3. LEX SPECIALIS E A ANTINOMA REAL
As implicações sociais, culturais e econômicas da modernidade têm proporcionado profundas modificações nos ordenamentos jurídicos contemporâneos no que diz respeito aos direitos difusos e coletivos. Nesse sentido, cf. Almeida (2003, p. 4), amplas e substanciais modificações nas relações de consumo, incluindo uma nova postura em relação à legitimidade ativa e quanto ao reconhecimento de uma hipossuficiência do consumidor em face de uma nova realidade do mercado de produtos e serviços, conduziram ao surgimento de uma tutela jurídica específica, as normas de proteção aos direitos do consumidor.
Essa vulnerabilidade também é ressaltada por Grinover e Benjamim (1998, p. 6-7), como uma das maiores desvantagens que a sociedade de consumo (do consumo de “massa”) trouxe para a situação do consumidor, pois se antes ele se encontrava em posição de relativo equilíbrio e poder de barganha frente ao fornecedor, hoje este, sobretudo as grandes empresas, é quem assume posição de dominância na relação de consumo, sendo assim imprescindível a intervenção do Estado para garantir uma tutela jurídica integral e dinâmica do consumidor. Portanto, toda norma de proteção ao consumidor tem como fundamento essa necessidade de reequilibrar a relação de consumo, em plena consonância com o princípio da isonomia.
A Constituição Federal de 1988 é, sem dúvida alguma, enfática quanto à tutela dos direitos do consumidor, sobretudo pelo que dispõe no art. 5º, XXXII: O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. Notadamente, temos aqui um direito fundamental (do indivíduo-consumidor), bem como um dever do Estado de atuar na defesa e proteção do consumidor. Esta situação, que comentamos anteriormente, apresenta-se na forma de uma relação jurídica específica, caracterizada por uma vulnerabilidade técnica, jurídica ou fática (MARQUES, 2002) do consumidor em relação ao fornecedor, vale dizer, uma presunção legal de desigualdade entre as partes. Observe-se que esta é, fundamentalmente, uma espécie de relação jurídica especial, pois frontalmente contrária ao princípio geral de igualdade das partes no direito privado. Assim, o Estado assume a função de regular tais situações de forma específica, visando a garantir ao consumidor a proteção jurídica que promova o equilíbrio, ou pelo menos diminua o desequilíbrio, na relação jurídica.
Toda relação de consumo é, em sentido amplo, uma relação de direito civil e, muitas vezes, também uma relação de direito comercial, pois é possível sua ocorrência no âmbito de uma atividade empresarial. Portanto, o direito do consumidor se aplica em uma situação jurídica específica, na qual encontramos o fornecedor, o consumidor e a situação de vulnerabilidade, pois, não existindo essa situação especial, aplicam-se as normas do direito civil e comercial, conforme o caso. Trata-se, assim, da típica situação a qual Bobbio (1995, p. 96) faz menção em sua definição de norma especial, em que as pessoas (consumidor) que se encontram em um categoria distinta ou um situação diferenciada (vulnerabilidade), em comparação com as situações mais gerais, recebem do ordenamento jurídico um tratamento também diferenciado, portanto mais justo, naquele processo gradual de especialização do ordenamento descrito pelo ilustre jusfilósofo. Portanto, o direito do consumidor, sobretudo o CDC, sua fonte principal, constitui-se como estatuto jurídico especial.
Sabe-se, contudo, que o Código de Defesa do Consumidor contém normas gerais e princípios que regulam a aplicação do direito do consumidor. No entanto, essa característica não torna o CDC uma norma geral, considerando o âmbito de aplicação do direito privado, justamente porque o próprio direito do consumidor tem natureza específica, isto é, a própria situação jurídica tutelada é específica.
Decerto, algunas normas podem ser consideradas especiais em relação ao CDC, mas desde que sejam, necessariamente, normas de defesa do consumidor, isto é, o CDC poderá ser, e somente neste caso, considerado norma geral em relação a norma específica de defesa do consumidor, mas não em relação a normas de outra natureza, vale dizer, de outros ramos do direito, como o civil ou comercial.
