5. O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO PROCESSUAL
Ainda nos moldes do modelo constitucional do direito processual civil se encontra o princípio da cooperação processual, que surge através do princípio dos princípios abordados no capítulo anterior juntamente ao da boa-fé processual.
Este princípio traz consigo uma visão diferente da que o processo se habituou, ele redimensiona o tratamento às partes vez que faz com que o órgão jurisdicional se relacione de forma diferente com elas, não mais como um espectador frente a um duelo.
Ele reascende o contraditório e a ampla defesa, em que pese, preza ainda mais pela participação das partes no decorrer do processo, aumentando sua influência na decisão final, como foi visto no capítulo anterior como essência destes princípios.
Como seu próprio nome sugere, se baseia na condução do processo através de uma nova dinâmica, em que intermedia um diálogo entre as partes, de forma equilibrada, de forma que o processo evolua e proporcione até melhores condições para que o juiz venha decidir. Parece muito mais adequado à realidade democrática do processo atual.
Apesar de não estar expresso, e de sua discussão ser relativamente recente, por derivar de outros princípios constitucionais, pode-se ver claramente suas feições no ordenamento jurídico.
São exemplos disto os artigos 295, I, parágrafo único; 17; 14, II; 879-881; 475-O, I; e 574, todos do Código de Processo Civil, em que todos são deveres de esclarecimento, lealdade e proteção, onde se baseia a cooperação. Contudo, não se restringe as partes o dever de cooperar, o juízo deve colaborar de forma igual para o andamento do processo de forma cooperativa.
O dever de consulta que deriva do princípio ora tratado é parte disto, eis que caso surja alguma dúvida, ou nova informação, enfim, todos os aspectos que possam influenciar na decisão devem as partes se pronunciar e o juiz informar as partes da mesma forma, a ideia é transformar processo em uma comunidade de trabalho.
Em torno do objeto deste artigo cabe salientar trecho em que DIDIER JR., trata do assunto:
“O dever de esclarecimento não se restringe ao dever de o órgão jurisdicional esclarecer-se junto das partes, mas também o dever de esclarecer os seus próprios pronunciamentos para as partes.” (p. 86 v.1)
O próprio órgão jurisdicional vai exercer o contraditório, participando ele da preparação para o julgamento da lide. Esta atuação do órgão julgador faz com que os sujeitos processuais melhor se desincumbam de seus ônus, deveres e obrigações no decorrer do procedimento.
O princípio da cooperação atinge o âmago do compromisso do juiz com a sociedade, e com sua efetividade, que busca a verdade, como ocorre no seio do processo penal, pode-se falar até de uma maior segurança jurídica, vez que as partes participam no decorrer do procedimento da construção da decisão.
Assim, a cooperação traz ao processo uma robustez maior frente aos princípios constitucionais, fortalecendo-o e fazendo com que façam valer estes, na medida em que dá às partes maior capacidade de influenciar na decisão e ao juiz deveres de fazer com que isso ocorra. Busca, na verdade, a realização da democracia no processo e uma atualização no modelo constitucional de direito processual civil, tratando o direito ainda mais como um todo – efetivação do devido processo legal substancial.
6. O MOMENTO DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA OPE JUDICIS
Como já tratado anteriormente, por conta da isonomia processual o legislador resolveu, nos casos em que envolve direito do consumidor inverter estabelecer a possibilidade de inversão do ônus da prova. Tratar os desiguais desigualmente. Ocorre que, ao redigir o dispositivo que trata de tal inversão por parte do juízo não especificou o momento adequado para que ela ocorresse.
Esta discussão perpassa a questão trazida no capítulo que trata do próprio ônus da prova, quando se abordou o ônus da prova como regra de julgamento. As partes já iniciam o processo sabendo a quem caberá provar as alegações contidas no processo, ou seja, o procedimento se inicia e de antemão já há consciência de como se comportar diante dele. Por conta disto não há o que se discutir quanto ao tipo de regra que se trata.
Porém, essa certeza quanto à regra de julgamento se esvai a medida que o legislador confere ao julgador a possibilidade desse inverter o ônus conforme o artigo 6º, VIII do CDC.
