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Verdades e mitos em torno da supremacia e da indisponibilidade do interesse público e do dever de ofício de recorrer

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29/02/2012 às 11:23

Resumo:


  • Aborda a distinção entre os interesses do estado e os interesses públicos, destacando a evolução dos conceitos de direitos e interesses públicos primários e secundários.

  • Discute a superestimação da indisponibilidade dos direitos e interesses públicos, propondo um novo critério de classificação desses direitos e interesses.

  • Reflete sobre o dever de recorrer de ofício dos advogados públicos, ressaltando a importância de agir de acordo com a legalidade e a ordem pública, e não apenas em nome da indisponibilidade do interesse público.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A maioria dos direitos e interesses públicos é disponível e não indisponível, ao contrário do que hoje se acredita. Somente são verdadeiramente indisponíveis os direitos e interesses públicos que não podem ser contrariados por norma jurídica; e isso importa em um novo critério de classificação.

RESUMO

Este trabalho aborda o uso indiscriminado dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público para legitimar indeferimentos de requerimentos administrativos e para justificar a interposição de recursos meramente protelatórios e, até mesmo, atentatórios à dignidade humana por parte dos entes públicos. Busca esclarecer o verdadeiro significado de interesse público, estudando a evolução de sua definição e classificando-o em primário e secundário. Desmistifica o princípio da indisponibilidade do interesse público e discorre sobre o suposto dever de ofício que teriam os advogados públicos de interpor recursos em todas as ocasiões, auxiliando, assim, os trabalhadores do direito a fundamentar decisões corajosas que se indisponham contra a forma como o senso comum define o interesse público, na tentativa de promover, dessa forma, a verdadeira justiça.  

Palavras-chave: Princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. Interesse público primário. Interesse público secundário. Dever de ofício. Recurso. 


1 INTRODUÇÃO

A lida diária, na advocacia, proporciona presenciar situações em que os advogados defensores da administração pública parecem totalmente destituídos de sentimentos e, até mesmo, de caráter, aos olhos de um leigo.

Todos os dias veem-se, pelo país afora, pareceres jurídicos recomendando aos administradores públicos a negativa do fornecimento de medicamentos a pessoas em situação de risco de morte e a recusa à entrega de documentos de interesse particular ou público dos cidadãos.

Também se observam, a toda hora, recursos interpostos contra decisões judiciais que obrigam a administração pública a pagar tratamento médico, pensão alimentícia e ou indenizações às vítimas de acidentes e catástrofes que, muitas vezes, são de exclusiva e reconhecida responsabilidade dos poderes públicos.

Avalistas desse proceder odioso, os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público são invocados a todo instante por advogados públicos em seus arrazoados, petições e em entrevistas à mídia, com o propósito de resistir, ao máximo, aos pleitos dos cidadãos.

Em nome do princípio da supremacia do interesse público, argumentam que ele não pode sucumbir ao interesse do particular,[1] pelo que indeferem, sem qualquer razão, inúmeros requerimentos administrativos que constituem verdadeiros pedidos de clemência e misericórdia.

E supostamente em defesa do princípio da indisponibilidade do interesse público, recorrem de todas as decisões proferidas em desfavor do ente público por eles defendido, deixando, muitas vezes, de agir de acordo com o melhor direito e atentando contra a ordem pública.

Mas afinal, que interesse público é esse pelo qual o doente deve morrer sem remédio e a criança deve ficar sem pensão? Trata-se do interesse público secundário, o que será mais adiante explanado. Muitos poderiam argumentar que, em tais casos, não se cuidaria de verdadeiro interesse público, pois que este seria o bem comum, afirmação esta em parte verdadeira, porém, demasiadamente simplória.[2]

Destarte, necessária se faz uma análise mais detalhada do assunto a fim de evitar conclusões precipitadas e errôneas.


2 A EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO

Até bem pouco tempo, não se fazia a menor distinção entre interesses do estado e interesses públicos, pois se considerava que ambos consistiam exatamente na mesma coisa. Portanto, toda vez em que se ampliavam a atuação e a intervenção do estado na sociedade e no domínio econômico, expandia-se também a noção do público em detrimento do privado.[3]

Em razão disso, os mais respeitados manuais de direito administrativo do país acabaram por superdimensionar o espectro de atuação dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.[4]    

Esse distorcido entendimento é decorrente da influência exercida pelo modelo do estado social sobre o direito brasileiro, pois, nesse período, foi escrita a maior parte dos cursos de direito administrativos hoje em voga, mas, com o advento do estado democrático de direito, consubstanciado na CF/88, essa inteligência começou a ceder espaço às novas concepções de direito público, algumas das quais ora se passa a esboçar.[5]

Por tais razões, há de se repensar tudo o que fora formulado a respeito de interesse público até então.