Desse modo, ao pretexto de que o CDC seria norma aplicável às relações de consumo “em geral”, não se deve inferir o atributo de generalidade a ser considerado na solução de antinomias, muito embora seja possível a existência de normas de defesa do consumidor mais específicas, as quais, sendo de mesmo nível hierárquico, e havendo efetiva antinomia, poderão, pelo critério de especialidade, prevalecer sobre o CDC, repita-se, desde que se configurem efetivamente como norma de defesa do consumidor.
A lei 8.245/91, por sua vez, regula especificamente os contratos de locação de bens imóveis urbanos, conhecida, assim, como lei do inquilinato. Sem muita controvérsia, podemos afirmar que se trata de norma especial, pois estabelece um estatuto próprio para uma determinada espécie de contrato. Destarte, percebe-se a incidência, sobre a mesma relação contratual, de dois estatutos jurídicos distintos e, em tese, especiais. Como já dissemos, tal situação normalmente conduzirá a uma aplicação concomitante e harmonizável das duas leis, pois tratam de aspectos diferentes dessa relação contratual.
Contudo, há que se considerar a possibilidade de antinomia. Nesse sentido, o problema da generalidade ou especialidade deve sempre ser enfrentado no âmbito de aplicação a uma determinada relação jurídica, sobre a qual venha a incidir uma outra norma, com solução contrária à da primeira. Analisa-se, pois, uma norma em face de outra, e não isoladamente. Uma norma dita especial pode, em certos casos, ser considerada geral quando em conflito com uma norma mais específica, pois, como já dito, podem existem diversos graus de especificidade no regramento da diversas situações. O questionamento necessário, portanto, será: dada uma relação jurídica entre fornecedor e consumidor, em caso de uma antinomia, o Código de Defesa do Consumidor em relação à lei 8.245/91 seria norma geral ou especial?
Evidentemente, a referência para a comparação só poderia ser a própria relação jurídica, isto é, são os aspectos generalizantes e distintivos (ou especializantes) dessa relação jurídica que nos conduzem a uma definição sobre qual das normas é específica. Entretanto com o mesmo método analítico lógico-formal podemos chegar a conclusões contrárias.
No caso, um contrato de locação de bem imóvel constitui relação jurídica de direito privado, de natureza contratual, cuja espécie de contrato é regulada pela lei 8.245/91. Contudo, os contratos de locação de bens imóveis poderão se realizar entre partes que se encontrem em condições de igualdade (relação de direito civil ou empresarial), ou podem envolver uma empresa (imobiliária) e um indivíduo, o locatário (consumidor), configurando uma relação de consumo. Observe-se, então, que, além da espécie da contrato, pode-se ter um outro aspecto especificador, ou seja, mais um nível de especificação, que seria a relação de consumo (fornecedor e consumidor). Com isso, teríamos o CDC como norma especial.
No entanto, em sentido oposto, valendo-se da mesma lógica argumentativa, poderíamos dizer que também existem relações de consumo que não são locações de bens imóveis. Isto é, a relação contratual teria como aspecto especializante a relação de consumo. Mas, dentre as relações de consumo existem diversas espécies de contrato, de forma que este tipo de contrato (locação de bens imóveis) seria mais um nível de especialização do contrato, indo além de sua especificação como relação de consumo, pelo que, então, por esse raciocínio, deveria ser regulado pela lei 8.245/91, como norma especial. Enfim, com raciocínios de mesma estrutura argumentativa, puramente lógico-formal, poderíamos chegar a resultados opostos.
Evidentemente, esse processo analítico lógico-formal afigura-se insuficiente e, se aplicado de modo parcial, poderia conduzir a conclusões equivocadas sobre o problema da generalidade e especialidade dessas duas leis, isso porque ambas são especiais e seus campos de aplicação apresentam-se (ambos) apenas em parte coincidentes, isto é, estão vinculados em uma forma de intersecção, fazendo aqui uma analogia às relações entre conjuntos na matemática, ou seja, nenhum desses campos de incidência está contido no da outra norma. Ora, só existe uma relação entre geral e específico, quando podemos incluir o campo de aplicação do específico dentro do campo de aplicação do geral, ou seja, se A é geral e B é específico em relação a A, logo B está contido em A. No caso em tela, não encontramos esse requisito lógico, pois os campos de aplicação das duas leis coincidem apenas parcialmente.
