INTRODUÇÃO
A Constituição, pela sua natureza, há sempre que ser utilizada como uma espécie de filtro (filtragem constitucional) a vedar qualquer disposição ou decisão que atente contra os interesses maiores da sociedade. Nesse aspecto, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da Funcionalização do Direito deverão atuar como normas norteadoras na aplicação e interpretação do direito. Em outra perspectiva, a atual Constituição elevou a propriedade à categoria de Direito Constitucional. Portanto, tendo em conta que a posse pode ser tida como a concretização do Direito de Propriedade, é que pretende-se estabelecer alguns parâmetros para a aplicação da função social da posse a partir de alguns julgados, com ênfase na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF, e do Superior Tribunal de Justiça - STJ.
Da Função Social do Direito
De acordo com a enciclopédia jurídica Soibelman, função é a “atividade de um órgão ou serviço”. Agregada à sociedade, pode-se inferir que “função social” poderia ser definida como “um conjunto de atividades realizadas por uma determinada instituição de forma a beneficiar a sociedade ou coletividade”. É daí, que se pode falar em “função social dos contratos”, “função social da propriedade”, “função social da família”, “função social da posse”, “função social do direito”, etc.
Adam Smith, em sua obra “A Riqueza das Nações”, publicada em 1776, esclarece, ao citar Hutcheson, que:
(...)
Quando a população era rarefeita, o País era fértil e o clima ameno, não havia muita necessidade de se aperfeiçoarem regras sobre a propriedade, mas na situação de hoje “o trabalho de todos é claramente necessário para manter a humanidade”, e os homens devem ser motivados ao trabalho pelo interesse próprio e pelo amor à família. Se não lhes forem assegurados os frutos do trabalho humano, “não se tem nenhuma outra motivação para trabalhar senão o amor genérico à espécie, o qual geralmente é muito mais fraco do que as afeições mais íntimas que dedicamos aos nossos amigos e parentes, para não mencionar a oposição que, nesse caso, seria apresentada pela maioria dos indivíduos egoístas”. Numa sociedade comunista não se trabalha de boa vontade[1].
Percebe-se a preocupação que já existia naquele período com o trabalho conjunto que beneficiasse a todos como forma de “manter a humanidade”. Existia claramente uma preocupação com o objetivo social do trabalho e da propriedade, denominada hoje de “função social”. A Lei de Introdução ao Código Civil – Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942 – já admitia a função social ao estabelecer, em seu art. 5º que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. (grifo acrescentado).
Nos dias de hoje, a demanda por recursos para a sociedade excede em muito os tempos de outrora, motivo pelo qual a observância da função social de todos os atos da vida humana deverá ser observada com mais afinco de maneira a ser utilizada de forma a se ter um maior aproveitamento no uso dos recursos naturais. Questões como uso adequado da propriedade, do meio ambiente, da produção de alimentos são temas recorrentes na mídia com a intenção de preservação da natureza para esta e para as gerações futuras.
É nessa linha de entendimento que a Constituição Federal reservou um capítulo dedicado ao meio ambiente, além de estabelecer em seu art. 186 que “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
Paulo Lôbo, ao discorrer sobre a constitucionalização do direito civil, ensina que esse ramo perdeu sua natureza individualista e que:
A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse individual quando realiza, igualmente, o interesse social. O exercício do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade não somente para si, mas para todos. Daí ser incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a especulação[2].
Essas linhas sugerem que governo e sociedade iniciem um trabalho de conscientização no sentido de direcionar o povo a estabelecer métodos de trabalho de modo a garantir que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. (art. 255, CF)
Quanto ao estudo da “função social” na área jurídica, Bobbio já chamava a atenção, na década de 70, do século XX, para a forma de como vinha sendo realizado o estudo do direito. Dizia ele que o ensino do direito, até então estava direcionado à sua estrutura, mas, prossegue ele, deveria haver uma mudança de foco, no qual em vez de se ensinar “o que é o direito”, deveria se ensinar “para que serve o direito”, ou seja deveria haver uma mudança de perspectiva. Essas ideias, ele traz em seu livro “Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito”.
É nessa linha de pensamento que o autor inicia o capítulo “Em Direção a uma Teoria Funcional do Direito”, tecendo comentários a respeito das teorias estrutural e funcionalista do direito:
Se aplicarmos à teoria do direito a distinção entre abordagem estruturalista e abordagem funcionalista, da qual os cientistas sociais fazem grande uso para diferenciar e classificar as suas teorias, não resta dúvida de que, no estudo do direito em geral (de que se ocupa a teoria geral do direito), nesses últimos cinquenta anos, a primeira abordagem prevaleceu sobre a segunda. Sem fazer concessões a rótulos, sempre perigosos por mais úteis que sejam, acredito ser possível afirmar com certa tranquilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tenha obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber “como o direito é feito” do que “para que o direito serve”[3].