Admitindo-se tratar de regra de julgamento poderia incorrer no caso de passar toda a instrução sem as partes saberem a quem cabe provar o que, o réu a pensar que está se enquadrando no caso da regra geral, e o autor, que é consumidor, achar que estaria respaldado pela inversão do ônus probatório. O que, conforme os princípios fundamentais aqui expostos, fugiria completamente ao modelo de processo civil disposto na Constituição Federal.
Não se pode admitir surpresas em um processo, afinal o procedimento foi feito para garantir as partes a segurança jurídica, de forma que o processo corresse regularmente sem atingir o direito de nenhuma delas. Optando pelo entendimento que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento seria ratificar a possibilidade de uma decisão surpresa. Quanto a isso André Bonelli Rebouças tece os seguintes comentários:
“A ausência de uma ou algumas dessas garantias que, em verdade, enfeixam o due process of law, implica a nulidade do feito ou pelo menos dos atos que lhe são imediatamente correlatos, o que significa dizer que o processo, sem essas prévias e públicas garantias é instrumento imprestável para a obtenção do bem jurídico pretendido. Com justa razão. Como conceber que possam os litigantes ter as regras do jogo reveladas a cada instante? E como ter-se a garantia de que estas regras não venham, dirigidamente, com o propósito de causar prejuízos ou favorecimentos? Como saber, ao certo, depois de proposta ou contestada a ação, a quem incumbe o ônus de carrear as provas dos fatos articulados?” (p. 79)
Para que haja a inversão do ônus da prova ope judicis é necessário que se observe alguns parâmetros constitucionais do processo, não se pode fazer de qualquer forma sob pena de atingir princípios basilares do processo, conforme exposto.
Neste sentido, o julgador deve prezar para que o processo corra de forma paritária às partes, observando, claro, suas desigualdades, porém sem desrespeitar o contraditório e a ampla defesa, e consequentemente o devido processo legal e o princípio da cooperação. No caso em tela, o princípio do contraditório seria violado no momento em que durante a instrução processual não se saberia a quem está cabido a produção de provas, já que ainda não teria sido decidido se haveria inversão, ou não. No caso, não haveria forma de participar de forma devida da formação da decisão, o valor do contraditório e da ampla defesa seria esvaziado.
Neste sentido BUENO:
“A melhor interpretação para o dispositivo é que a inversão nele admitida – e a orientação vale para quaisquer outras hipóteses de inversão legal do ônus da prova – deve ser sempre previamente comunicada às partes para que elas possam, adequadamente, desincumbir-se de seu ônus em atenção ao dispositivo legal. Embora o tema renda ensejo a acesa polêmica em sede de doutrina e de jurisprudência, o entendimento aqui sustentado parece se afinar melhor ao “modelo constitucional do processo civil”, em especial no que diz respeito ao “princípio do contraditório” que, em última análise, impõe a criação de amplas oportunidades de participação das partes ao longo do processo.”. (p. 247-248 v.2 TomoI)
Ademais, não se pode suprimir estes princípios em prol do consumidor, ainda que esse tenha seus direitos garantidos por princípio constitucional (art. 5º, XXXII, CF). Os princípios aqui tratados garantem o Estado Democrático de Direito. Não se fala em suprimir a hipossuficiência do consumidor e a garantia da isonomia processual, mas sim uma adequação destes para que o processo permaneça garantindo a isonomia entre as partes, e que ainda assim consiga promover o contraditório e o devido processo legal.
Esta fórmula parece ser a ideal para indicar qual o momento correto para que se inverta o ônus da prova. Ao se tratar de momento “correto” tem-se aqui a ideia do momento que traga a segurança às partes, garantindo, portanto, o devido processo legal e seus princípios correlatos.
Para tanto, é necessário se compreender que ao inverter o ônus da prova no decorrer do processo se vislumbra um desvio de rota, como bem pondera DIDIER JR., uma vez que ocorre em meio ao procedimento, diferentemente da inversão ope legis.
Partindo desse pressuposto, entende-se que a inversão do ônus da prova ope judicis se adequa melhor como regra de procedimento, e não de julgamento. Admitindo-se o contrário se estaria diante de uma situação, um tanto quanto, bizarra, estaria se atribuindo um encargo ao réu sem que houvesse o momento processual para que este se desincumbisse deste ônus, ou seja, estaria negando o contraditório e rompendo com o devido processo legal.
