RESUMO
O trabalho a seguir perscruta o tema aborto através do ponto de vista de dois filósofos: Peter Singer e Ronald Dworkin. Procura-se estabelecer as correlações entre ambas as teorias e como elas convergem mesmo sendo escritas para atender a diferentes perspectivas da moral. Dworkin e Singer estavam corretos ao retirar o aborto dos holofotes dos direitos e interesses fetais, que em muito dependem de conceitos ambíguos e inexatos tanto para a Medicina quanto para o Direito. A atual lei brasileira é perfeitamente associável a esse enfoque do aborto como um problema do valor intrínseco e sagrado da vida.
Palavras-chave: aborto, vida, sagrado, moral, Singer, Dworkin.
Introdução
A discussão acerca do certo e do errado, surgida ainda nos primórdios da filosofia, ressurge com ânimo novo da modernidade. Quando a ética cruza a questão da proteção da vida, vastamente encarada como direito básico de todos os seres humanos, ela adquire proporções que extrapolam livros e teorias filosóficas: o aborto é o exemplo mais evidente disso. Nunca se opinou tanto sobre o assunto, e a cada novo rumo científico e moral que a sociedade toma, o tema é relembrado, ganhando contornos de “briga sem fim” ou “questão sem resposta correta”.
Em caráter introdutório, faz-se necessário uma rápida explanação sobre o aborto e seus desdobramentos. Segundo Matielo (1994, p. 11), o termo provém do latim aboriri e significa “separar do lugar adequado”, sendo observado desde século XXVIII antes de Cristo, na China. No conceito de Tocci (apud MATIELO, 1994, p. 23), construído na obra Il Procurato Aborto: Tratatto Medico-Legale, “a expulsão antecipada do produto da concepção do interior do útero materno tem lugar quando o feto morre ou quando a conexão do ovo com a mucosa uterina vem a se romper precocemente, seja por causas derivadas do próprio organismo materno, por moléstias do ovo, seja através da utilização de meios artificiais”. Essa definição é particularmente útil como por carregar consigo a diferenciação entre o aborto espontâneo e o aborto provocado. Matielo ainda diferencia os abortos provocados como puníveis (criminosos) e não-puníveis (amparados pela lei).
A filósofa Maria Tereza Verardo (1987) analisa didaticamente a questão sob o prisma dos diversos envolvidos nela, destacadamente o homem e a mulher. Segundo ela, os homens, que são os co-participantes no processo de fecundação, pouco se manifestam e até os mais ferrenhos defensores do feto engasgam ou simplesmente se negam a responder à pergunta se assumiriam a paternidade de uma criança fruto de estupro sofrido pela esposa. As mulheres, ao contrário, emitem sua opinião principalmente através de grupos organizados. As mulheres individualizadas, entretanto, preferem não falar muito sobre o tema para não se exporem. A autora coloca as seqüelas emocionais no mesmo nível das complicações físicas, destacando a sensação de culpa mesmo quando existe uma decisão clara de que o aborto foi o passo mais correto que poderia ter sido dado.
Após as considerações básicas iniciais, analisar-se-á as concepções de dois dos maiores filósofos vivos a escreverem sobre o tema: o australiano Peter Singer e o americano Ronald Dworkin, procurando demonstrar como os dois, a partir de separadas e diferentes visões, constroem referenciais para que a intricada “questão sem resposta correta” possa chegar a uma solução. Além disso, também se tentará demonstrar como as teorias vistas se aplicam à lei brasileira.
Singer e uma (diferente) visão utilitarista
Peter Singer, no sexto capítulo da sua obra mais abrangente, Ética prática, disseca com precisão diversos argumentos, vindos de grupos a favor e contrários ao aborto. Porém, para entender as motivações de Singer e suas exposições no capítulo em questão, intitulado “Tirar a vida: o embrião e o feto”, é de grande valia compreender em que meio intelectual o filósofo está inserido e como ele encara o problema da ética.