Temos então uma espécie de antinomia semelhante ao que Alf Ross (2000, p. 158) chama de inconsistência parcial-parcial, isto é, quando cada uma das duas normas possui um campo de aplicação que em parte entra em conflito com a outra, mas em outra parte não são produzidos conflitos. Os campos de aplicação correspondem a dois círculos secantes.
Nessa situação os critérios tradicionais são insuficientes, pois: as normas são de mesmo nível hierárquico; não se aplica o critério cronológico, já que as leis tratam de matérias distintas e mesmo nos pontos em que eventualmente coincidam elas têm fundamentos totalmente diversos, pois enquanto uma dá proteção ao consumidor, a outra trata de aspectos estruturais da relação contratual; e, como vimos, não seria aplicável o critério de especialidade, pois as duas leis contém regras que se aplicam, da mesma forma, tanto nos pontos coincidentes quanto no âmbito de aplicação não coincidente. Na classificação proposta por Ross, o conflito entre norma geral e especial seria um outro tipo, a inconsistência total-parcial.
É importante ainda ressaltar que a lei 8.245/91 não oferece, no âmbito dos contratos que regula, um tratamento específico para aqueles contratos em que se configure a relação de consumo, e, por isso mesmo, não encontramos nesta lei, regras que se possam considerar especiais em relação às normas de defesa do consumidor.
Seguindo assim o pensamento de Bobbio (1995, p. 96), de que a regra específica é uma espécie do gênero ao qual corresponde a regra geral, na situação jurídica analisada não podemos identificar essa relação entre gênero e espécie, ou seja, nem a locação de bens imóveis é uma espécie do gênero relação de consumo, nem o contrário.
Dito de outro modo, a lei 8.245/91 disciplina tantos as relações de direito civil e de direito comercial, como também as relações de consumo, inclusive, com regras que se aplicam igualmente a essas três formas de relação jurídica. Portanto, tal lei não se constitui como uma espécie do gênero direito do consumidor.
Por outro lado, o CDC não se constitui como uma espécie do gênero que a lei 8.245/91 regula. Enfim, não há entre as duas leis uma relação gênero-espécie. Neste caso, o que poderíamos dizer, sem dúvida alguma é que ambas as leis são especiais naquilo que disciplinam dentro de um subsistema normativo no qual estão inseridas, ou seja, tanto o CDC quanto a lei 8.245/91 são especiais em relação ao direito civil e ao direito comercial, mas uma não é especial em relação à outra.
Logo, percebe-se que, em se tratando de duas normas especiais, o critério de especialidade nem sempre é adequado para a solução de antinomias, pois a especificidade é sempre relativa, é sempre de uma norma em relação a outra, e em certos casos temos que as duas são especiais em relação a outras normas, mas entre elas mesmas não existe essa relação de generalidade e especialidade.
Esta situação se enquadra bem naquilo que Ferraz Júnior (2010, p. 179) chama de antinomia real, em que o sujeito se acha numa posição insustentável em face de insuficiência dos critérios postos no âmbito de um ordenamento para solucionar o problema da aplicação diante de duas normas contraditórias.
Temos que considerar, entretanto, ainda com Ferraz Júnior (2010, p. 144), que as normas não são válidas em si mesmas, como algo intrínseco a elas, pois sua validade depende de sua relação com as demais normas, em um contexto amplo do conjunto das relações do direito, enfim, sua validade depende de como se dá sua inserção e sua situação no ordenamento. Assim, frente a uma antinomia real, no caso, pela insuficiência dos critérios tradicionais, pode-se afirmar que a solução para esse conflito há de ser encontrada, ou melhor, construída, dentro dos modelos problemáticos e sistemáticos do próprio ordenamento. Como afirma Ferraz Júnior (1980, p. 27-29), há um agrupamento sistemático referente à ideia de ordenamento jurídico como uma unidade, fundado na consciência de que o direito não é apenas um dado, mas também uma construção.