Essa é uma tendência relativamente nova no que diz respeito às legislações do Estado moderno. O Estado além da função clássica de garantir a paz social também possui como objetivo promovê-lo, por meio do direito promocional. Nas palavras de Bobbio, “(...), essa função é exercida com a promessa de uma vantagem (de natureza econômica) a uma ação desejada, e não com a ameaça de um mal a uma ação indesejada. É exercida, pois, pelo uso cada vez mais frequente do expediente das sanções positivas”[4]. Ao analisar os ordenamentos jurídicos dos Estados modernos, ele constata que “o termo ‘promover’ suplantou ou colocou de lado o termo ‘garantir’”[5]. Esse autor esclarece que no passado a “(...) função do direito era limitada à ameaça ou à aplicação da sanção: era o ‘Estado castigador’ de Thomas Paine. Entrementes, o Estado transformara-se também em pagador e em promotor”. E, mais adiante, elucidando acerca dessas diferenças, diz que:
Para nos expressarmos novamente com frases sintéticas, essa distinção corresponde não mais à diferença entre fazer (pelo Estado) e mandar fazer (aos indivíduos), mas entre fazer e deixar fazer. Ainda mais claramente do que a distinção precedente entre administração direta e indireta, essa distinção deixa completamente de fora o campo do direito promocional, o qual, como vimos, se insere na categoria daquelas relações entre Estado e economia nas quais o Estado nem abandona completamente o desenvolvimento das atividades econômicas aos indivíduos nem as assume para si mesmo, mas intervém com várias medidas de encorajamento dirigidas aos indivíduos. Se queremos individualizar e delimitar com precisão o espaço ocupado pelo direito promocional, será necessário ter presente não tanto a distinção entre fazer e mandar fazer, nem aquela entre fazer e deixar fazer, mas a distinção entre deixar fazer e mandar fazer. Há dois caminhos pelos quais o Estado pode limitar a esfera do deixar fazer: obrigar a fazer (ou a não fazer) ações que, do contrário, seriam permitidas - e este é o caminho da restrição coativa da liberdade de agir -, ou, então, estimular a fazer (ou a não fazer) ações que, não obstante isto, continuam sendo ações permitidas - e este é o modo pelo qual se exerce a função promocional [6].
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, seguindo esse entendimento, afirmam que:
Atualmente, a ciência jurídica volta o olhar para a perspectiva da finalidade dos modelos jurídicos. Não há mais um interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum. Enfim, a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à família, mas à reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano[7].
A Constituição Federal e vários diplomas legais têm exigido a observância da “função social”, a exemplo do Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece, em seu art. 39: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei”. É nesta linha de pensamento que Alexandre de Moraes esclarece que:
O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, sendo que, por expressa previsão constitucional, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor[8].
Em relação à função social da propriedade, André Ramos Tavares explica que: “durante a época mais recente da História da Humanidade, constata-se que o direito de propriedade assumiu uma conotação que se tem designado como social, em oposição à característica essencialmente individualista de que desfrutara outrora”[9].
Seguindo a linha defendida por Bobbio, percebe-se que, com os movimentos socialistas atuais, a propriedade, juntamente com outros institutos do direito, tem experimentado um aspecto muito mais funcional que propriamente um direito de uso. Portanto a propriedade, antes de ser um direito que pode ser reivindicado contra todos, como fora outrora, haverá de ser observada a sua função social como um direito pertencente a todos enquanto sociedade.
Logicamente tais premissas não são um paradoxo. O titular proprietário continua com todos os direitos de possuir, usar, dispor e reivindicar; mas já não mais de forma tão absoluta. Já não pode mais exercer o use abutendi. É esse o grande e novo sentido de propriedade no mundo contemporâneo. Essas características são válidas para uma vasta gama de situações no direito moderno, como estabelecem o Código Civil e a Constituição Federal da República. Decorre da função social uma transcendência pelo fato de os mesmos irem além dos seus caracteres físicos, ou seja, a função social da propriedade, ou qualquer outra função social, é externa ao próprio instituto.
Percebe-se que, nesses aspectos, por meio de seu poder de polícia, o Estado também contribui para a função social da propriedade, pois, caso contrário, reinaria a insegurança, e a propriedade, em vez de servir aos interesses de seu proprietário e da coletividade, estaria ao alvedrio de pessoas inescrupulosas em detrimento dos possuidores ou proprietários de boa-fé. Também, por meio desse poder de polícia, e da sociedade por intermédio de seus cidadãos e das organizações não governamentais, deve-se fiscalizar as ações das empresas e dos particulares de maneira a coibir abusos e deperdícios no uso daqueles bens que são imprescindíveis à sociedade. Em termos de função social, já se fala inclusive da “função social da água”, esse bem considerado inesgotável por muito tempo assinala para uma futura redução, principalmente devido ao uso desordenado pelo homem em seu uso e pela agressão ao meio ambiente que tornou-se uma constante nos dias atuais.