Persistindo nesta análise caso seja o contraditório suprimido, estaria incorrendo numa ofensa direta à Constituição no que tange o procedimento, visto que atingiria a ampla defesa, o devido processo legal, a boa-fé processual.
Diante do exposto, cabe então nos casos de inversão do ônus da prova ope judicis dar um maior valor ao ônus da prova subjetivo, e entender que diante desta situação a regra será dirigida as partes, portanto, acaba por condicionar a atuação das partes ao longo do processo. Deve-se lembrar também que o ônus objetivo interessa ao juiz no momento do julgamento para aplicá-lo negativamente a quem não fez uso de sua faculdade, porém cabe o ônus subjetivo, a aplicação positiva pelas partes no exercício de sua faculdade para que elas a exerçam.
Se valendo além de toda a carga de princípios já exposta e ainda da análise do procedimento frente a eles fica claro que a inversão deve ocorrer durante o procedimento, e não ao seu final. Fortalece, ainda mais, este entendimento ao fazer uso do princípio da cooperação, em que se deve informar as partes e fazer com que elas participem melhor do processo, bem como impõe o dever de prevenção a elas, de forma que colaborem na busca de elementos probatórios da melhor forma, devendo o juízo prezar por tais atos, visando um maior aproveitamento do contraditório e do devido processo legal.
A manifestação do juiz antes do julgamento acerca da inversão do ônus da prova não se trata de prejulgamento, trata-se de uma redistribuição do ônus da prova (no caso o invertendo), de forma a estabelecer melhores condições para instruir o processo, claramente se vê o contorno do princípio da cooperação, no que as partes colaborarão para que o processo se desenvolva melhor, através da orientação do juízo.
Em relação ao momento processual real para que ocorra a inversão é necessário analisar o processo e a produção de provas. Ao que parece, o melhor momento seria o do saneamento, em que se encontra antes da produção de provas, garantindo, portanto, que elas ajam de forma adequada àquela estabelecida pelo juiz conforme ao ônus de sua produção, há uma análise dos pontos controvertidos, e então poderiam as partes ter garantido o princípio do contraditório, do devido processo legal, e ainda atenderia o da cooperação. Não se comprometeria a fase instrutória além de que estaria de acordo com o próprio CPC no que tange a determinação das provas em seu artigo 331, §2º.
Cabe salientar que em se tratando deste ponto específico é esta a solução que parece mais viável e interessante ao processo e ao modelo constitucional do processo civil, porém, como se fará um breve comentário adiante acerca do ônus da prova dinâmico cabe salientar que nestes outros casos não se vale deste momento, devendo ser respeitado, da mesma forma, os mesmos princípios.
7. A jurisprudência e a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 802832/MG.
Como já observado no capítulo introdutório, a jurisprudência pátria se direcionou em todos os sentidos ao tratar do tema aqui exposto: o momento para a aplicação da inversão do ônus da prova no CDC. A maioria se diferenciava apenas no aspecto regra de julgamento, uns com o entendimento de que era essa a regra e outros de que se tratava de regra de procedimento.
O próprio STJ encontrava divergência entre a Terceira e Quarta Turma, nos mesmos termos. Todavia, a Segunda Seção veio a dirimir o dissídio jurisprudencial existente ali proferindo decisão no seguinte sentido:
RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE POR VÍCIO NO PRODUTO (ART. 18 DO CDC). ÔNUS DA PROVA. INVERSÃO 'OPE JUDICIS' (ART. 6º, VIII, DO CDC). MOMENTO DA INVERSÃO. PREFERENCIALMENTE NA FASE DE SANEAMENTO DO PROCESSO.
