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A mútua implicação entre o direito à educação e a liberdade de expressão

07/04/2012 às 07:55
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Considerando que a liberdade sem direitos sociais é a liberdade do mais forte, a liberdade de expressão sem educação significa a negação da expressão, exercício de ser dominado.

 

INTRODUÇÃO

Quand la verité n’est pas libre;

la liberté n’est pas vraie.

Jacques Prévert (1900/1977). Spetacles.

O artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798 diz que a “livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.” Contudo, para que e para quem serve esse direito à livre comunicação de ideias em um Estado que não oferece amplo acesso à educação?

A liberdade somente pode existir com a garantia dos direitos sociais. A liberdade sem a garantia dos direitos sociais é a liberdade do mais forte, é desigualdade, conforme leciona o jurista alemão Thomas Fleiner:

Para que servem a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão quando apenas alguns sabem ler? [...] Para que a liberdade seja realidade, as condições para o exercício dos direitos humanos devem ser tal que os homens possam efetivamente gozar de seus direitos. A dignidade humana e a liberdade somente podem existir se os direitos à liberdade são completados pelos direitos sociais, denominados direitos de segunda geração: por exemplo, o direitos ao trabalho, à formação, ao domicílio etc. (FLEINER, 2003, p. 115)


1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DIREITO À EDUCAÇÃO E CIDADANIA

Tendo em conta a tolerância e o pluralismo de ideias como condições de existência da democracia, Thomas Fleiner define o direito de liberdade de expressão como “a esperança da maioria de convencer, mediante o diálogo, a maioria a pertinência de sua opinião. A liberdade de opinião pertence ao núcleo essencial da existência espiritual dos homens. O homem somente pode existir como ser racional quando ele mesmo pode formar sua opinião e atuar de acordo com esta.” (FLEINER, 2003, p. 107.)

Uma das justificações para a garantia e existência da liberdade de expressão, segundo Dworkin, é a de que o Estado deve tratar os cidadãos como agentes morais responsáveis, de modo que, somente há responsabilidade moral se o cidadão possuir (i) capacidade de expressão de opiniões passíveis de acolhimento pelo Estado ou pelos outros cidadãos e (ii) condições para suficientemente discernir e agir de outro modo.

Esse tipo de responsabilidade impõe que os cidadãos tomem suas próprias decisões sobre o que é verdadeiro ou falso na justiça. Sendo assim, “o Estado ofende os seus cidadãos quando nega a responsabilidade moral deles, quando decreta que eles não têm qualidade moral suficiente para ouvir suas opiniões que possam persuadi-los de convicções perigosas ou desagradáveis.” (DWORKIN, 2006, p. 319.)

Não há responsabilidade de pessoas não emancipadas, porque educação, como observa o filósofo Adorno, não é

modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado. (ADORNO, 2006, p. 141.)

Para além de um direito ou política pública, a finalidade da educação não pode ser desgarrada da necessidade de se estabelecer um projeto de país em que os diversos setores sociais se dialogam em autopoiesis, segundo leciona Maturana:

Perguntarmos se a educação chilena serve, requer respostas a questões como: O que queremos com a educação? O que é educar? Para que queremos educar? E, em última instância, a grande pergunta: Que país queremos? Penso que não se pode refletir sobre a educação sem antes, ou simultaneamente, refletir sobre essa coisa tão fundamental no viver cotidiano que é o projeto de país no qual estão inseridas nossas reflexões sobre a educação. Temos um projeto de país? Talvez nossa grande tragédia atual é que não temos um projeto de país. (MATURANA, 1998, p 12.)

O direito à educação é direito fundamental individual e coletivo (RANIERI, 1994, p. 124.) que realiza a igualdade individual pela justiça social, conferindo a todos os cidadãos condições materiais e intelectuais de existência e acesso a outros direitos fundamentais. Se o direito à educação implica, como direito à cidadania, o exercício de emancipar-se politicamente, a liberdade de expressão sem educação é o mesmo que meramente propagar, repetir, ditar ideias: ditadura do pensamento alheio. É a negação da expressão, porque não permite, por excelência, exprimir-se, mas, isso sim, exprimir a vontade de outrem, ou seja, obedecê-la. Sendo a dominação, weberiana, a probabilidade de se encontrar obediência em uma dada relação social (WEBER, 2004, p. 128.), exercer a liberdade de expressão sem educação é, portanto, o exercício de ser dominado.