3 DISTINÇÃO ENTRE OS INTERESSES PÚBLICOS PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

Tanto a decisão que, defendendo o erário, recusa o fornecimento de medicamentos a um moribundo, quanto a decisão que o concede em nome do bem-estar da população, estão fundamentadas na supremacia e na indisponibilidade do interesse público.

Ao tomar decisões na suposta defesa do interesse público, nem sempre os governantes fazem o melhor para a coletividade: políticas econômicas e sociais ruinosas, guerras, desastres fiscais, decisões equivocadas, malbaratamento dos recursos públicos e outras tantas ações daninhas não raro contrapõem governantes e governados, Estado e indivíduos.[6]

Muito embora o aparente disparate, não se perca de vista tratar-se de duas distintas categorias de interesse público, e é justamente isso que faz toda a diferença.

Existem, dessa forma, duas diferentes castas de interesse público, quais sejam: O interesse público primário, consistente no complexo de interesses coletivos prevalentes na sociedade, e que pode quase sempre ser concebido como o bem comum; e o interesse público secundário, que é o interesse do ente público que vai a juízo e que, muitas vezes, encontra-se completamente dissociado dos interesses públicos primários e, portanto, dos interesses coletivos.[7]

Interesses públicos primários seriam, portanto, as aspirações de todos os cidadãos e entidades civis por uma vida melhor; ao passo que os secundários seriam os da Prefeitura, da Câmara de Vereadores, do Governo do Estado, da Assembleia Legislativa Estadual, da Presidência da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, do Congresso Nacional, do INSS, da Caixa Econômica Federal e daí por diante.

Fredie Didier, citando Bandeira de Mello, explica que a doutrina traz como um exemplo do paradoxo ora exposto o interesse secundário da administração:

[...] de pagar o mínimo possível a seus servidores e de aumentar ao máximo os impostos, ao passo que o interesse público primário exige, respectivamente, que os servidores sejam pagos de modo suficiente a colocá-los em melhores condições e tornar-lhes a ação mais eficaz e não gravar os cidadãos de impostos além de certa medida [...].[8]

Estabelecida essa imprescindível diferenciação, convém analisar os limites de aplicação dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.


4 DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

4.1 DA SUPREMACIA DO PRIMÁRIO SOBRE O SECUNDÁRIO

Eis que surge uma pergunta: Em um conflito entre interesses públicos, primário e secundário, qual deveria ter supremacia? O primário, obviamente, pois que o bem comum é uma das justificativas mais plausíveis para a existência dos entes públicos.

Todavia, não é possível simplesmente chegar a essa conclusão sem antes realizar algumas inevitáveis ponderações.

Alguns doutrinadores, recentemente, têm sustentado a inexistência de um único bem comum, pois que haveria uma multiplicidade de interesses coletivos que, muitas vezes, se contrapõem. Por exemplo, um empreendimento industrial pode gerar emprego e divisas e, com isso, agradar alguns grupos, mas também tem o potencial de gerar poluição ambiental, desagradando outros.[9]

Contudo, apesar da referida conflituosidade entre os divergentes interesses transindividuais, não se pode negar a existência de um bem comum composto pelos direitos e interesses coletivos que melhor conduzam ao bem-estar social, ainda que, em um primeiro momento, não se consiga compor todos os interesses em jogo.[10]     

Assim sendo, negar a existência dos direitos e interesses públicos primários somente viria a agravar a superposição dos direitos e interesses públicos secundários em relação às aspirações da coletividade. 

Mas, enfim, um direito ou interesse público primário não poderia ser restringido em favor de outro direito e interesse de mesmo matiz? Ou mesmo em favor de um direito e interesse público secundário? Obviamente que sim, é o que ocorre com o estado de sítio, por exemplo, situação em que são cerceados alguns direitos e garantias fundamentais visando à preservação da existência do estado, como ente público, com vistas à manutenção da ordem constitucional vigente e à consecução das pretensões sufragadas no texto maior.[11]

Portanto, mesmo a bem aceita assertiva de que os direitos e interesses públicos primários se justapõem aos secundários deve ser cautelosamente sopesada.