Nesse sentido, ainda com o eminente autor, “a interpretação não só é uma obrigação, como também é a determinação de um sentido que prepondere dentre as possibilidades interpretativas”, o que se liga ao problema da decidibilidade, de criar condições para uma decisão possível e adequada. Assim, a partir dessa matriz de pensamento, acreditamos ser possível, mesmo no caso das antinomias reais, chegarmos a essas condições adequadas, ao sentido que prepondere na unidade do ordenamento.
4. A CONSTIUIÇÃO COMO O FUNDAMENTO ESTRUTURANTE DE TODA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO
Seguindo o raciocínio de Ferraz Júnior (1980, p. 29), “essa concepção de unidade não é apenas de uma configuração sistemática e estrutural do ordenamento, mas uma determinação de seu sentido”, no que desponta o problema das condições de possibilidade de desenvolvimento de um método compreensivo, e do próprio objeto da teoria jurídica na forma de atos de produção do direito, que precisam de elucidação.
Desse modo, entendemos que a unidade do sistema vincula-se a uma unidade de compreensão do direito, unidade essa que só pode, e deve, ser encontrada naquilo que denominamos Lei Fundamental, vale dizer o locus de validade e legitimidade de todo o ordenamento, pois a Constituição comporta todo o conteúdo jurídico do pacto social definidor e construtor da própria realidade de um povo.
Referimo-nos aquilo que, brilhantemente, o Professor Lênio Streck (2009, p. 251) ressalta como uma construção das condições de possibilidade para a compreensão do fenômeno jurídico a partir do horizonte de sentido proporcionado pela Constituição. Dentre outros aspectos, o eminente autor ressalta a Constituição como garantidora das relações democráticas entre Estado e Sociedade; como topos hermenêutico do sistema jurídico; como fonte de princípios e regras vinculativos e condicionadores da validade e da interpretação das normas infraconstitucionais; e como protetora dos direitos já conquistados.
Precisamos, assim, buscar na Constituição algo além de normas de organização do Estado e de limitação de seus poderes, e esse algo mais, no horizonte de sentido ao qual se refere Lênio Streck, é o caminho para uma compreensão unívoca e uma aplicação que contemple a coerência e integridade do Direito, enfim, no mais original sentido de Lei Fundamental, pois é ela a Lei que constitui, fundamenta, constrói.
Afinal, o fenômeno jurídico, que disciplina comportamentos humanos, enfim, algo tão fundamental em nossa sociedade, não pode continuar a depender de um discurso baseado em métodos lógico-formais e em critérios subjetivos, como se o sentido do direito estivesse na consciência do julgador. Precisamos confrontar esse “conjunto de significações jurídicas que legitima as desigualdades impostas pela modernidade e cristaliza uma subjetividade jurídica em sintonia com os fins e metas do poder”, na magnífica expressão de Warat (1995, p. 105).
Nessa concepção de norma unificadora do sistema, cf. Ferraz Júnior (2010, p. 160), os ordenamentos compõem-se de normas que guardam entre si relações de validade baseadas numa estrutura do sistema, e que atuam na vida social, reguladas por séries hierárquicas de validade, que culminam em uma norma-origem, a Constituição. Sua predominância como unificadora do ordenamento está atrelada a um dirigismo constitucional, centrado em uma Constituição programática compromissória que, nas palavras de Streck (2006, p. 34), “é condição de possibilidade para a garantia do cumprimento dos direitos sociais-fundamentais previstos no texto constitucional”. Nesse contexto, é pertinente lembrar as palavras do insigne Professor Paulo Bonavides (2001, p. 204) sobre a Constituição de 1988, ressaltando que “onde ela mais avança é justamente onde o governo mais intenta retrogradá-la, como constituição dos direitos fundamentais e da proteção jurídica da Sociedade”.
