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A prescrição no Direito Penal e o recebimento da denúncia ou queixa-crime. Uma proposta de solução da controvérsia à luz do princípio do "favor rei"

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Qual o exato momento em que se considera recebida, pelo juiz, a denúncia ou queixa para efeito de se determinar o momento da interrupção da prescrição da pretensão punitiva?

A prescrição no Direito Penal desponta como causa de extinção da punibilidade, prevista no artigo 107, inciso IV, do nosso Código Penal brasileiro (Dec.-Lei n. 2.848/40).

Em seu conceito, ousamos descrevê-la como a perda do poder estatal de punir ou de executar a pena ou medida de segurança imposta, em razão da consumação de determinado lapso temporal antes da prática de atos processuais que, legalmente previstos, operam sua interrupção.

Inolvidável enfrentarmos este tema à luz da natureza constitucional deste instituto, uma vez que, embora não tenha a Carta Magna previsto explicitamente a garantia da prescritibilidade das infrações penais como uma garantia individual do cidadão, a ser obedecida tanto pelo legislador quanto pelos órgãos judicantes, pode inferir tratar-se ela de uma consagração implícita do legislador constituinte que, por vias transversas, plasmou em seu texto, em rol taxativo, a imprescritibilidade de apenas duas infrações penais: racismo (art.5º, XLII) e terrorismo (art.5º, XLIV).

Em ementa da lavra do falecido Ministro do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa, no julgamento plenário do Habeas Corpus n. 82.424, fez-se alusão ao princípio da prescritibilidade geral dos crimes (Plenário, DJ 19/03/2004).

A prescrição pode ser de duas modalidades: prescrição da pretensão punitiva, que se relaciona ao direito de o Estado infligir ao indivíduo uma condenação criminal; ou prescrição da pretensão executória, que se define como a perda do direito de o Estado executar a condenação a uma pena ou medida de segurança, definitivamente imposta.

A prescrição da pretensão punitiva (ou simplesmente prescrição punitiva) pode ser de três sub-ordens: a-) prescrição punitiva propriamente dita, que é aquela que ocorre no decorrer da ação penal, e que se guia pela pena máxima cominada em lei para aquele crime ou contravenção; b-) prescrição punitiva intercorrente ou superveniente, em que se opera a perda do direito punitivo do Estado após o trânsito em julgado da condenação para a acusação, ou após improvido seu recurso, e que se guia pela pena concretamente fixada na sentença condenatória; e, por fim, c-) prescrição punitiva retroativa, que parte do pressusposto de já haver, assim como ocorre com a prescrição intercorrente, uma condenação trânsita em julgado para a acusação (ou o improvimento de seu recurso de apelação), de forma que, guiando-se pelo quantum de pena ou medida de segurança concretamente fixado em sentença, volta-se para as fases anteriores à sentença condenatória.

A prescrição da pretensão executória implica na perda de o Estado executar, mediante a aplicação da pena ou medida de segurança, a sentença condenatória definitivamente imposta, consolidada pelo trânsito em julgado para a acusação e para a defesa.

Muito embora instigante o aprofundamento das peculiaridades, traços distintivos, e regramentos próprios de cada uma destas modalidades de prescrição em matéria penal, o presente estudo visa expor apenas um aspecto polêmico envolvendo a aplicação prática deste instituto frente à definição do que venha a ser o recebimento da denúncia ou queixa no Processo Penal, sugerindo-se a solução da controvérsia à luz do princípio do favor rei.

A partir da reforma legislativa, operada com a edição das Leis n.11.719/2008 e 11.689/2008, passou a existir no Código de Processo Penal uma nova fase processual nos ritos comuns ordinário e sumário, bem como no rito especial do Tribunal do Júri, consistente na apresentação de resposta escrita pelo acusado, após oferecida denúncia ou queixa-crime, nos termos do artigo 396 e artigo 406 do Codex.

Anteriormente a esta inovação legislativa, o que tínhamos no ordenamento processual penal era o artigo 394 do Código, que em sua antiga e original redação dispunha, simplesmente, que “o juiz, ao receber a queixa ou denúncia, designará dia e hora para o interrogatório, ordenando a citação do réu e a notificação do Ministério Público e, se for o caso, do querelante ou do assistente.”

Dessa forma, ante a inexistência de qualquer oportunidade de defesa preliminar ou liminar em favor do denunciado ou querelado, no momento do recebimento da denúncia ou queixa pelo juiz, tornava-se tarefa fácil do intérprete e operador da norma identificar qual seria o ato judicial consistente no recebimento da denúncia, para todos efeitos processuais pertinentes, especialmente o de verificar o momento da interrupção da prescrição punitiva, nos termos do artigo 117, inciso I, do Código Penal (“o curso da prescrição interrompe-se pelo recebimento da denúncia ou queixa”).