Em democracia, a liberdade de expressão se justifica, porque desvela a verdade e a falsidade na política; resguarda o poder de autogoverno do povo; e inibe o governo corrupto (DWORKIN, 2006, p. 319.). Por mais que permita abusos, possui mais benefícios que a censura prévia, pois, de acordo com Thomas Fleiner: “A verdade decretada por uma ditadura com base em fundada experiência tem produzido maiores danos que o caos temporal criado por falsas informações manifestadas em uma democracia.” (FLEINER, 2003, p. 113.)

Como exigência política de emancipação do ser humano para a construção da democracia, a reflexão sobre a educação, para a abordagem formativa da teoria social de Adorno, constitui um fator político-social: uma educação política.


2. DIREITO À EDUCAÇÃO E O EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO DA LIBERDADE DE IMPRENSA

A imprensa forma o que se chama opinião pública, cumprindo o papel de controlar a função republicana do Estado, fornecendo alternativa à versão do Estado. A liberdade de imprensa garante o pensamento crítico, comprometido com a verdade (STF ADPF nº 130/DF). Pois, a restrição ao segredo e combate à desinformação do Estado cria pela imprensa um sistema de controle do poder (DWORKIN, 2006, p. 300.).

Contudo, liberdade de imprensa sem universalidade do direito à educação contribui para a dominação da elite intelectual e dos interesses privados das emissoras de comunicação. Consoante Thomas Fleiner: a liberdade de imprensa somente pode cumprir com sua função de controle se as diversas opiniões existentes puderem ser confrontadas, pois quando a imprensa publica uma corrente única de opinião e fabrica a opinião pública, seu conceito se torna vazio (FLEINER, 2003, p. 112.).

Entre democracia e liberdade de expressão há uma “relação de mútua causalidade” como destacado na Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF nº 130/DF. Porque traduz o pluralismo de ideias repele o monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado “poder social da imprensa” (ADPF nº 130/DF). O direito à educação não discriminatório funda-se igualmente no princípio do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (artigo 206, III, da Constituição). Ambos são plurais, porque refletem o pensamento crítico e, por excelência, democráticos e universalizantes e que repelem a censura prévia.

A noção de cesura prévia foi totalmente rechaçada pelo STF na ADPF nº 130/DF, haja vista ter sido considerada a liberdade de imprensa (i) “plena” e “livre”, (ii) ínsita à dignidade da pessoa humana, e (iii) relacionada ao interesse público. A censura revela-se contra o interesse público, pela restrição econômica e política ao acesso à Comunicação Social. Seu exercício deve, pois, ser democratizado a fim de que se possibilite que o povo construa produção independente em uma programação midiática não vinculada aos grandes conglomerados de emissoras de rádio e televisão. Adorno encontra nessa produção crítica uma forma de a televisão não se identificar a ideologia (ADORNO, 2006, p. 81.).

É princípio da Comunicação Social expresso na Constituição a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” (artigo 221, II). A programação local, regional dos meios de comunicação, devem refletir as diferentes regiões do Brasil, a cumprir o princípio, insculpido na Carta Magna, que determina “a regionalização da produção cultural”.

A lei nº 11.652/08, que institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração indireta, confere (artigos 2º, III e IV, e 3º, I a V) a esses serviços a condição de: produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente; desenvolver a consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural, informativa, científica e promotora de cidadania; fomentar a construção da cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação; apoiar processos de inclusão social e socialização da produção de conhecimento garantindo espaços para exibição de produções regionais e independentes.

Assim, o Poder Público deve estimular a produção regional e a produção independente pela população em meios de comunicação comunitários, democratizando-os e promovendo processos educacionais da população. Os indivíduos ao formarem a programação, por exemplo, de uma rádio comunitária desenvolvem o senso crítico, porque formulam o discernimento de escolher aquela informação que é de interesse da comunidade.

Por exemplo, a seleção de notícias que a pessoa se vê obrigada a fazer na hora de montar o noticiário na rádio comunitária, bem como os demais mecanismos que condicionam o processo de produzir e transmitir mensagens com os quais se depara cotidianamente, lhes retira a ingenuidade sobre as estratégias e as possibilidades de manipulação de mensagens pelos grandes meios de comunicação de massa. Ela passa a conhecer as possibilidades de seleção das mensagens, os conflitos de interesses que condicionam a informação ou a programação, a dinâmica do mercado publicitário, além da força que tem um veículo de comunicação, tal como o rádio, o jornal, a televisão etc. (PERUZZO, 2002)


3. LIBERDADE DE ENSINO E EXPRESSÃO – o REsp nº 1.193.886/SP

A liberdade de expressão implica, sob o viés do direito à educação, a liberdade de ensino científico crítico, independente da ideologia ou religião; criação de instituições de ensino em certos parâmetros; de diferentes formas de educação regulamentadas; adoção de sistema de ensino público ou privado, laico ou confessional, respeitadas as determinações legais (TAVARES).

