocorrência do ilícito, é imperioso prevalecer os princípios da razoabilidade (art. 2º da Lei nº 9.784, de 29/01/99), do in dubio pro reo (art. 386, VII do CPP), e presunção da inocência (art. 5º, LVII da CF), elaborando relatório final, pugnando pelo arquivamento do processo.

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Sobre o autor
Marcelo Aguiar da Silva

Policial Rodoviário Federal em Boa Vista (RR). Bacharel em Direito pela UFRR. Estudioso do Direito Administrativo Disciplinar, tendo atuado com autoridade julgadora, presidente de comissões e Corregedor Regional do DPRF/MJ em Roraima.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Aguiar. Intersecção entre Direito Administrativo disciplinar e Direito Penal.: Uma visão garantista do ilícito administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3119, 15 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20853. Acesso em: 24 abr. 2024.

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