3.O DISCURSO EMANCIPATÓRIO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL:
"Até quando você vai levar cascudo mudo?
Muda, muda essa postura.
Até quando você vai ficando mudo?
Muda que o medo é um modo de fazer censura.
(...)
Escola, esmola
Favela, cadeia
Sem terra, enterra
Sem renda, se renda.
Não, não!"
Gabriel Pensador.
Ao se levantar da cadeira para mudar e efetivar a luta pelo Direito, dois caminhos poderão ser tomados. De um lado a militância, opositora do próprio sistema político, artífice da ruptura e da resistência. [45] Do outro, a modalidade discursiva da desobediência civil que se dirige ao senso de justiça da comunidade e declara que os princípios da cooperação social entre homens livres e iguais não estão sendo respeitados. [46]
A teoria da desobediência civil contemporânea, como nos lembra Vicente de Paulo Barreto, pressupõe sociedades democráticas no contexto do estado de direito.
Neste sentido, ao contrário do corte revolucionário proposto pelo militante, "o contestador civil contemporâneo vale-se dos princípios fundadores da sociedade política, para invocar a desobediência da lei no quadro de uma ordem jurídica, com base na existência de valores superiores como alicerces do corpo social". [47]
Dessa forma, deixa-se claro que: A uma, a desobediência civil é um tipo de objeção específica, diferente de outras formas de oposição à autoridade democrática – desde manifestações legais e transgressões das leis à luta armada e à resistência organizada. [48] A duas, a desobediência civil será legítima nas condições pelas quais a ação se justifica em um regime democrático de quase-justa.
3.1.CONDIÇÕES À DESOBEDIÊNCIA CIVIL LEGÍTIMA: OCUPANDO O LATIFÚNDIO DA CIDADANIA.
"E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
‘tenha meus dedos cortados,
antes que tal verso escrevam...’
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE
ouve-se em redor da mesa.
e a bandeira já estava viva,
e sobe, na noite imensa.
e os seus tristes inventores
já são réus – pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja)." [49]
Cecília Meirelles
Hawls define a desobediência civil como um "ato político público, não violento e consciente contra a lei, realizado com o fim de produzir mudanças nas leis ou nas políticas de governo". [50]
Segundo John Rawls, portanto,a desobediência civil trata-se de um ato político, na exata medida em que age "não só no sentido de dirigir à maioria que detém o poder político, mas também porque é um ato orientado e justificado por princípios políticos, isto é, pelos princípios de justiça que regem a Constituição e as instituições em geral". [51]E arremata: "Ao engajar-se na desobediência civil, uma minoria obriga a maioria a ponderar se deseja que suas ações sejam construídas dessa maneira, ou se, à vista do senso de justiça em comum, quer reconhecer as reivindicações legítimas da minoria" [52].
A natureza pública da desobediência civil estaria radicada do fato de que em todas as hipóteses, o ato se dirige aos princípios públicos e é efetivamente realizado em público (não de forma secreta, por ex).
Ocorre que a característica, talvez mais sintomática, da teoria da desobediência civil descrita por John Rawls seja a não violência. O "filósofo do liberalismo" assim se expressa sobre o tema:
"Podemos compará-la ao discurso público e, por ser uma forma de discurso, uma expressão da convicção política profunda e consciente, acontece no foro público. Por este motivo, dentro outros, a desobediência civil é não violenta. Tenta evitar o uso da violência, principalmente contra pessoas, não por ser em princípio contra o uso da força, mas porque é a derradeira expressão da própria argumentação. Praticar atos violentos com probabilidade de ferir e causar danos é incompatível com a modalidade da desobediência civil". [53]
O caráter não violento da desobediência civil constitui um aspecto fundamental da legitimidade da ação mobilizadora, permitindo, inclusive, que a conduta levada a efeito seja justificada e, portanto, se exclua da possibilidade de contra ataque pelo controle punitivo penal.
A observação é extremamente relevante, desde que se apontou neste mesmo ensaio, a problemática envolvendo a profilaxia punitiva do Estado Penal e, consequentemente, as estratégias de criminalização da miséria.