Não se pode, nesse sentido, permitir que os sentidos da ciência jurídica e a própria compreensão do fenômeno jurídico sejam contrários a essa proteção pretendida pela Constituição. Cabe aqui uma alusão à concepção de força normativa da Constituição (HESSE, 1991, p. 19), a qual se converte em força ativa quando na consciência dos aplicadores do direito se faz presente a vontade de Constituição. Nas palavras de Hesse (1991, p. 23): “a dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição, e, por conseguinte, de sua estabilidade”. Devemos, nesse sentido, buscar, compreender, aplicar e consolidar essa vontade da Constituição, esse é o sentido unificador do ordenamento. Mais uma vez lembrando Streck (2006, p. 60), é preciso dizer, e repetir, o óbvio: a Constituição constitui, vincula e estabelece as condições do agir político e as condições de compreensão do direito, em sua totalidade.
Conforme observa Ferraz Júnior (2009, p. 27): “totalidade não significa somatória, mas organicidade, princípio a partir do qual todo especial e todo singular se determina. Esse princípio é a Constituição e seu constituir, que se concretiza na interpretação/aplicação do Direito, vale dizer, de onde deve exsurgir uma nova sociedade (STRECK, 2009, p. 307-308).
Destarte, não mais se deve conceber a aplicação de critérios tradicionais de interpretação de forma isolada, ou por simples apreciações lógico-formais, o que, a exemplo do caso em análise, tende a produzir equívocos, e, o que é pior, tende, frequentemente, a contrariar a própria norma constitucional.
Relevante lembrar a lição de Cláudia Lima Marques (2002, p. 536), que sugere uma solução baseada na prevalência da Constituição sobre os critérios tradicionais, e observa uma falta de clareza entre os próprios critérios de solução dos conflitos, baseados em presunções não absolutas, o que, em muitos casos, levaria a antinomias reais. A Constituição, então, surgiria como guia máxima do sistema, do que se alcançaria “uma interpretação 'conforme a Constituição' das normas em conflito, para desta extrair a norma prevalente e solucionar a antinomia.” A autora aponta que, “na pluralidade de leis ou fontes, coexistentes no mesmo ordenamento jurídico, com campos de aplicação ora coincidentes ora não coincidentes, os critérios tradicionais da solução dos conflitos de leis encontram seus limites”. Trata-se da teoria do “diálogo das fontes”, preconizada por Erik Jayme, que sugere, em vez da retirada de uma das leis do sistema, uma solução plural, ou seja, ou espécie de fala entre as leis, buscando o efeito útil de ambas, conforme esse efeito mantenha-se coerente com o que a Constituição visa proteger de forma especial, os sujeitos mais fracos da relação jurídica, os consumidores.
Destarte, na medida em que o sentido de aplicação conjunta das leis, “dialogando” entre si, mesmo quando em aparente antinomia, mantenha-se nos limites do que a Constituição, enfaticamente, determina: que o Estado, na forma da lei (do direito), promova a defesa do consumidor, ou seja, desde que esse diálogo não atue em desfavor da defesa do consumidor (direito fundamental), tal tese caminharia na trilha de uma compreensão do direito coerente com a força normativa da Constituição, e com aquilo que entendemos como uma compreensão unificada nos sentidos determinados pela Constituição, enfim, um sentido de integridade do ordenamento vinculativo de toda e qualquer interpretação jurídica.
Outrossim, é importante ressaltar essa questão nuclear, de que a eficácia do preceito constitucional não poderá, em qualquer caso, ser mitigada por uma interpretação alicerçada na compreensão de um direito fundamental a partir da norma infraconstitucional, isto é, um direito constitucionalmente assegurado sendo compreendido e limitado por meio da interpretação da lei (infraconstitucional), o que seria, pois, caminho inverso daquilo procuramos defender, que é justamente uma compreensão do direito, vale dizer, a aplicação das normas, a partir dos sentidos determinados pela Constituição, pois, como bem lembra Streck (2010, p. 259): “não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obrigação de que todos os textos do sistema sejam interpretados de acordo com ela”.