5 A INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

5.1 DA INADEQUAÇÃO DA ATUAL CLASSIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA

A atual classificação doutrinária de direitos e interesses públicos em disponíveis e em indisponíveis suscita questionamentos que até o presente momento não puderam ser respondidos.

Ao servidor público é desde sempre ensinado que não se pode dispor livremente dos bens, direitos e interesses públicos, pois que geralmente eles são indisponíveis, podendo ser disponibilizados somente por meio de lei. Mas quais seriam os direitos e interesses públicos que não precisam de lei para ser disponibilizados? Embora alguns entendam que a resposta dessa pergunta está no poder discricionário do administrador público,[12] sabe-se que o amplexo deste é muito pequeno, comparativamente ao imenso universo dos atos administrativos.

Afirma-se, também, com certa frequência, que os direitos públicos são, predominantemente, indisponíveis e os privados, em regra, disponíveis.[13]

Contudo, admite-se não existirem critérios uniformes e seguros que distingam os bens disponíveis dos bens indisponíveis.[14]

Ademais, reconhece-se que a separação e classificação dos direitos públicos como indisponíveis e dos interesses privados como disponíveis não é adequada, pois, da mesma forma que há interesses públicos disponíveis, existem interesses privados indisponíveis.[15]

E ainda concernente ao assunto, a doutrina convencionou dizer que os interesses públicos primários seriam indisponíveis e que os secundários seriam, em princípio, indisponíveis, podendo se tornar disponíveis por meio de lei.[16]

Nessa esteira de pensamento, o direito sobre o qual se transige nos juizados especiais criminais seria o jus puniendi estatal e não o direito à segurança individual ou coletiva, arrolado entre os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, o que está longe de ser um absurdo.

As dificuldades de se estabelecer uma clara distinção entre os direitos e interesses públicos disponíveis e os indisponíveis levam a crer que, se existe um critério seguro a ser adotado com esse propósito, o tal ainda não fora descoberto, pois, do contrário, não haveria tanto dissenso e tamanhas dificuldades no manejo e no implemento dos métodos ora aceitos.

5.2 DA IDEAL CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS E INTERESSES PÚBLICOS

Imagine-se que, enquanto para o particular, os direitos indisponíveis são aqueles do quais não se pode dispor por meio dos atos inerentes à capacidade civil; para o ente público, os direitos e interesses indisponíveis são, na verdade, aqueles sobre os quais não se pode dispor por meio de norma jurídica. Ou seja, não seria a norma jurídica que tornaria um direito disponível, mas ele próprio já o seria, permitindo, portanto, a edição de norma jurídica a seu respeito.

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Em outras palavras, da mesma forma que uma pessoa não poderia alienar um de seus órgãos por meio de contrato, submeter-se a uma situação análoga a de escravo por ato voluntário, ou renunciar à própria vida, cometendo suicídio em benefício de terceiro; os entes públicos não poderiam editar norma jurídica que visasse abolir a forma federativa de governo, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais, bem como suprimir o voto direto, secreto, universal e periódico.

Adotada essa maneira de pensar, surgiria uma perfeita simetria entre os direitos indisponíveis do particular e os direitos indisponíveis dos entes públicos, muito embora se reduzisse, drasticamente, o espectro destes últimos.

Nesse novo cenário, mesmo a constatação empírica de que os interesses públicos são, geralmente, indisponíveis enquanto os particulares são, em regra, disponíveis mereceria ser repensada. No entanto, uma maior congruência seria alcançada na relação entre os referidos conceitos e ideias.

Em defesa da atual concepção da disponibilização por meio de norma jurídica, alguns poderiam afirmar que os direitos, os interesses e os bens da administração pública são alienados por meio de negócios jurídicos, tal qual ocorre com os particulares, mas que, no caso da administração pública, esses instrumentos contratuais somente poderiam ser firmados com prévia autorização legal.

Aqui não se questiona a necessidade de permissão legal para a celebração de avenças diversas pela administração pública, contudo, escapa-se a esse argumento equiparando-se a lei autorizadora da celebração de contrato à manifestação da vontade do particular em contratar, afinal, não se podem confundir as aspirações dos administradores com os anseios da administração; e as normas jurídicas constituem a melhor maneira de expressar as pretensões do poder público.