Juarez Cirino dos Santos aponta que
"a situação de exculpação [54] definida como desobediência civil tem por objeto ações ou demonstrações públicas de bloqueios, ocupações etc, realizadas em defesa do bem comum, ou de questões vitais da população, ou mesmo em lutas coletivas por direitos humanos fundamentais, como greve de trabalhadores, protestos de presos e, no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desde que não constituam ação ou manifestações violentar ou de resistência ativa contra a ordem vigente – exceto obstruções e danos limitados no tempo – e apresentam reconhecível com os destinatários respectivos." [55]
E acrescenta:
"Autores de fatos qualificados como desobediência civil são possuidores de dirigibilidade normativa e, portanto, capazes de agir conforme o direito, mas a exculpação se baseia na existência objetiva de injusto mínimo, e na existência de motivação política ou coletiva relevante, ou, alternativamente, na desnecessidade de punição, por que os autores não são criminosos – portanto, a pena não pode ser retributiva e, além disso, a solução dos conflitos sociais não pode ser obtida pelas funções de prevenção especial e geral atribuídas à pena criminal". [56]
Pelo exposto de forma brilhante por Juarez Cirino é possível concluir que a natureza não violenta, considerando o fundamento mobilizador da desobediência, não permite ao Estado – inconformado pela pressão social quanto à política de governo injusta – utilizar-se do direito penal como mecanismo de controle.
Mas note-se que a justificação da desobediência civil possui seus limites e, portanto, deverá respeitar certas condições favoráveis. Avancemos a elas, segundo aponta John Rawls.
Com efeito, a primeira questão cinge-se em saber os tipos de injustiça que são objetos apropriados para a desobediência civil. Neste sentido, indica Rawls que
"a violação do princípio da liberdade igual é, então, o objeto mais apropriado da desobediência civil. Esse princípio define o status comum da cidadania igual num regime constitucional e repousa na base da ordem política". [57]
A consideração é salutar, pois as desigualdades existentes na distribuição equitativa do acesso a terra ofendem diretamente o núcleo do princípio da liberdade igual. Vejamos o que diz a respeito, Rawls:
"Assim, quando se nega a certas minorias o direito de votar ou de ocupar cargos públicos, ou o direito de propriedade e o de ir e vir, ou quando certos grupos religiosos são reprimidos e se negam a outros diversas oportunidades, essas injustiças podem ser óbvias para todos. Integram-se publicamente à prática reconhecida, se não à letra, dos arranjos sociais." [58] (Grifos nossos).
Enfim ratificado que a luta pela ocupação da terra, em vistas a democratização do acesso, constitui modalidade de desobediência civil, será preciso indicar outras condições segundo as quais tal exercício deverá ser reconhecido como totalmente legítimo.
Outra condição propícia a conferir legitimidade à desobediência civil é a necessidade de esgotamento das vias tradicionais de protesto, donde se pode "supor que já se fizeram os apelos normais à maioria política e que fracassaram". [59]
Quanto a esta condição, certamente nem o argumento mais reacionário poderia dar conta de negar todas as tentativas realizadas no sentido de estabelecer uma reforma agrária efetiva e socializante no Brasil.
Desde muito antes de Francisco Julião até os atuais movimentos de luta pela terra, já se tentou de praticamente tudo na via política clássica. Todas as deliberações são absolutamente esmagadas. A denominada ‘bancada ruralista’ no Congresso Nacional brasileiro é extremamente forte, mobilizando-se como um servo intransigente do "agro business", núcleo ideológico do pensamento proprietário feudale, portanto, inescrupulosamente refratária das pretensões inclusivas dos movimentos sociais.
A terceira e última condição para a legitimidade da desobediência civil é a que custa mais caro aos grupos de luta pelo acesso equitativo a terra. Trata-se de um dos pontos principais da teoria da Justiça, qual seja a moderação.
A exigência de moderação atinge a minoria destinada à desobediência civil de duas formas básicas. Em um primeiro aspecto é percebida como mecanismo capaz de construir uma solução ideal teórica em que as minorias – distintas – devem "realizar uma aliança política cooperativa a fim de regular o nível geral de contestação" [60]. Sob esta ótica, a moderação impõe a necessidade de lidar com um problema provável, qual seja a possibilidade de vários grupos minoritários agirem em desobediência civil "provocando distúrbios graves, que poderiam muito bem solapar a eficácia da constituição justa". [61]
Mas convenhamos que este não é o maior inconveniente. O problema mais sério encontra-se na forma pela qual a desobediência civil será exercida, ainda que o seja não violentamente.
Pois bem, encontrar o meio termo entre o excesso e a deficiência no exercício da luta pelo direito de acesso a terra é bastante complexo. O que se tem ao certo é que tanto um quanto o outro não direcionam o indivíduo ao caminho da virtude e poderão ser, ao final, passíveis de críticas e severas restrições [62].