A função social também pode ser utilizada como elemento capaz de atenuar as diferenças sociais. Torna-se necessário que haja uma luta de todos pela justiça, pois enquanto existirem fome, falta de moradia e condições mínimas que estabeleçam a dignidade do ser humano não se pode falar em justiça social, essa entendida no moderno conceito de Justiça em Rawls, para quem:
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para os outros; As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: a) Consideradas como vantagens para todos dentro dos limites do razoável; b) Vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos[10].
O Estado, a despeito do movimento neoliberal, deverá ser mais intervencionista e distribuir riquezas de maneira a melhorar a situação daqueles que vivem na penúria. Dessa forma, o Estado tem se utilizado de variadas formas no sentido de impor a realização da função social como, por exemplo, lançado mão de diferenciação na cobrança de impostos aos imóveis que não estejam cumprindo o seu objetivo social de maneira a trazer benefícios para toda a coletividade.
Nessa linha de pensamento, cabe citar a Súmula 668 do STF ao declarar que:
É INCONSTITUCIONAL A LEI MUNICIPAL QUE TENHA ESTABELECIDO, ANTES DA EMENDA CONSTITUCIONAL 29/2000, ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS PARA O IPTU, SALVO SE DESTINADA A ASSEGURAR O CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA[11].
Ademais, sociólogos e filósofos têm sugerido por meio de estudo e verificações práticas que o deslocamento de uma propriedade para exercer a função social, além de não trazer prejuízos, acarreta em ganho para todos e uma concretização do bem-estar social de maneira a diminuir as diferenças sociais. A função social no direito atua no sentido de causar uma distribuição de renda mais justa de maneira equânime. Nesse sentido, John Rawls salienta que:
Apesar de a distribuição de riqueza e renda não precisar ser igual, ela deve ser vantajosa para todos e, ao mesmo tempo, as posições de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos.
Todos os valores sociais - liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima - devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos[12].
Rawls defende a que a estrutura de produção deva fundamentar-se no “Princípio da Eficiência”, como forma de estabelecimento de oportunidades democráticas embasadas no Princípio da Igualdade tendente a diminuir as diferenças sociais. “A injustiça, portanto, se constitui simplesmente de desigualdades que não beneficiam a todos”[13]. Desigualdades essas que podem ser mitigadas a partir do conceito da “eficiência de Pareto”[14], que defende a ideia de que se a situação de um determinado grupo na sociedade pode melhorar sem que isto cause prejuízo a alguém ou a outro grupo, então esta sociedade não alcançou o “ótimo de Pareto”[15].
Dworkin diz o “ótimo de Pareto” ou “eficiência de Pareto”, seria “uma distribuição de recursos é eficiente segundo Pareto se não se puder fazer nenhuma mudança nessa distribuição que não deixe ninguém em pior situação e, pelo menos, uma pessoa em melhor situação”[16]. Percebe-se o caráter essencialmente social dessa teoria que pode ser aplicada perfeitamente a propriedade que não esteja exercendo a sua função social.
2. Da Posse
“A origem da posse é historicamente justificada no poder físico sobre as coisas e na necessidade do homem se apropriar de bens”[17]. Apesar da superioridade racional do ser humano perante os outros seres vivos do planeta, ele está sujeito a intempéries de toda a ordem. Diante desse contexto, é que o homem precisa de abrigo, de proteção. A história relata que tem conhecimento de que os homens habitavam as cavernas, como forma de se proteger contra os infortúnios, trovões, tempestades, terremotos e animais ferozes, nas quais eram apenas algumas das ameaças existentes. O instinto de sobrevivência é que os compelia a buscar proteção.
No princípio não existiam lugares fixos para fixação da moradia, estabelecia-se na terra de acordo com a facilidade do momento. Enquanto a terra fosse fértil, ali o homem ficava com a sua família. Além de seu sustento, o homem ainda tinha de enfrentar animais e proteger-se das catástrofes. Entretanto tudo isso não passa de conjecturas, pois como assevera Jean-Philippe Lévy: “É sempre perigoso falar dos ‘primitivos’. À falta de testemunho direto, podemos talvez aproximarmo-nos das suas ideias através de certas passagens de autores antigos e pelo que ainda hoje se verifica com certos povos que permaneceram afastados das grandes correntes de civilização”[18]. O ser humano estabelecia-se em algum lugar, utilizando-se da força bruta para proteger seu espaço. O tipo de poder que se adquiria sobre esse limitado ponto de fixação destinado à sobrevivência era caracterizado pela posse, que é o domínio de fato sobre a coisa, como definiam os romanos[19].