Singer é, antes de qualquer outra definição, um adepto do utilitarismo, doutrina ético-filosófica surgida no século XVIII que tem como principais expoentes Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Portanto, como utilitarista, Singer deve ser enxergado como conseqüencialista, alguém que analisa uma ação a partir de suas conseqüências. Nas palavras dele:
O utilitarista clássico considera uma ação correta desde que, comparada a uma ação alternativa, ela produza um aumento igual, ou maior, da felicidade de todos os que são por ela atingidos, e errada desde que não consiga fazê-lo. As conseqüências de uma ação variam de acordo com as circunstâncias nas quais ela é praticada. [...] Para o utilitarista, mentir será mau em algumas circunstâncias e bom em outras, dependendo das conseqüências que o ato acarretar. (SINGER, 2002, p. 11)
Entretanto, a visão de Singer afasta-se substancialmente do utilitarismo clássico e se inclina para a vertente do preference utilitarianism, na medida em que ele entende que ‘“melhores conseqüências’ [deve] ser compreendido como o significado de algo que, examinadas todas as alternativas, favorece os interesses dos que são afetados, e não como algo que simplesmente aumenta o prazer e diminui o sofrimento” (p. 22).
Com isso em mente, Singer constrói seu percurso argumentativo de modo muito consistente, refutando tanto argumentos conservadores como argumentos liberais falhos. O ponto de vista conservador (grupo 0)[1], segundo ele, seria o seguinte silogismo:
1. É errado matar um ser humano inocente.
2. Um feto humano é um ser humano inocente.
3. Logo, é errado matar um feto humano.
O grupo 1, reação liberal tradicional, consiste em negar a segunda premissa desse silogismo. Portanto, tenta-se provar a partir de quando o feto humano passa a ser um ser humano. As possíveis linhas divisórias entre o status de não-humano e o status de humano seriam o nascimento, a viabilidade ou capacidade de sobreviver fora do útero, o aparecimento dos primeiros sinais vitais e o surgimento da consciência. Singer rechaça individualmente as quatro possibilidades e conclui: “Os conservadores pisam em terreno firme quando insistem em que o desenvolvimento que vai do embrião ao recém-nascido é um processo gradual” (p. 152). Ou seja, traçar uma linha divisória que determina quando a vida se inicia é no mínimo escorregadio, quando não totalmente implausível, como nos casos do nascimento, da viabilidade e dos primeiros sinais vitais.
O grupo 2, que abrange aqueles que até concordam com a segunda premissa conservadora, mas afirmam que, não obstante, o aborto é admissível. Singer então arrola mais três argumentos liberais: a) o argumento das conseqüências das leis restritivas, que acabam por só gerar abortos clandestinos; b) o argumento de base milliana que diz que o aborto, por não possuir uma vítima, assim como o homossexualismo e a prostituição, nem sequer deve ser considerado crime; e c) o argumento feminista, em que a mulher tem o direito de escolher o que fazer com o próprio corpo. Os dois primeiros, diz Singer, são sobre leis que regem o aborto, e não sobre a ética do aborto. Segundo ele, o argumento de Mill só funciona se o ato não prejudicar os outros. Além disso, não se pode simplesmente considerar que o aborto não possui vítimas, dado que em grande parte a discussão é exatamente sobre o fato de a prática ter ou não uma vítima.
O argumento feminista é bem mais complexo, e mereceu uma análise mais profunda do autor. Singer cita Judith Jarvis Thomson, filósofa feminista americana que usa a analogia do violinista que deve ficar preso a outra pessoa por nove meses para que não faleça. Segundo Thomson, o violinista tem sim direito à vida, mas o fato de tê-lo não dá a ele o direito de usar o corpo de outra pessoa para sobreviver. Singer reconhece que esse argumento se encaixa perfeitamente para casos de gravidez fruto de estupro, descuido ou ignorância. Contudo, como ferrenho utilitarista, desenvolve uma crítica sobre ele:
O utilitarista afirmaria que, por mais furioso que eu estivesse por ter sido seqüestrado, se, levando tudo em conta, inclusive os interesses de quem quer que tenha sido afetado, as conseqüências do meu desligamento do violinista forem piores do que as que adviriam se eu continuasse ligado, eu deveria permanecer ligado. Isso não significa, necessariamente, que os utilitaristas considerassem má ou culpada uma mulher que se desligasse. (p. 158)
Este argumento feminista também é criticado por Dworkin, por basicamente desconsiderar o papel criativo da mulher na gravidez. O feto não é um corpo estranho transplantado, é o próprio investimento físico e emocional da mulher, que permitiu que fosse criado um ser que, antes de qualquer coisa, é “dela mais do que de qualquer outra pessoa”.