O que se pretende afirmar neste ponto é simplesmente a necessidade de se incorporar a responsabilidade para com os outros membros da sociedade (alteridade), evitando que o ato da minoria em desobediência civil signifique a violação aos direitos de terceiros, muitas vezes alheios ao interesse pela qual se luta.
Será difícil, por óbvio, apontar em que local se encontram tais limites de moderação. Importa saber que existem e que a proporcionalidade das ações levadas a efeito em relação ao fim almejado (acesso democrático a terra) não poderão exorbitar-se. Neste contexto, a ocupação de propriedade não muito extensa, em efusiva produção, certamente não será legítima ainda que realizada de forma não violenta contra as pessoas. Isso porque, não se pode conceber que o alinhamento ideológico dos integrantes dos movimentos sociais – frequentemente contra a produção trangênica, por ex. – sirvam como fundamento para a deflagração desordenada de protestos sociais.
No ponto, fazem-se sábias as palavras de Aristóteles:
"A virtude moral é uma mediania e em que sentido ela o é, a saber, que é mediania entre dois vícios (um do excesso e o outro da deficiência); e que ela é uma tal mediania porque visa atingir o ponto mediano nas paixões e nas ações. É por isso que constitui árdua tarefa ser bom, pois é difícil encontrar o ponto mediano em qualquer coisa." [63]
Por tal ordem de motivos é que se salienta o quanto problemática é a situação de definir parâmetros de moderação à atuação dos movimentos sociais de luta pela terra. Somente o caso concreto poderá apontar a forma pela qual a desobediência civil, sob este aspecto, será legitimamente exercida. [64]
A teoria da desobediência civil, considerada todas as condições apontadas, oferece um importante instrumento para a efetivação dos direitos fundamentais, no caso, a democratização do acesso a terra no Brasil.
Neste contexto, consciente de todos os limites, a ocupação da terra erige-se como mecanismo legítimo de pressão social do Poder, demonstrando sua vital importância ao controle do governante, ora chamado a lembrar do senso de justiça fundador da comunidade política democrática.
CONCLUSÃO:
"Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
(...)
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão".
Chico Buarque.
Dentro da ordem democrática, engasgada pelas tensões sociais, a sublevação da dignidade representada na mobilização popular organizada, constitui o último grande esforço humano no sentido de lembrar que "em nossa opinião sincera e ponderada, as condições da livre cooperação estão sendo violadas" [65].
Não há fuga viável.
A desobediência civil incomoda porque consubstancia abertamente um discurso provocativo (embora, não destruidor) ao status quo. Afinal, não se pode esperar indefinidamente as promessas incumpridas da modernidade.
A luta pela efetivação dos direitos fundamentais que garantem o acesso a terra surge neste contexto. A etapa pós-industrial da globalização na realidade periférica emerge num ambiente desarticulado socialmente, em que a maioria da população, compondo um exército de miseráveis, assiste ao enfraquecimento dos Estados nacionais, aliado à exclusão formal da população pobre dos mecanismos de produção.
O Estado Liberal desfacelou as redes de proteção social, fundou uma sociedade panóptica e refém da insegurança social que ele próprio provocara. O medo do outro se torna uma opção estética e a criminalização da miséria uma estratégia de controle pelo Poder.
Aponta-nos Rawls que, juntamente com eleições livres, um Judiciário independente, com prerrogativas para interpretar a Constituição, a desobediência civil, consciente de seus limites, ajuda a manter e fortalecer as instituições justas. [66]
A razão é simplória: O seu avesso rompe tudo e refunda a própria comunidade política, o que aos fatores reais do poder parece interessar bem menos do que a desobediência civil. Por isto, não é demais dizer que a disposição geral de engajar-se na desobediência civil justificada acrescenta estabilidade à sociedade [67].
Dentro desta perspectiva, a ocupação da terra – como forma de manifestação legítima da desobediência civil – dentro dos limites de justificação, erige-se como importante indutor da maturidade jurídica da democracia constitucional.
Ao tomar para si a potência da transformação, o homem toma consciência da energia emancipatória do Direito, caminha na direção da dignidade e afirma a máxima efetividade dos direitos fundamentais.
Neste momento,
"o sonho de cada um, pessoal, intransferível e indecifrável, floração de um orquidário narcísico numa estufa fechada, acaba por desaguar num oceano simbólico, onde se inauguram os circuitos de intercâmbio coletivo capazes de tecer o tecido da vida social".
Hélio Pellegrino.