I. A inversão do ônus da prova pode decorrer da lei ('ope legis'), como na responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço (arts. 12 e 14 do CDC), ou por determinação judicial ('ope judicis'), como no caso dos autos, versando acerca da responsabilidade por vício no produto (art. 18 do CDC). II. Inteligência das regras dos arts. 12, § 3º, II, e 14, § 3º, I, e. 6º, VIII, do CDC. III. A distribuição do ônus da prova, além de constituir regra de julgamento dirigida ao juiz (aspecto objetivo), apresenta-se também como norma de conduta para as partes, pautando, conforme o ônus atribuído a cada uma delas, o seu comportamento processual (aspecto subjetivo). Doutrina. IV. Se o modo como distribuído o ônus da prova influi no comportamento processual das partes (aspecto subjetivo), não pode a a inversão 'ope judicis' ocorrer quando do julgamento da causa pelo juiz (sentença) ou pelo tribunal (acórdão). V. Previsão nesse sentido do art. 262, §1º, do Projeto de Código de Processo Civil. VI. A inversão 'ope judicis' do ônus probatório deve ocorrer preferencialmente na fase de saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo, a reabertura de oportunidade para apresentação de provas. VII. Divergência jurisprudencial entre a Terceira e a Quarta Turmas desta Corte. VIII. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (STJ – S2 – Resp 802832/MG – Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – Dje 21/09/2011)
Como se extrai da ementa, utilizaram eles dos mesmos princípios constitucionais e aspectos do ônus da prova aqui tratados, ademais ainda utilizaram como parâmetro o Anteprojeto do Código de Processo Civil que será analisado em seguida no que trata do ônus da prova.
A divergência jurisprudencial pode ser observada nos casos apresentados no próprio voto do Ministro Relator:
PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - RESPONSABILIDADE CIVIL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - 2º GRAU DE JURISDIÇÃO - POSSIBILIDADE - CRITÉRIO DE JULGAMENTO. Sendo a inversão do ônus da prova uma regra de julgamento, plenamente possível seja decretada em 2º grau de jurisdição, não implicando esse momento da inversão em cerceamento de defesa para nenhuma das partes, ainda mais ao se atentar para as peculiaridades do caso concreto, em que se faz necessária a inversão do ônus da prova diante da patente hipossuficiência técnica da consumidora que não possui nem mesmo a documentação referente ao contrato de seguro. Agravo regimental improvido.(AgRg nos EDcl no Ag 977.795⁄PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23⁄09⁄2008, DJe 13⁄10⁄2008)
RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ART. 6º, VIII, DO CDC. REGRA DE JULGAMENTO.- A inversão do ônus da prova, prevista no Art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, é regra de julgamento. Ressalva do entendimento do Relator, no sentido de que tal solução não se compatibiliza com o devido processo legal. (REsp 949000⁄ES, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 27⁄03⁄2008, DJe 23⁄06⁄2008)
Tal tema é de tamanha diferença de entendimentos que em um dos julgados o Relator ressalva a não consubstanciação da inversão do ônus da prova como regra de julgamento com o devido processo legal, apesar do julgamento ter sido pelo primeiro argumento.
Ademais cabe frisar alguns trechos do acórdão aqui da Segunda Seção para sustentar a posição deste artigo frente ao tema:
“Do contrário, permitida a distribuição, ou a inversão, do ônus probatório na sentença e inexistindo, com isto, a necessária certeza processual, haverá o risco do julgamento ser proferido sob uma deficiente e desinteressada instrução probatória, na qual ambas as partes tenham atuado com base na confiança de que sobre elas não recairá o encargo da prova de determinado fato.
De outro lado, o argumento de que a simples previsão legal da inversão ope judicis já seria suficiente para alertar as partes acerca da possibilidade da sua utilização pelo juiz quando da prolação da sentença desconsidera a distinção inicialmente referida, entre inversão ope judicis e ope legis.”
Da mesma forma:
E é preocupado com o direito material que entendo não ser cabível a inversão do ônus da prova em sede de sentença. Isso é evidente: se temos um Código que estabelece, de forma expressa, a distribuição do ônus da prova, a parte necessita ser advertida de que, naquele caso, será o referido ônus invertido. Para procedermos de forma diversa, primeiramente, temos que mudar a regra. Só seria permitida essa surpresa, se não existisse regra expressa, distributiva do ônus da prova.
Outras partes são de igual relevância, mas não cabe a total transcrição dos votos aqui, importante é trazer os pontos principais que os Excelentíssimos Ministros abordaram, os quais já foram expostos aqui, em sua maioria, e assim prosseguem com a questão do Anteprojeto do Código de Processo Civil.