3. Sobre o Conceito de Posse
Antes de iniciar-se acerca do conceito de posse, surge o questionamento sobre a distinção do que é posse e do que é propriedade, pois é comum a confusão entre os dois institutos. Como relatava Ihering em sua “Teoria Simplificada da Posse: “Um dos traços pelos quais o jurista se distingue de qualquer outro, é a diferença que ele estabelece entre as noções de posse e de propriedade. Na linguagem comum empregam-se frequentemente estas expressões como equivalentes”. Os romanos já distinguiam claramente a posse da propriedade. “Nihil commune habet proprietas cum possessione”[30].
A confusão geralmente é estabelecida porquanto:
Em geral, o possuidor da coisa é, ao mesmo tempo, seu proprietário; ordinariamente, o proprietário é o mesmo possuidor, e quando subsistir esta relação normal, é inútil estabelecer uma distinção. Mas, desde o momento em que a propriedade e a posse se separam, o contraste surge imediatamente, e com uma tal evidência, que não pode passar despercebido, nem mesmo àqueles que não são juristas [31].
Ademais a posse, sem a propriedade, na maioria dos casos, é temporária. O proprietário, quando exercer a posse direta, tem a posse permanente e plena.
Outra controvérsia suscitada em torno da posse é saber se ela é fato ou direito. Duas teorias, denominadas de Teoria Subjetiva da Posse, de Savigny, e Teoria Objetiva da Posse, de Jhering, são as que prevalecem hoje no estudo doutrinário sobre o tema.
Para Savigny, a posse é um fato, que é igual ao corpus (elemento objetivo) mais o animus (elemento subjetivo). Corpus é a presença ou relação direta do homem com a coisa, caracterizando o possuidor que é aquele que “pode sentar sobre a coisa, segurá-la, detê-la, conservá-la em seu poder”[32]. “Animus é o elemento subjetivo da posse, é a intenção de ter a coisa como se fosse dono”. Entretanto, para Jhering, bastava o corpus, pois ele era suficiente para caracterizar a posse.
A doutrina prevalecente é a objetiva de Jhering, adotada pelo vigente Código Civil, que considera a posse um direito, bastando, para caracterizá-la, o corpus. É o que se infere do art. 1.196 do Código Civil. Sendo um direito, a posse é tutelada por instrumentos próprios como: “Admitida a concepção de Ihering, a posse vem a ser o exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao da propriedade ou de outro direito real. Não se exige, portanto, que o possuidor tenha animus domini”[33]. E, por ser um direito, recebe a tutela estatal.
Abstraindo-se das estéreis discussões acerca das diferenças entre posse e propriedade, urge estabelecer a finalidade da posse como forma de proteção aos direitos humanos. Como salientam Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves:
Não há mais um interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum;
Enfim, a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à família, mas a reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edificação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano[34].
4. Da Função Social da Posse
Discorrer sobra a função social da posse traz algumas dificuldades de ordem prática, pelo motivo de a mesma não vir disciplinada diretamente em nenhum diploma legal. Infere-se a sua existência como decorrente da função social da propriedade.
A Constituição Federal em três passagens dispõe sobre a função social da propriedade. No caput do art. 5º é assegurado o direito de propriedade. No inciso XXII garante-se o direito de propriedade, mas, logo em seguida, no inciso XXIII, estabelece que “a propriedade atenderá a sua função social”. No art. 170 tem-se que: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade”. O § 2º do art. 182 dispõe que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
No entanto, a partir de alguns preceitos constitucionais vislumbra-se que a função social da posse está implicitamente disposta no texto da Carta Magna como, por exemplo, quando a mesma estabelece que “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade” (art. 191, CF). Surge aí a função social da posse em detrimento da função social da propriedade. Se o proprietário não utilizar a sua propriedade com fins de beneficiar a coletividade e algum possuidor o fizer, este poderá adquiri-la após os trâmites definidos em lei.
Infere-se dos dispositivos citados que a função social da posse possui duas características mutuamente excludentes. De um lado protege o proprietário e por outro pune o proprietário desidioso que não se utiliza adequadamente de suas posses e termina por perdê-la para quem a utiliza de forma a propiciar-lhe benefícios para a toda coletividade. A função social da posse está implicitamente estabelecida na Constituição Federal.