É nesse contexto de afirmação da supremacia da Constituição, como o locus de compreensão do fenômeno jurídico, que a ideia de jurisdição constitucional assume dimensões de importância decisiva para a concretização dos direitos fundamentais e para a formação de uma verdadeira cidadania e de uma sociedade efetivamente democrática. Pensamos, portanto, seguindo o raciocínio de Lênio Streck, que toda aplicação de uma norma jurídica representa uma forma de jurisdição constitucional, pois se a unidade dos sentidos do direito está na Constituição, toda aplicação do direito é, portanto, a aplicação da Constituição. Afinal, nunca é demais lembrar (e repetir) a célebre frase do Professor Paulo Bonavides: “Ontem os Códigos; hoje, as Constituições”.
Contudo, cabe ressaltar que não se trata aqui de uma ideia de simples descumprimento da lei sob o argumento de supostos conflitos com determinado princípio constitucional. Na verdade, parafraseando Lênio Streck, acreditamos que não há nada mais imanente a uma Lei do que a obrigação de cumpri-la. Trata-se, portanto, de uma interpretação e aplicação do direito a partir dos sentidos determinados pela Constituição, o que não significa dizer que necessariamente existirá conflito entre as normas constitucionais e as leis infraconstitucionais (a menos que se trate de lei inconstitucional, obviamente).
Nesse sentido, vale citar Dworkin (apud BONAVIDES, 1998, p. 283): “o princípio, pode ser relevante, em caso de conflito, para um determinado problema legal, mas não estipula uma solução particular”. Pensamos, nessa linha, que confrontos entre regras e princípios tendem a resultar em harmonização, em vez de exclusão. Assim, uma proposta de aplicação do direito fundada nos sentidos expressos por princípios e regras constitucionais não significa a produção de conflitos, mas sim a construção de soluções para se alcançar uma compreensão unívoca do direito.
Todavia, não se pode negar que em certos casos, como nas antinomias reais, uma interpretação no sentido que propomos poderá conduzir à inaplicabilidade de uma das regras em contradição, mas isso, evidentemente, ocorreria em situações nas quais a aplicação dessa regra, naquelas circunstâncias específicas, configurasse plena incompatibilidade com os preceitos determinados na Constituição.
Dworkin (2007) também pondera sobre os critérios para solução de antinomias, citando, além dos tradicionais (hierárquico, cronológico e de especialidade), um quarto critério, que seria a opção pela regra que se apoia nos princípios mais importantes. A partir dessa afirmação podemos visualizar uma diferença entre o critério hierárquico, pelo qual a regra é incompatível com uma norma de nível superior, e um critério baseado na prevalência de princípios constitucionais como determinantes do sentido de aplicação das normas em conflito, isto é, os princípios mais importantes aos quais Dworkin se refere, que entendemos como princípios constitucionais (pois não se pode conceber outros mais importantes), atuam como orientadores de interpretação e não como norma superior, propriamente dita.
Nesse sentido, o inciso XXXII do art. 5º da Lei Maior pode ser compreendido tanto no sentido de mandamento, que emana um comando claro e incisivo ao poder público, para que este atue efetivamente, por meio de medidas legislativas e executivas que promovam a defesa do consumidor, como também no sentido de princípio, que orienta a elaboração legislativa, as ações do governo, as políticas protetivas, bem como orienta o jurisdição estatal na aplicação do direito, isto é, quando a Constituição dispõe que o Estado promoverá a defesa do consumidor, tal determinação inclui um comando ao intérprete para que este também promova, na aplicação do direito, a defesa do consumidor, enfim, o Estado deve intervir nas relações de consumo de modo a garantir, efetivamente, proteção ao consumidor. Portanto, trata-se, também, de um princípio orientador da interpretação do direito.
A opção pela tutela constitucional especial do consumidor estampada no art. 5º, XXXII, e complementada pelos arts. 24, VIII, e 170, V, e pelo art. 48 da ADCT, deixa claro que essa relação, caracterizada pela vulnerabilidade do consumidor, é merecedora de toda uma proteção especial, garantidora de um direito social fundamental. Assim, não se pode permitir que essa proteção seja diminuída justamente no momento em que deve ser concretizada, ou seja, na aplicação do direito, no momento da realização desses direitos no mundo fático, nas relações sociais. Enfim, aplicar o direito de forma contrária à defesa do consumidor significa contrariar a Constituição, significa negar eficácia a um direito fundamental.