A explicação de que o princípio da indisponibilidade do interesse público impediria o ente público de transigir com o particular seria, dessa forma, descartada, pois que não seria ele verdadeiro empecilho a tal propósito, senão a inexistência de correspondente previsão legal autorizativa.[17]

Logo, se não existe a possibilidade de transação em um processo, geralmente, não é porque o interesse público lá discutido seja indisponível, mas simplesmente porque não há previsão legal a autorizá-la. Houvesse tal permissão normativa, muito provavelmente seria celebrada a composição.

Afinal, os defensores da coisa pública são, antes de tudo, funcionários públicos, estando, pois, adstritos ao princípio da legalidade. Por esse princípio, enquanto o particular pode fazer tudo o que a lei não lhe proíbe, ao servidor público somente é dado praticar os atos que lhe são autorizados por lei.[18]

Destarte, o outrora mencionado poder discricionário do administrador não representaria uma verdadeira relativização do princípio da indisponibilidade do interesses público, senão uma mitigação do princípio da legalidade estrita.

Outrossim, parece ter ocorrido uma tremenda confusão entre a aludida e combatida disponibilização dos direitos e interesses públicos por meio de lei e o fenômeno jurídico da desafetação, bem presente no direito administrativo; uma vez que neste, por meio de norma jurídica, um bem público deixa de ter destinação específica, passando a integrar a categoria dos bens dominicais, podendo ser alienado a partir de então, desde que observados os demais requisitos legais.[19]  

O fato é que a tradição brasileira atribui à lei extraordinários poderes; com ela não somente se declara a licitude ou ilicitude de uma conduta, se constituem ou se extinguem as relações jurídicas, mas também se costuma violar as leis naturais e o bom senso. Portanto, a lei torna disponível um direito da mesma forma que considera bens imóveis os navios e os aviões, ou seja, inaugurando uma mera ficção jurídica.


6 DO DEVER DE OFÍCIO DE RECORRER

As leis processuais vigentes dão às partes, igualmente, sejam elas particulares ou entes públicos, as faculdades de contestar, impugnar e recorrer, sem a nada obrigá-las, contudo.

Ora, mesmo o princípio da legalidade não é inteiramente respeitado pelos advogados públicos, pois que, embora a lei proíba os embargos meramente protelatórios, considerável parcela dos tais é useira e vezeira desse tipo de expediente.

Destarte, se um advogado público resiste a uma pretensão ou recorre de uma decisão não é porque simplesmente é obrigado a tanto pelo princípio da indisponibilidade do interesse público, mas porque entende por bem de fazê-lo e, afinal, deve procurar desempenhar suas funções com a devida probidade.

Certamente, a maioria dos defensores de entes públicos teme mais incorrer nas disposições do Código Penal que tratam dos crimes praticados pelo funcionário público contra a administração, do que afrontar o famigerado princípio da indisponibilidade do interesse público, que acabou por se tornar o coringa do baralho, o coelho da cartola do administrador público.

E assim, alguns servidores, temendo a prática de um ilícito, acabam por cometer verdadeiras atrocidades, tudo sob o pálio dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, equivocadamente interpretados. Enfim, ao que tudo indica, os tais preocupam-se mais com o destino de seus próprios empregos do que com as consequências de suas atitudes em relação a terceiros.

Aliás, o instituto do reexame necessário, além salvaguardar o interesse público,[20] se primário ou secundário não se sabe, serve muito bem para proporcionar aos advogados públicos a liberdade de convicção acerca do cabimento de recursos. Ideia esta que ora se defende.


7 DO VERDADEIRO CARÁTER DA ADVOCACIA PÚBLICA

Parece não haver diferença entre o trabalho de um carrasco que, com o tiro de um fuzil, com uma injeção letal ou com o apertar de um botão, tira a vida de um condenado à morte; e o trabalho de um procurador que apresenta pareceres contrários aos sacrossantos ditames da Constituição Federal, supostamente enganchados nos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, é óbvio.

Talvez a única diferença existente entre a figura do referido algoz e a desse tipo de advogado seja o fato de que o carrasco, geralmente, tem a coragem de mirar o semblante de suas vítimas, enquanto essa casta de causídicos costuma se ocultar atrás das escrivaninhas alocadas nos interiores dos quase inacessíveis gabinetes das pouco receptivas repartições públicas.

Muitos poderiam argumentar que esse demasiado apego de alguns advogados públicos aos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público justificar-se-ia pelo receio que têm de perder seus empregos ao contrariar frontalmente os interesses da pessoa do administrador.