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A autonomia universitária (artigo 207 da Constituição) evidencia nesse sentido que os professores de instituição de ensino superior podem e devem instigar ao raciocínio crítico dos alunos, garantida a liberdade de expressão, mesmo porque não há maior cinismo que a defesa de interesses políticos e ideológicos disfarçada por uma suposta objetividade da ciência. (OBERDORFF, 2003, p. 260.)

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB-1996) complementou esse sentido constitucional ao prever que “o ensino será ministrado com base no princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber e respeito à liberdade e apreço à tolerância”. (artigo 3º). Especificou a Lei que o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (artigo 33 caput LDB-1996).

Relacionando a liberdade de expressão e a liberdade de ensino, mostra-se interessante o Recurso Especial nº 1.193.886/SP (Relator Ministro Luis Felipe Salomão e julgado em 09.11.2010), que suscitou debates no Superior Tribunal de Justiça. O caso refere-se à possibilidade ou não de responsabilizar civilmente, por danos morais, professor catedrático de direito penal em razão de suas ilações proferidas em sua obra jurídica e em entrevistas sobre o chamado “Crime da Rua Cuba”. Após o voto do relator pela inexistência de dano moral, a Ministra Maria Isabel Gallotti inaugura a divergência defendendo que houve lesão à honra porque extrapolados os limites do ensino jurídico. Em seguida, acompanhou-a o Ministro Aldir Passarinho Júnior, entendendo que a liberdade de pensamento jurídico não abarcaria a possibilidade de um estudioso do direito penal oferecer uma entrevista, em meio de comunicação de massa como a televisão, sobre um crime cuja autoria ainda seria duvidosa. Contudo, a dissidência não prevaleceu. A maioria seguiu o relator, que entendeu que as ilações são plausíveis e que podem inclusive estimular o estudo e a formação acadêmica do profissional do direito - a quem, principalmente, era dirigida a obra:

“No caso concreto, a bem da verdade, as "conclusões" a que chegou o recorrido acerca do "Crime da Rua Cuba" encontram-se no âmbito das incertezas, das ilações plausíveis, as quais, aliás, podem estimular o estudo e a formação acadêmica do profissional do direito - a quem, principalmente, era dirigida a obra. (...) Ressalte-se, por fim, que a educação e o ensino são regidos pelo princípio da "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber" (art. 205, inciso II, da CF/88 e art. 3º, inciso II, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei n.º 9.394/96), positivação esta que protege e garante a máxima, por todos conhecida, de que os espaços acadêmicos - e, por consequência, a literatura a estes direcionada - são ambientes propícios à liberdade de expressão e genuinamente vocacionados a pesquisas e conjecturas.” (Recurso Especial nº 1.193.886/SP Relator Ministro Luis Felipe Salomão e julgado em 09.11.2010) (grifamos)

É de ser destacado que o relator parte do pressuposto de que a educação e o ensino são regidos pelo princípio da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, protegendo-se a literatura e os espaços acadêmicos, vocacionados a pesquisas e conjecturas.


4. O REGIME JURÍDICO DA LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO SOB O ENFOQUE EDUCACIONAL

A Constituição conferiu aos meios de comunicação uma função especial, direcionada ao conteúdo de sua programação e elevado à condição de princípio, qual seja, às “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”, nos termos do artigo 221, I, da Constituição. Tal como expressamente previsto no artigo 205 da Constituição Federal, a educação deve ser promovida e incentivada em colaboração da sociedade civil, em que se incluem os donos dos meios de comunicação devem promover a educação.

Dessa função social que determina liberdade de expressão e imprensa veiculada nos meios de comunicação (artigo 221, I), extrai-se que não podem as emissoras abertas de televisão ou rádio exercer liberdade de expressão ou imprensa de forma absoluta tal como se quis afirmar na ADPF nº 130 “quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja”.

Não é por outra razão que, topologicamente, o capítulo foi denominado de Comunicação Social, inserido no Título VIII Da Ordem Social (e não no Título II no Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos), frisando o constituinte a natureza social dos meios de comunicação – Comunicação Social -, que não pode, portanto, ser exclusivamente voltada para fins privados, propagandísticos, comerciais, políticos, elitistas etc.