A palavra posse deriva do latim “possessio”, provém de potis, radical de potestas, poder; e sessio, da mesma origem de sedere, significa estar firme, assentado. Indica, portanto, um poder que se prende a uma coisa. “É sentar sobre a coisa”[20] que caracteriza a posse. Consiste essa em uma relação de pessoa e coisa, como uma relação de fato; nas palavras Ihering é “exteriorização da propriedade, que o direito deve proteger”[21]. Por isso, o possuidor, diferentemente do proprietário, é sempre visível ante os olhos da sociedade.
Fustel de Coulanges assevera que a origem da posse está ligada diretamente à religião. Em épocas remotas, os homens, diante da impossibilidade de explicar os fenômenos naturais, inclusive a própria morte, colocavam as crenças como elemento justificante à todas as suas ações. A propriedade e a posse surgiram como forma decorrente do culto aos mortos que deveria ser um ato exclusivo e privativo dos parentes. Dessa forma, ao serem sepultados, o local tornava-se sagrado para aquela família e a área tornava-se particular e nenhuma pessoa estranha àquela família poderia tocar no túmulo dos mortos. Na realidade, tanto o túmulo como grande área em volta tornava-se propriedade daquela família. Os mortos eram cultuados como deuses, atribuíam-se poderes divinos aos familiares. Fustel de Coulanges afirmava que:
Os mortos eram considerados entes sagrados. Os antigos davam-lhes os epítetos mais respeitosos que pudessem imaginar; chamavam-nos de bons, santos, bem-aventurados. Tinham por eles toda a veneração que o homem pode ter pela divindade a quem ama e teme. No pensar deles, cada morto era um deus[22] .
Os parentes sepultavam seus defuntos na extensão de terra delimitada para a casa onde residiam, e seus mortos só deveriam ser cultuados pela sua família, “o banquete fúnebre, devia realizar-se no próprio local onde os mortos repousavam”[23]. Do mesmo modo, ao lar não era permitido juntar duas famílias em uma mesma sepultura. A família definitivamente se apossava daquelas terras como consequência da posse de seus antepassados.
Essas terras eram protegidas de maneira a separar as famílias. O lar precisava ser protegido, e como a família deveria continuar em torno de seus deuses e de seus mortos, edificavam sua casa e seu altar e lá cultuavam o “fogo sagrado”[24]. As famílias protegiam o solo onde estavam enterrados seus ancestrais, que passou a ser considerado como propriedade dos mortos e da família.
Como consequência, tem-se que o altar e a sepultura não poderiam ser deslocados. Aos homens não havia outra solução, se não construir suas moradas em torno do local onde habitavam os mortos. A propriedade vinha como decorrência da posse, conforme salienta o Coulanges: “Por causa do altar irremovível e da sepultura permanente, a família tomou posse do solo. (...), o lar havia ensinado aos homens a construir casas. A casa é consagrada pela presença perpétua dos deuses; ela é o templo que os guarda”[25].
Diferentemente do que hoje ocorre, “não foram as leis, mas a religião, que primeiramente garantiu o direito de propriedade”[26]. Essas posses também possuíam um caráter que excluíam a todos os outros – erga omnes, segundo Coulanges, “Esses mortos tomaram posse do solo, vivem sob esse pequeno outeiro, e ninguém, a não ser da família, deve tentar se meter com eles”[27].
Na realidade, outras teorias existem acerca da origem da posse, como as que surgiram em Roma, na qual Londres da Nóbrega Vandick, citado por Antônio Carlos Wolkmer, esclarece que quando:
Os patrícios se constituíram no segmento social hegemônico da sociedade romana antiga, pois (...) somente eles gozavam de todos os direitos civis e políticos, como, por exemplo, o ius suffragi, que consistia na faculdade de votar nos comícios; o ius honorarium, que era o direito de exercer os cargos públicos; o ius ocupandi agrum publicum, isto é, o direito de posse das terras conquistadas; o direito de adquirir a propriedade de acordo com os processos romanos (ius commerci); o direito de contrair casamento (ius conubi). No entanto, ao lado dessas prerrogativas era imposta aos patrícios a obrigação de pagar os impostos (ius tributi), como também a de prestar o serviço militar (ius militae)[28]. (grifo acrescentado)
Mais adiante, afirma Wolkmer, ao citar Valcir Gassen, na apresentação da primeira edição de sua obra, “que a posse da terra nasce das relações concretas entre os homens, sendo que, na trajetória da propriedade, esta sempre foi o mais importante “meio de produção” da riqueza”[29].
A posse sempre foi um instituto conturbado, tanto pela suas origens quanto por seus conceitos, de maneira a existirem inúmeras teorias que tentam definir o que seja posse.