Finalmente, Singer apresenta ao leitor o grupo 3, que questiona a primeira premissa do silogismo conservador. É possível deduzir que o próprio Singer se encaixa nesse grupo, e é tendo-o como base que ele vai demonstrar seus argumentos pró-aborto. Singer inicia:
A fragilidade da primeira premissa do argumento conservador está no fato de fundamentar-se em nossa aceitação do status especial da vida humana. [...] Se “humano” for tomado como equivalente de “pessoa”, a segunda premissa do argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é claramente falsa, pois não se pode, plausivelmente, argumentar que o feto seja um ser humano. Por outro lado, se “humano” for tomado apenas com o significado de “membro da espécie Homo sapiens”, então a defesa conservadora da vida do feto tem por base uma característica que carece de significação moral e, portanto, a primeira premissa é falsa. (p. 160)
Para Singer, a vida do feto humano não deve ter maior valor que a vida de um animal no mesmo nível de racionalidade, consciência, sensibilidade, etc. Ele, então, sintetiza: “Uma vez que nenhum feto é uma pessoa, nenhum feto tem o mesmo direito à vida que uma pessoa” (p. 161). Sobre aqueles que objetam a esse ponto, tratando o feto como vida em potencial, Singer os rebate com simplicidade, pois
não existe regra que afirme que um X potencial tenha o mesmo valor de um X, ou que tenha todos os direitos de um X. Há muitos exemplos que mostram exatamente o contrário. Arrancar uma bolota de carvalho em germinação não é o mesmo que derrubar um venerável carvalho. [...] (p. 163)
O argumento ainda traz consigo a condenação de outras práticas costumeiras na sociedade, tais como a contracepção, a abstinência sexual e o celibato. “A potencialidade não parece ser um conceito do tipo ‘tudo ou nada’; a diferença entre o óvulo e o esperma e o embrião é uma diferença de grau, associada à probabilidade de transformação em uma pessoa” (p. 170).
Dworkin e o valor da vida
Dworkin, ao contrário de Singer, é menos parcial e procura na sua obra sobre o assunto, Domínio da vida, não apenas analisar argumentos alheios, mas atingir o cerne da questão do aborto. Para isso, vale-se de uma – como o próprio autor intitula – “distinção crucial”: há aqueles que encaram o aborto de um modo derivativo e aqueles que possuem uma abordagem independente.
O modo derivativo é aquele que pressupõe os direitos e os interesses do feto, enquanto o independente leva em conta o caráter sagrado e o valor intrínseco da vida. Dworkin não só inclina-se para o segundo grupo como constrói todo o seu livro utilizando esta abordagem específica. Os motivos são vários; Dworkin, por exemplo, acredita que não faz sentido algo possuir interesses próprios a não ser que possua consciência, e que tais interesses devem ser aqueles presentes no momento do aborto, e não aqueles que eventualmente se desenvolverão caso o aborto não seja feito. O aborto deve ser analisado sob a ótica do valor intrínseco da vida, independente de qualquer interesse ou direito que o feto possa ter: definir se ele é uma pessoa é ambíguo e de certa forma obscuro tanto juridicamente quanto para a Medicina, desembocando em um debate sem nenhuma utilidade prática.
Entender a vida como tendo um valor intrínseco requer uma explanação sobre os possíveis valores que uma coisa pode, em determinada circunstância, apresentar. Dworkin identifica três valores principais: a) o instrumental, que depende da sua utilidade e da capacidade de gerar meios para obtenção de outras coisas; b) o subjetivo, quando uma coisa é especialmente valiosa para uma pessoa; e c) o intrínseco, quando uma coisa tem valor independente do que as pessoas apreciam ou do que é bom para elas. A vida pode apresentar os três valores, sendo relevante para a discussão do aborto o último deles. Assim como grandes obras de arte que, acima dos gostos pessoais de cada um, a humanidade procura preservar com afinco, a vida tem um caráter sagrado (“sagrado” aqui, entende Dworkin, no sentido de “inviolável”) e intrinsecamente valioso. Não é uma questão incremental – “quanto mais pessoas existirem, melhor” –, mas de valorização e proteção uma vez que a vida já tenha começado.