Com a reforma, o rito processual comum e especial do Tribunal do Júri passou a contar com mais uma garantia em favor dos acusados criminalmente, qual seja a de possibilitar-lhes a apresentação, tão-logo tomassem conhecimento da denúncia ou queixa-crime contra si oferecida, de uma defesa que pode contemplar tanto preliminares de mérito, quanto a juntada de documentos, arrolação de testemunhas, apresentação de justificativas, bem como a suscitação de qualquer matéria de defesa que lhes convenha, nos termos dos artigos 396-A e 403, §3º, do mesmo diploma legal.

Dessa forma, se de um lado o legislador estendeu para a ampla generalidade dos acusados em procedimentos criminais uma garantia que antes era franqueada apenas a acusados de determinados delitos (crimes da Lei de Drogas, crimes praticados por funcionário público, etc.), doutro lado criou-se um problema de exegese da Lei Processual Penal, consistente na ambivalência conceitual do termo “recebimento da denúncia”. E tal ambivalência conceitual pode gerar dúvidas que afetarão, sensivelmente, a análise acerca da ocorrência da prescrição, tanto a calculada sobre a pena em abstrato, quanto a denominada retroativa.

  Explica-se.

  O código de Processo Penal descreve, em dois momentos processuais distintos, a prática de um ato judicial que, aparentemente, importaria no recebimento da denúncia ou queixa-crime.

 Primeiramente, na redação do caput do artigo 396, reza o legislador que, verbis “nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação...” (destaque nosso). Redação similar, mas não idêntica, é repetida no artigo 406, caput, do Codex, que rege o procedimento especial do Tribunal do Júri.

Em adição, e de forma harmônica com os dispositivos acima retratados, temos o artigo 397 do Código de Processo Penal, que elenca hipóteses em que deverá o juiz absolver sumariamente o acusado, sendo elas causas excludentes de ilicitude do fato, de culpabilidade (exceto a inimputabilidade), atipicidade, e existência de causa extintiva da punibilidade penal.

Noutro vértice, o mesmo Código de Processo Penal, Decreto-Lei n.3.689/41, dispõe em seu artigo 399, caput, que, verbis “recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente” (destaque nosso).

Em termos práticos, exsurge do cotejo entre esses dispositivos legais séria e fundada controvérsia, a partir da dúvida: qual o exato momento em que se considera recebida, pelo juiz, a denúncia ou queixa para efeito de se determinar o momento da interrupção da prescrição da pretensão punitiva, nos termos do artigo 117, inciso I, do Código Penal?

E não se ignore a importância e pertinência prática do tema ora exposto, porquanto não raro tem-se um longo intervalo temporal entre o despacho judicial que determina a citação do acusado para responder à denúncia ou queixa, e a decisão judicial que rejeita os argumentos defensivos nos moldes do artigo 399 do Codex, recebendo a denúncia ou queixa, intervalo temporal este que pode ser imputado à dificuldade de se encontrar o acusado para sua citação, a demora pelo Poder Judiciário na apreciação da resposta inicial escrita apresentada, etc. etc.

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E, nestes casos, considerando-se como um ou outro o momento do recebimento da denúncia ou queixa, poder-se-á ter uma resposta negativa ou positiva à consumação da prescrição punitiva do Estado.

Muito embora ainda não se tenha formado jurisprudência acerca desta quaestio juris, a doutrina já se avançou na análise do tema, já havendo correntes de jurisconsultos em um e outro sentido.

Rogério Greco e Paulo Rangel são duas das vozes que sustentam que o efetivo recebimento da denúncia ou queixa operaria-se após a apresentação de resposta escrita pelo acusado, ato judicial este previsto no artigo 399 do Codex, já transcrito acima. Rogério Greco expõe em sua obra, Curso de Direito Penal, o posicionamento de Nereu José Giacomolli, no sentido de que o recebimento da denúncia seria aquele previsto no artigo 396 do nosso Código de Processo Penal (Parte Geral, Vol. I, Ed. Impetus, p.749).

Na mesma obra, Rogério Greco transcreve o pensamento sempre festejado de Paulo Rangel, cujo registro é de rigor neste trabalho:

“Não há dúvida de que o legislador cometeu uma falta grave dentro da área da redação do recebimento da denúncia e merece um cartão vermelho. A denúncia apenas é recebida no art.399 e a razão é simples:

A uma, quando a denúncia é oferecida, o juiz determina a citação do réu para responder à acusação.

A duas, oferecida a resposta prévia, é chamado a se manifestar sobre a presença ou não das causas mencionadas no art. 397, isto é, se absolve sumariamente ou não o acusado

A três, não absolvendo sumariamente o réu, aí sim o juiz recebe a denúncia e determina audiência de instrução e julgamento.