Ana Rita Vieira Albuquerque corrobora com esse entendimento ao declarar que:
A Constituição dispõe acerca da função social da propriedade, verdadeira norma principiológica que obriga o proprietário na medida em que integra o próprio conteúdo do conceito de propriedade. A Constituição, através do seu art. 6º, também amplia e dá relevo aos direitos sociais, às políticas de habitação, de saúde, de segurança social, de trabalho, de educação e cultura, entre outras, garantindo o conteúdo mínimo dessas políticas, ainda que entendidas como diretivas da legislação, direito a prestações ou, no entender de Vieira de Andrade, pretensões jurídicas.
Desta forma, os estudos acerca da função social da posse têm sua base teórica não apenas na compreensão do Direito Privado conforme traçado em nosso Código Civil, mas sobretudo através da análise dos preceitos e valores estabelecidos na Constituição da República. [35]. (grifo da autora)
O proprietário não pode mais se valer do direito absoluto que lhe era conferido por dispositivos legais de outrora. Hoje ele tem de destinar um objetivo à propriedade, sob pena de outro fazer. Nas palavras de Cristiano Farias e Nelson Rosenvald, “é necessário aprender a conviver com prováveis hipóteses de colisão entre os princípios da função social da propriedade e da função social da posse. Essa tensão será solucionada pela lei ou pelo magistrado, na vertente do princípio da proporcionalidade”[36].
Ana Rita, justificando acerca da existência e necessidade de uma função social da posse, esclarece que:
Os valores fundamentais e os objetivos do Estado Brasileiro previstos na Constituição de 1988 visam sobretudo elevar o conceito de cidadania, através da valorização da pessoa humana. Evidentemente que tais valores projetam-se para todos os domínios jurídicos, inclusive para o direito privado, como vimos, e, consequentemente, informam o instituto da posse, evidenciando ainda mais o seu aspecto social imanente. Justamente em um sistema jurídico que tem por fim a pessoa humana, daí resultando a natureza teleológica dos argumentos sistemáticos, não se pode deixar de ter por incluída implicitamente, como princípio constitucional positivado, a função social da posse. [37].
Ademais, como salienta Ihering: “A posse sem um proveito possível seria a mais inútil das coisas do mundo; seu valor consiste unicamente na função indicada: é um meio para alcançar um fim”[38]. Trata-se a posse, portanto, em um instrumento para alcançar a verdadeira função social da propriedade, pois essa sem aquela não existe[39].
Digno de nota é a Apelação Cível - AC 13197-GO, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que teve como Relator o Desembargador Federal João Batista Moreira, em julgamento no dia 15 de outubro de 2008, no qual são suspensos os efeitos de hipoteca entre Construtora e o Agente Financeiro em prol da função social da posse dos atuais ocupantes do imóvel, in verbis:
Ementa
1. De acordo com o enunciado da Súmula 308 do STJ, “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
2. Merece reforma a sentença em que se julgou improcedente o pedido de terceiros possuidores que adquiram o imóvel mediante contrato particular de cessão de direitos, sob o fundamento de que não se lhes aplica a Súmula 308 do STJ.
3. Não se pode afastar a boa-fé dos autores, considerando-se que quando da celebração do contrato de cessão de direitos, em 7.2.2003, já havia acórdão deste Tribunal, em sede de embargos de terceiro opostos pelo primeiro comprador, desconstituindo a penhora que recaía sobre o imóvel.
4. Nos termos do Enunciado 303 do CEJ/CJF, “considera-se justo título para presunção relativa da boa-fé do possuidor o justo motivo que lhe autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Compreensão na perspectiva da função social da posse”. [40].
Vale salientar que o STF não admitia embargos de terceiro à penhora e a promessa de compra e venda se não estivessem registrado em cartório, pois tratam-se de direitos reais – conforme Súmula 621 do STF, de 17 de outubro de 1984: “NÃO ENSEJA EMBARGOS DE TERCEIRO À PENHORA A PROMESSA DE COMPRA E VENDA NÃO INSCRITA NO REGISTRO DE IMÓVEIS”[41]. No entanto o STJ superou esse entendimento com a Súmula 84 de 02 de julho de 1993, in verbis: “É ADMISSÍVEL A OPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE TERCEIRO FUNDADOS EM ALEGAÇÃO DE POSSE ADVINDA DO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL, AINDA QUE DESPROVIDO DO REGISTRO”[42].