Para Dworkin, a sacralidade pode ser atribuída a uma coisa de dois modos distintos. O primeiro se dá por designação: o sagrado conferido a animais, amuletos e objetos patrióticos, por exemplo. O segundo é por gênese: algo passa a ser sagrado não pelo o que é especificamente, mas pela maneira que surgiu ou passou a existir. Novamente, a vida e a arte se encontram neste, e não naquele, grupo:
Nossa preocupação especial com a arte e a cultura reflete o respeito em que temos a criação artística, e nossa preocupação especial com a sobrevivência das espécies animais reflete um respeito semelhante por aquilo que a natureza, entendida como instância divina ou secular, produziu. Essas bases idênticas do sagrado se unem no caso da sobrevivência de nossa própria espécie, pois para nós é de crucial importância que sobrevivamos não apenas biologicamente, mas culturalmente também, e que nossa espécie não apenas viva, mas prospere. (DWORKIN, 2009, p. 106)
A instância divina não implica necessariamente no criacionismo; muitos adeptos do evolucionismo também acreditam peremptoriamente na inviolabilidade da vida humana. A vida é então entendida como uma união da tradição criativa da natureza e da arte ou cultura: uma criança “cria sua vida quase do mesmo modo que um artista cria uma pintura ou um poema” (p. 116).
Dworkin desfaz um pensamento comum quando se decide que grupos têm mais direito a vida em relação a outros. Geralmente, se opta por quem teria mais tempo de vida pela frente, caso essa vida não fosse interrompida. Contudo, no caso do aborto, esse critério de escolha que sempre coloca os jovens à frente dos velhos não é adequado, visto que também se costuma considerar pior perder um bebê na fase avançada de gravidez do que na fase inicial, ou que é mais trágico perder uma criança ou adolescente do que perder um bebê. Dworkin então sugere o critério da “frustração”:
[...] o tamanho da frustração [...] depende da fase da vida em que ocorre, pois a frustração é maior se a morte ocorrer depois que a pessoa tiver feito um investimento pessoal significativo em sua própria vida, e menor se ocorrer depois que algum investimento tiver sido substancialmente concretizado, ou tão substancialmente concretizado quanto poderia ter sido. (p. 122)
Segundo Dworkin, trazendo para o caso dos abortos, não ocorre frustração de vida quando não nasce a criança, pois não há investimento criativo em vidas que nunca existiram. É aí onde se iniciam as divergências entre defensores e combatentes do aborto. Conservadores radicais acham que a morte imediata do feto é uma frustração maior que qualquer outra opção; liberais acham que a morte prematura minimiza a frustração da vida, também atendendo ao princípio de sacralidade da vida humana. Enquanto os primeiros atribuem maior relevância ao investimento natural ou divino, o segundo grupo dá ênfase à contribuição humana e cultural para a vida.
A análise dworkiana também investiga as mais comuns exceções ao aborto consideradas por conservadores e por liberais. Sobre os abortos realizados com intuito de salvar a mãe:
Para os muito conservadores [...] uma escolha um favor da mãe pode parecer justificável com base no fato de que uma escolha contra ele frustraria, além do mais, os investimentos pessoais e sociais em sua vida; mesmo essas pessoas desejam apenas minimizar a frustração total da vida humana, o que exige que se salve a vida da mãe nessa terrível situação. (p. 131)
Segundo os conservadores, o estupro apresenta duas características que argumentam em favor de uma exceção:
Em primeiro lugar, [...] o estupro é em si mesmo uma violação brutal da lei e da vontade de Deus, e o aborto pode muito bem parecer menos insultante ao poder criador de Deus quando a vida que elimina teve início, ela própria, em semelhante insulto. [...] Em segundo lugar, o estupro é uma terrível profanação do investimento feito pela vítima em sua própria vida, e mesmo aqueles para os quais um investimento humano na vida é menos importante do que o investimento feito por Deus ou pela natureza podem, não obstante, abominar uma frustração tão violenta desse investimento humano. (p. 132-133)
O ponto de vista liberal que considera o aborto permissível quando o nascimento do feto tem efeitos ruins na qualidade de vida da futura criança ou dos membros da família, segundo Dworkin, decorre da preocupação especial dos liberais com o desperdício da contribuição humana ao valor criativo da vida. “[...] a opinião liberal preocupa-se mais com as vidas que as pessoas levam agora, vidas reais, do que com a possibilidade de outras vidas ainda por vir” (p. 138).
Encerrando a parte de sua obra mais focada na moralidade do aborto[2], Dworkin, em cima de tudo o que foi estudado, conclui que “[...] no fundo, essas divergências são de natureza espiritual” (p. 139) e enxerga um horizonte de conciliação e tolerância em torno do “compromisso comum com a santidade da vida” (p. 140).
Conclusões
Fica evidente a conexão entre os dois autores, que descartam qualquer tipo de possibilidade de tratar o feto como uma pessoa propriamente dita, com direitos e interesses. Ambas as teorias encontram lastro no valor da vida.