Infraconstitucionalmente, o Código Brasileiro de Telecomunicações - CBT, Lei nº 4117/62 em seu artigo 38, traz disposições específicas acerca de certas finalidades dos serviços de radiodifusão, contudo, silencia quanto aos de cunho educativo ou cultural. No que se refere à previsão do que seja abuso do exercício da liberdade de radiodifusão, o artigo 53 do CBT, completamente alterado no mesmo ano do Ato Institucional nº 5 de 1968 e de constitucionalidade duvidosa, demonstra maior preocupação em punir os opositores ao regime militar, que prever qualquer sanção ao descumprimento de finalidades sociais.

Das poucas normas regulamentam a liberdade de imprensa em nosso país, verifica-se, principalmente depois da declaração de não recepção da antiga Lei de Imprensa nos autos da ADPF nº 130, que não há no Brasil um marco regulatório dos meios de comunicação. Há somente um arcaico Código Brasileiro de Telecomunicações aos moldes do Estado de exceção da década de 1960 e a acima mencionada Lei nº 11.652/08, que regulamenta os serviços de radiodifusão do setor público.


5. A FUNÇÃO EDUCACIONAL DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: “QUEM QUER QUE SEJA TEM O DIREITO DE DIZER O QUE QUER QUE SEJA”?

Afastando-se da visão ideológica e deformativa que a televisão opera na consciência das pessoas segundo o filósofo Adorno (ADORNO, 2006, p. 79.), o Brasil buscou em sua legislação conformar e restringir a liberdade de expressão da programação televisiva a uma função educacional (MEISTER, 2009.). Isto fica explícito não somente do texto constitucional, como também do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que em seu artigo 76 prevê restrições à programação de emissoras de rádio e de televisão: (i) o dever de classificar essa programação, bem como (ii) a exclusividade de programas com as finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (também previstas na Constituição).

Questionando a constitucionalidade destes dispositivos, está em trâmite no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2404, da relatoria do Ministro Dias Toffoli, ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) contra este artigo 254 do ECA. O processo entrou em pauta para julgamento em 30.11.2011. Houve o voto do relator, que foi acompanhado por mais três Ministros: Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ayres Britto, cujos votos caminham no sentido de permitir que as emissoras definam livremente sua programação, sendo obrigadas somente a divulgar a classificação indicativa realizada pelo governo federal.

Segundo o Ministro relator, o trecho do artigo 254 do ECA que impede as emissoras de transmitir seus programas “em horário diverso do autorizado” pelo Estado é inconstitucional, porque são as emissoras “que devem proceder ao enquadramento do horário de sua programação, e não o Estado. As próprias emissoras se autocontrolam” e eventuais abusos devem ser decididos “por quem de direito”, entendendo-se que a classificação dos programas configuraria uma espécie de “censura classificatória”, uma vez que se dá por meio do controle administrativo, que, contudo, não encontra competência definida constitucionalmente.

A nosso sentir, contudo, a questão da censura classificatória pode ganhar outro matiz em vista do texto do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH) em seu artigo 13 (3) e (4):

Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão

[...]

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. (sublinhamos)

O inciso 3 supra resguarda a nível fundamental a liberdade de expressão, insuscetível de restrição a livre comunicação e circulação de ideias e opiniões. Extraordinariamente, todavia, há previsão da possibilidade de censura prévia no inciso 4 e justamente para a finalidade de proteção moral da infância e da adolescência. É nesse sentido o teor do artigo 76 do ECA, combinado com o artigo 254 do mesmo estatuto:

Art. 76. As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.

Parágrafo único. Nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição.

Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação:

Pena - multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias.

Ainda que se entenda que a portaria do Ministério da Justiça fosse meramente indicativa e que o Poder Público não possa autorizar e sim meramente recomendar os horários apropriados, incumbiria ao Judiciário, antes, sopesar os valores em questão e verificar se se protegem os interesses da criança e do adolescente, princípio que deve prevalecer no conflito com a liberdade de expressão classificatória de programas televisivos, diante da expressa possibilidade de censura prévia prevista no inciso 4 da CADH de 1969 (“espetáculos públicos”).

Ademais, o princípio protetivo da criança e do adolescente é resguardado na classificação da programação do rádio e da televisão, que está diretamente relacionada a um escopo educativo e pedagógico (artigo 3º da Portaria nº 1.220/07), qual seja, o de restringir os programas que não se adequem à educação da criança e do adolescente:

Art. 3º A classificação indicativa possui natureza informativa e pedagógica, voltada para a promoção dos interesses de crianças e adolescentes, devendo ser exercida de forma democrática, possibilitando que todos os destinatários da recomendação possam participar do processo, e de modo objetivo, ensejando que a contradição de interesses e argumentos promovam a correção e o controle social dos atos praticados.