Perceba que são passos, coerentes, que devem ser dados pelo juiz. Não faz sentido o juiz receber a denúncia no art. 396 e citar o réu para oferecer a resposta prévia. Por que a resposta prévia então?” (ibi idem, p.750)

E arremata este processualista:

“A expressão recebê-la-á do art.396 não significa tecnicamente juízo de admissibilidade da acusação, mas sim o ato de ‘entrar na posse’ da petição inicial penal. Recebe em duas mãos a petição inicial. Se a denúncia é distribuída à vara criminal, ela é entregue ao juiz que a recebe em suas mãos, sem exercer ainda o juízo de admissibilidade” (ibi idem, p.750)

Percebe-se, contudo, que a controvérsia instaurada possui densa razão de ser, uma vez que, com efeito, as locuções legais, contidas dentro de um mesmo código de processo, guardam não apenas um conflito aparente, mas quiçá um conflito real de normas processuais, pois que em duas passagens - uma no artigo 396, caput (e 406, § 3º) e outra no artigo 399, caput - o legislador atribuiu o mesmo vocábulo verbal a dois atos judiciais distintos, muito embora apenas utilize conjugação gramatical diversa (em uma faz uso da mesóclise no futuro do presente ‘recebê-la-á’, e noutra o uso do particípio do passado ‘recebida a denúncia ou queixa´).

Ora, ainda que se urdam argumentos dos mais lógicos e precisos em ou noutro sentido, permanecerá, a nosso ver, acesa a discussão interpretativa na definição do exato momento em que se terá por recebida a denúncia ou queixa.

O objetivo do presente trabalho é o de analisar e propor a definição do que venha a ser o recebimento da denúncia ou queixa no Processo Penal, especificamente para fins da verificação da ocorrência de prescrição punitiva, seja ela retroativa ou propriamente dita (aquela guiada pela pena máxima em abstrato).

E, nesse ponto, entendemos que, para se pôr fim à celeuma doutrinária, o dispositivo insculpido no artigo 117, inciso I, do Código Penal, deveria sofrer alteração legislativa, passando a ser vazado nos seguintes termos: “O curso da prescrição interrompe-se pelo recebimento da denúncia ou da queixa, nos termos do artigo 396 e 406, §3º do Decreto-Lei n.3.689/41” ou “O curso da prescrição interrompe-se pelo recebimento da denúncia ou da queixa, nos termos do artigo 399 do Decreto-Lei n.3.689/41”.

À míngua de uma solução legislativa nos termos acima propostos (de lege ferenda), a deficiente redação do Código de Processo Penal vigente será, neste ponto, um manancial de dúvidas e embates doutrinários e jurisprudenciais, o que decerto resultará em insegurança jurídica para acusados em procedimentos criminais, acusados estes que gozam, conforme salientado acima, de uma verdadeira garantia constitucional fundamental à prescritibilidade dos crimes e contravenções penais pelos quais são processados.

E, na linha da principiologia e das regras de hermenêutica que imperam no Direito Penal, bem como no Direito Processual Penal, o princípio do favor rei vem ao lume a fim de determinar a interpretação que soe mais benéfica ao acusado, uma vez que se tem no caso uma dúvida legal, a nosso ver, intransponível na fixação do marco interruptivo da prescrição.

Fernando Capez pontifica em breves linhas que “A dúvida sempre beneficia o acusado. Se houver duas interpretações, deve-se optar pela mais benéfica.” (Curso de Processo Penal, 16ª Ed., Ed.Saraiva, p.39).

Como, em regra, a interrupção da prescrição pelo recebimento da denúncia nos termos do artigo 399 do CPP mostra-se mais favorável ao acusado, uma vez que é a que ocorre posteriormente ao despacho do artigo 396, podendo no intervalo entre os dois despachos ter se consumado a prescrição, entendemos ser a decisão do artigo 399 o seu marco interruptivo, até que o legislador promova a alteração oportuna, conforme acima sugerido.


Bibliografia:

Capez, Fernando: Curso de Processo Penal; 16ª Ed., Ed. Saraiva.

Greco, Rogério: Curso de Direito Penal; Parte Geral, Vol. I, 11ª Ed., Ed. Impetus.

De Jesus, Damásio: Código Penal Anotado; 20ª Ed., Ed. Saraiva.

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Sobre o autor
Sérgio Murilo Fonseca Marques Castro

Defensor Público Federal em Teresina (PI). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Anhanguera, em Taubaté (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Sérgio Murilo Fonseca Marques. A prescrição no Direito Penal e o recebimento da denúncia ou queixa-crime. Uma proposta de solução da controvérsia à luz do princípio do "favor rei". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3164, 29 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21181. Acesso em: 21 nov. 2024.

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