Verifica-se que o entendimento do STF é anterior a atual Constituição, no qual foi superado pelo entendimento posterior do STJ, que privilegiou a posse em conformidade com sua função social. Os embargos de terceiro podem ser utilizadas no caso de esbulho judicial, quando um terceiro que não foi parte em um Processo ache-se prejudicado, conforme o disposto no art. 1.046 do Código de Processo Civil: “Quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, sequestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer lhe sejam manutenidos ou restituídos por meio de embargos”.
Vale ressaltar que o Código Civil estabelece a prioridade à função social da posse, mesmo que ela tenha decorrido de ato ilícito, é o que se depreende da dicção do art. 1.208: “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”. Assim, se uma pessoa, utilizando-se de violência, invade a propriedade de alguém e esse queda-se inerte, o esbulhador terá seus direitos de possuidor tutelado pelo Estado após a cessação da violência. Situações também válidas para o esbulho feito às escuras ou clandestinamente. Legitima também esse entendimento o art. 1.224, ao dispor que “só se considera perdida a posse para quem não presenciou o esbulho, quando, tendo notícia dele, se abstém de retornar a coisa, ou, tentando recuperá-la, é violentamente repelido”.
É evidente que a jurisprudência dos tribunais e a doutrina já consolidaram o entendimento de que o direito do possuidor que esteja dando uma destinação social à sua posse prevalece sobre o direito do real proprietário desidioso.
5. Das Cláusulas Gerais da Função Social da Posse
As cláusulas gerais, ou normas de conteúdo aberto, são normas dotadas de grande teor axiológico que remetem o aplicador a um juízo de valor na apreciação do caso concreto. Esses preceitos, ao contrário das regras ditas casuísticas, não trazem em seu bojo a enumeração dos casos que seriam enquadradas na norma. Dessa forma, as cláusulas gerais da função social da posse dizem respeito àquelas normas de conteúdo aberto que disciplinem o instituto da posse em sua correlação com os interesses sociais.
Corroborando esse entendimento, tem-se que, de acordo com Caroline Dias Andriotti e Guilherme Calmon Nogueira da Gama, que:
A expressão função social deve ser tida como cláusula geral, permitindo ao jurista uma reflexão e construção de acordo com os valores éticos, econômicos e sociais. Não pode o intérprete e aplicador do direito se manter apático diante das transformações ocorridas no seio social, mormente quando esse comando é determinado pelo próprio legislador constituinte[43].
Ao analisar os 35 artigos que o Código Civil reservou ao estudo da posse, percebe-se que a maioria utiliza-se da técnica de legislar por meio de cláusulas gerais ou normas de conteúdo aberto, técnica essa perfeitamente necessária, visto que os casos relativos às situações possessórias, em sua maioria trazidos ao Judiciário, necessitam de valoração do julgador baseada em fundamentos de eticidade e justiça.
Dessa forma, quando se fala sobre a função social da posse, implicitamente entende-se estar-se falando sobre cláusula geral de função social da posse.
Ademais, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam:
Exemplo de cláusula geral relacionado imediatamente com a função social da posse é encontrado no § 4º do art. 1.228 do Código Civil: “O proprietário também poderá ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”.
A intenção do legislador, ao elaborar tal dispositivo legal, foi, de acordo com Sílvio de Salvo Venosa, “a tentativa de regularizar tantas e tantas ocupações urbanas e rurais neste país, que já se apresentam como definitivas e consumadas”[44].
É também cláusula geral de função social da posse o disposto no art. 1.201 do Código Civil, que estabelece: “é de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”.
Observa-se nesses dois últimos exemplos, que o legislador, propositadamente, deixou as normas com seus conteúdos excessivamente abertos, remetendo aos julgadores a tarefa de valorar cada situação no caso concreto de maneira a preencher as lacunas das normas em questão. Ao exporem seus juízos de valor, os magistrados deverão atentar se as partes utilizaram-se da “boa-fé” e em que medida; o que seria considerável número de pessoas, e se elas realizaram obras e serviços considerados de interesse social e econômico relevante. Como subsumir o fato à lei, sem empregar um juízo de valor? E acerca do vício? Essas e outras questões fazem parte do dia-a-dia daqueles que utilizam das cláusulas gerais para resolver situações litigiosas com alta carga de elemento axiológico. Os dispositivos legais não trazem, a exemplo das normas casuísticas, a abrangência de todos os casos na composição do litígio em tela.