Ante a necessidade de um marco regulatório que assegure o atendimento à função educacional dos meios de comunicação encontra obstáculo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a ADPF nº 130 se adiantou para vislumbrar a liberdade de imprensa em caráter quase que absoluto, ao propugnar o Ministro relator Ayres Britto que “quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja”:

Tirante, unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988 prevê para o "estado de sítio" (art. 139), o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. (grifamos)

Não é só. O Supremo acolheu o entendimento de que a Constituição somente permitiu regulação e conformação por meio do legislativo nas seguintes hipóteses:

As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis, portanto, de conformação legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de indenização, proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte ("quando necessário ao exercício profissional"); responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação; diversões e espetáculos públicos; estabelecimento dos "meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente" (inciso II do § 3º do art. 220 da CF); independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5º); participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação social (§ 4º do art. 222 da CF); composição e funcionamento do Conselho de Comunicação Social (art. 224 da Constituição).

O que dá a entender o acórdão da ADPF nº 130/DF é que restariam ao marco regulatório dos meios de comunicação apenas os seguintes meios repressivos: “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221”.


CONCLUSÃO

Seriam, portanto, os meios repressivos a única saída para a garantia do princípio previsto no artigo 221, I, qual seja, a “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”? Não é o que entendemos. Pois é preciso fundar um marco que regulamente por meio de lei os meios de comunicação brasileiros. Não que restrinja ou classifique as diversas formas de liberdade de comunicação e sim que induza, incentive a iniciativa privada a formular programação que cumpra prioritariamente sua função educacional.

Os meios de regulamentação à liberdade de expressão não podem se restringir à repressão. Nem tudo que regulamenta os meios de comunicação é censura. Talvez esta seja a maior contribuição a ser trazida: que a liberdade de expressão (e isso vale para qualquer esfera sancionatória estatal) deve ter por fundamento primordial o direito à educação, como instrumento voltado para a prevenção de mazelas sociais, e não apenas repressivo, retrógrado, voltado para condenar os fatos passados.

Ao Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 130/DF, não era interessante prolatar uma decisão que restringisse a programação das grandes emissoras de comunicação, muito menos verificar que hoje há quase que um oligopólio nos meios de comunicação, que confere preferência aos interesses de mercado em detrimento do interesse público. A totalidade das emissoras são de propriedade de pouquíssimos grupos econômicos e a população, diante dessa situação, não tem qualquer facilidade para exercer sua liberdade de comunicação de forma local e independente.

Fato é que, enquanto houver dificuldades ou impedimentos econômicos, culturais, sociais, técnicos e políticos para o exercício deste direito, restará aos Poderes Executivo e Legislativo desenvolver ações no sentido de garantir que o maior número de cidadãos possa produzir, disseminar e acessar informações e cultura.


REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W.. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade – A leitura moral da Constituição norte-americana, São Paulo, Martins Fontes, 2006.

FLEINER, Thomas. O que são Direitos Humanos? Max Limonad, São Paulo, 2003.

MATURANA, Humberto Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p 12.

OBERDORFF, Henri. Droits de l’Homme et libertés fondamentales, Armand Colin, Paris, 2003.

PEREIRA JÚNIOR, Antônio Jorge. Direito de formação da criança e do adolescente em face da TV comercial aberta no Brasil: o exercício do poder-dever de educar diante da programação televisiva. Tese [doutorado]. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2006.

PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Comunicação comunitária e educação para a cidadania. PCLA, Vol. 4 – n. 1: out./nov./dez. 2002. Disponível em <http://www2.metodista.br/unesco/PCLA/revista13/artigos%2013-3.htm>.

RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Direito ao Desenvolvimento e Direito à Educação – relações de realização e tutela. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional.

SCORSIM, Ericson Meister. Os direitos fundamentais e os serviços de televisão por radiodifusão. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009. Disponível em <http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/194913/1/000865466.pdf>

TAVARES, André Ramos. Direito fundamental à educação. Revista Eletrônica Anima. 1ª edição - Vol. I. Disponível em <http://www.anima-opet.com.br/primeira_edicao/artigo_Andre_Ramos_Tavares_direito_fund.pdf>.

WEBER, Max. Sociologia – Max Weber, Org. Gabriel Cohn, São Paulo, Ática, 2004.

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Sobre o autor
Roberto del Conte Viecelli

Advogado e mestrando em direito à educação pelo Departamento Direito do Estado da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco da Universidade de São Paulo – USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIECELLI, Roberto del Conte. A mútua implicação entre o direito à educação e a liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3202, 7 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21434. Acesso em: 24 abr. 2024.

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