Singer, entendendo um ser racional e autoconsciente como uma vida intrinsecamente valiosa (que ele admite, é uma dificuldade à parte), refuta a possibilidade de proibir o aborto pela utilização deste argumento:
A afirmação de que os seres racionais e autoconscientes são intrinsecamente valiosos não constitui uma razão para desaprovar todos os abortos, pois nem todos os abortos privam o mundo de um ser racional e consciente de si mesmo. (SINGER, 2002, p. 164)
Singer é duro ao eliminar o caráter especial da vida humana, em relação à vida dos outros animais. Enquanto a capacidade de sentir dor (que torna o feto consciente, ainda que não autoconsciente) não existir, diz ele, sua existência não possui nenhum valor intrínseco. E vai mais longe: para ele, animais como porcos ou galinhas – que continuam sendo assassinados sem grandes problemas – surgem à frente do feto em qualquer estágio da gravidez quando são comparadas características como racionalidade, autoconsciência, consciência, autonomia, prazer, dor, etc. das duas espécies.
Dworkin, on the other hand, considera a vida humana sagrada devido à sua complexa gênese, seja ela por instância cósmica, evolutiva, cultural ou uma mistura delas. Porém, ele não deixa de conferir sacralidade à vida de outras espécies biológicas (é o que move, por exemplo, os grupos de proteção dos animais em extinção) e até a objetos inanimados, como obras de arte. Enquanto Singer retira a sacralidade da vida humana, Dworkin a mantém e a estende a outros paralelos, chegando, pelo menos logicamente, a um resultado parecido.
Dworkin também inicia uma interessante discussão acerca da importância da cultura para a formação valorativa da vida. A vida não possui valor meramente por seu caráter biológico, é, em contrapartida, uma união de fatores naturais e humanos. Aproxima-se nesse ponto de Maurizio Mori (2000), bioeticista italiano que também escreveu livros sobre aborto e coloca a acculturazione como determinante para a vida, complementando a azione della natura.
No que tange ao entendimento da lei brasileira em vigência, atesta Matielo: “[...] invariável posicionamento contrário ao aborto [...]” (p. 55). A prática é regulamentada por cinco artigos (124 a 128) do Código Penal do Brasil, sendo o artigo 128 responsável por enunciar em que casos o aborto é legal, e, deste modo, não-punível. As exceções que a lei autoriza são exatamente aquelas que Dworkin considera “conservadoras”: o aborto ético, sentimental ou humanitário (casos de estupro) e o aborto necessário (quando a gravidez ameaça a vida da mãe). Outras possíveis exceções, consideradas por Dworkin como “liberais”, como o aborto eugênico (nascituro portador de deficiência física ou mental), o aborto honoris causa (gravidez extra-matrimonial, que “fere a honra”) e o aborto econômico (precariedade das condições financeiras da gestante) não são admitidos, o que comprova a tendência mantenedora e (principalmente no caso dos estupros, segundo a tese dworkiana) ligada à tradição religiosa da lei brasileira. Além disso, possivelmente com o objetivo de evitar definições imprecisas ou ambíguas, e a despeito do que ocorre em outras nações, o Brasil protege legalmente o feto desde a concepção até o nascimento, enfatizando o continuum da vida – vista gradualmente e não por etapas arbitrárias –, que Singer considera terreno firme para o argumento conservador.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 13 nov. 2011.
DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
MATIELO, Fabrício Zamprogna. Aborto e direito penal. Porto Alegre: Sagra: DC Luzzatto, 1994.
MORI, Maurizio. Diritti umani, bioetica e cittadinanza. Florença: 2000. Disponível em italiano em: <http://www.tsd.unifi.it/cittadin/papers/mori.htm>. Acesso em: 13 nov. 2011.
SINGER, Peter. Ética prática. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
VERARDO, Maria Tereza. Aborto: um direito ou um crime? São Paulo: Moderna, 1987.
Notas
[1] Para melhor apresentar as idéias, dividiu-se os argumentos esquadrinhados por Singer em grupos. O ponto de vista conservador é o grupo 0 por ser o ponto de partida do autor. Os outros três grupos de argumentos que ele expõe são reações liberais.
[2] Depois dessa parte, Dworkin direciona seu foco aos aspectos jurídicos do aborto, utilizando-se para isso de casos famosos (destacadamente o Roe contra Wade de 1973) e trazendo o debate para o lado do constitucional americano, que não é de todo relevante para o presente trabalho.