Essa relação jurídica especial, de proteção ao sujeito vulnerável, reflete um sentido constitucional de busca pela igualdade fática, vale dizer, no modelo de Estado social escolhido por nossa sociedade, não basta a igualdade jurídica (formal), mas sim a igualdade fática. Desse modo, dispõem-se regras que visam a um equilíbrio nas relações sociais por meio da proteção jurídica aos indivíduos que estão em desvantagem, isto é, um tratamento formalmente desigual com o fim de se chegar a uma igualdade de fato, ou, pelo menos, diminuir a desigualdade de fato. Esse é, portanto, o princípio fundamental do direito consumerista, tratar o vulnerável de forma privilegiada na proporção adequada ao atingimento de uma igualdade fática. Essa noção de igualdade, enfim, representa a própria concepção de Estado social preconizada em nossa Constituição. Voltemos à lição do mestre Bonavides (1998, p. 378), “O Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática”.
Portanto, a força normativa da Constituição no sentido de Estado social, está intimamente vinculada à eficácia dos direitos sociais, tendo como finalidade a igualdade fática, e a condição de possibilidade de busca por essa igualdade está no núcleo fundamental de direitos sociais dispostos na Constituição. Nesse sentido, comenta Streck (2006, p. 30-34), 'A força normativa da Constituição não pode significar a opção pelo cumprimento ad hoc de dispositivos “menos significativos” da Lei Maior e o descumprimento sistemático daquilo que é mais importante – o seu núcleo essencial-fundamental'. Esse núcleo, segundo o autor, são “direitos sociais-fundamentais plasmados em cada texto que atendam ao cumprimento das promessas da modernidade”. Dentre esses direitos, podemos, claro, incluir a defesa do consumidor. E completa o ilustre professor: “sem a garantia da possibilidade do resgate desses direitos, através de mecanismos de justiça constitucional, como proteger o cidadão, o grupo, a sociedade, das maiorias eventuais que teimam em descumprir o texto constitucional?”
Nesse sentido, afirmamos que aplicar o direito do consumidor onde quer que haja uma relação de consumo significa cumprir a Constituição, consiste em dar eficácia a direitos sociais-fundamentais, dar proteção ao cidadão, e à sociedade, enfim, contribuir para a construção de um Estado social, cujas linhas normativas estão muito bem traçadas em nossa Lei Fundamental.
Por conseguinte, se há uma antinomia entre regras aplicáveis a uma relação de consumo, deve-se optar por uma interpretação/aplicação do direito que busque uma harmonização dessas regras ao preceito constitucional de proteção ao consumidor, e assim, em caso de impossibilidade de se aplicar as duas regras conjuntmente de um modo que se garanta a melhor proteção ao consumidor, não restaria outra alternativa senão a inaplicabilidade da regra menos benéfica ao consumidor.
O CDC, portanto, pode, e deve ser aplicado aos contratos de locação de bens imóveisnos quais se configure uma relação de consumo, a menos que a regra contida na lei 8.245/91 seja mais benéfica para o consumidor do que a própria regra do CDC com a qual esteja em conflito, o que, também, coaduna com a regra do art. 47º do CDC, de que o contrato se interpreta de forma mais favorável ao consumidor.
Certamente, o que precisa ser compreendido, definitivamente, é que o consumidor tem direito a uma proteção jurídica especial, e nesse sentido, a aplicação do CDC (ou de outras normas do direito consumerista) é um imperativo constitucional (art. 5º, XXXII, CF 88) e não uma mera opção do intérprete. Portanto, se há duas regras em conflito em uma relação de consumo, é obrigatória a aplicação daquela mais benéfica. Assim, cumpre-se a Constituição, assim, garante-se a defesa do consumidor, enfim, aquilo que se pode (e se deve) esperar de um Estado Social Democrático de Direito.