Apesar de esse risco existir realmente, seria essa uma justificativa válida para a adoção desse tipo de conduta por parte de advogados públicos concursados e, portanto, efetivos? É evidente que não, pois eles se assim o fazem, não é por verdadeira necessidade, senão por comodidade e conveniência, pondo em risco não penas sua boa fama e honradez, mas a própria administração da justiça!

Talvez essas palavras caiam como sal sobre as feridas de muitos advogados públicos, mas mesmo o sal, apesar de dolorido, tem reconhecidos efeitos terapêuticos!

Há de se lembrar que a mentalidade do advogado deve ser predominantemente crítica e combativa, como geralmente não pode ser a mentalidade de um  empregado, para o qual a defesa das causas constitua uma monótona rotina de escritório em vez de uma questão de reputação profissional.[21]

Entretanto e lamentavelmente, o Superior Tribunal de Justiça, nos últimos anos, vem imputando aos procuradores públicos o dever de ofício de recorrer de decisões, mesmo que para alcançar a pretensão de que esteja em dissonância com a jurisprudência dominante, e entendendo, assim, não se aplicar às fazendas públicas os preceitos relativos à litigância de má-fé.[22]

E, assim, o advogado, profissional indispensável à administração da justiça, dotado de múnus público e supostamente detentor de imparcialidade no exercício de suas funções, se vê impedido de decidir, ainda que de acordo com a lei e de forma fundamentada, quais as pretensões a que deve resistir e quais os recursos que deve interpor; tudo em nome de uma nefasta praxe recursal e de uma insaciável sanha litigiosa!

Os administradores e advogados públicos que se arvoram como defensores desse tacanho modus operandi recorrem à ideia de que o processo judicial é apto para legitimar sua conduta e referendar seus atos administrativos, pois que eminentemente dialético, esquecendo-se, todavia, que o processo administrativo e o legislativo também comportam dialeticidade. Com isso, os tais acabam por transferir ao poder judiciário a função de controle externo de seus atos, bem como a responsabilidade por uma considerável parte destes.[23]

Outrora, quando era notadamente do interesse dos entes públicos, para não dizer dos administradores, defendeu-se, com unhas e dentes, a isonomia entre os profissionais da advocacia privada e da pública, bem como a inviolabilidade dos advogados públicos no exercício profissional, quando nova redação do parágrafo único do art. 14 do CPC buscou impedi-los de obstruir a justiça.

Art. 14:6b. Impugnação ao § ún. do art. 14 do CPC, na parte em que ressalva os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB da imposição de multa por obstrução à Justiça. Discriminação em relação aos advogados vinculados a entes estatais, que estão submetidos a regime estatutário próprio da entidade. Violação ao princípio da isonomia e ao da inviolabilidade no exercício da profissão. Interpretação adequada, para afastar o injustificado descrímen. ADI julgada procedente para, sem redução de texto, dar interpretação ao § ún. do art. 14 do CPC conforme a CF e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos. STF-Pleno: RF 372/247 e Bol. AASP 2.391/3.257). No mesmo sentido: STJ-6ª T., Al. 392.932-AgRg-EDcl-EDcl, Min. Nilson Naves, j. 11.9.08, DJ 17.11.08. Assim, p. ex., “os procuradores federais estão incluídos na ressalva do § ún. do art. 14 do CPC” (STF-Pleno, Rcl 7.181, Min. Cármen Lúcia, j. 20.5.09, maioria, DJ 21.08.09).[24]

Por que agora não se defende a isonomia e a inviolabilidade profissionais de forma a possibilitar ao advogado público agir de acordo com a sua consciência e ao mesmo tempo para o bem da coletividade? Obviamente, não é em virtude da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, assuntos suficientemente já abordados neste singelo trabalho, mas unicamente pela manutenção do atual estado de coisas, em que os administradores públicos administram de costas para o povo.

Aqui não se advoga licença de o advogado público agir, a seu bel-prazer, nos feitos em que atua; tampouco consiste o presente ensaio em defesa de um falso moralismo ou mesmo em uma utopia ufanista, mas busca preservar, senão recuperar, o respeito à autoridade das decisões e pareceres dos advogados públicos conscientes de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição Federal.        

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Sobre o autor
Wesley Corrêa Carvalho

Advogado militante. Ex - Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Governador Lindenberg (ES). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Wesley Corrêa. Verdades e mitos em torno da supremacia e da indisponibilidade do interesse público e do dever de ofício de recorrer. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3164, 29 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21180. Acesso em: 22 dez. 2024.

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