6. Dos Instrumentos da Função Social da Posse no Sistema Jurídico Brasileiro
A posse como um poder que se tem sobre a coisa é protegida pelo sistema jurídico brasileiro, embora não se tenha certeza da propriedade, pois ao se almejar a paz social, torna-se imprescindível o estado de aparência. Dessa forma, se o possuidor que fosse esbulhado de sua posse tivesse “que provar sempre, e a cada momento sua propriedade ou outro direito real na pretensão de reaquisição do bem, a prestação jurisdicional tardaria e instaurar-se-ia inquietação social”[45], estabelecendo-se o caos social.
Nesse sentido, a posse torna-se independente da propriedade e “passa a ser vislumbrada como uma situação fática merecedora de tutela, que decorre da necessidade de proteção à pessoa, manutenção da paz social e estabilização das relações jurídicas”[46].
Diante disso é que o Código de Processo Civil veda em seu art. 923 que “na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar a ação de reconhecimento do domínio”. É nesse sentido que Cristiano Farias e Nelson Rosenvald explicam que:
SAVIGNY justificava a tutela possessória, em respeito à paz social e à negação à violência, pela interdição ao exercício arbitrário das próprias razões e tutela da pessoa do possuidor. Para o notável mestre, proteger-se-ia o possuidor por não se permitir a abrupta alteração de uma situação de fato social e economicamente consolidada, pela prática de ato ilícito em afronta a garantias fundamentais[47].
Com a finalidade de proteger a posse, o CPC elenca três tipos de ações. No art. 926 está disposto que “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no de esbulho” e, logo no artigo seguinte, mais uma vez estabelece que o possuidor não necessita provar a propriedade e sim a posse, conforme inciso I do art. 927. Igualmente é o disposto que se tem no § 2º do art. 1.210 do Código Civil: “Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa”.
Os dois primeiros meios de defesa da posse estão elencados no art. 926, que são a ação de manutenção de posse e a ação de reintegração de posse. A primeira cabe, quando da turbação e a segunda no caso de esbulho. A outra ação é a do interdito proibitório que cabe, segundo a dicção do art. 932, quando “o possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito”. Nesse caso o que existe é ameaça, a posse ainda não foi molestada, existe o receio no qual o possuidor pode-se valer dos interditos para precaver-se de um futuro esbulho ou turbação.
O Código Civil também dispõe sobre esse entendimento ao declarar, em seu art. 1.210, que “o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado”.
Ademais, o § 1º do mesmo artigo autoriza ao possuidor turbado, ou esbulhado, a utilizar-se de suas próprias forças nos atos de defesa de sua posse, contanto que faça logo e não utilize além do necessário à manutenção, ou à restituição da posse.
Essas são as formas que o possuidor tem contra aqueles que ameacem sua posse. É o desforço imediato ou a legítima defesa, nos casos de turbação ou esbulho. Entretanto, existem outras formas de defesa que servem também como aquisição da propriedade contra aqueles que não destinaram uma função social às suas propriedades.
Dentre eles, pode-se destacar a usucapião, a expropriação e a concessão de direito real de uso.
6.1. Da Usucapião
A palavra usucapião tem sua origem na junção das expressões latinas usus (uso) acrescido de capio (tomar), pelo que se pode traduzir como tomar pelo uso (Enciclopédia Soibelman). Ainda, de acordo com o Dicionário Jurídico Brasileiro, usucapião é o “modo de conseguir bem imóvel ou móvel, através da posse pacífica, por apenas certo tempo. No conceito de Clóvis Beviláqua, ‘é a aquisição do domínio pela posse prolongada’”[48].
É um instituto antigo, pois já vinha consagrado na Lei das Doze Tábuas na qual trazia variadas regras acerca da usucapião, entre as quais se pode destacar: “As terras serão adquiridas por usucapião depois de dois anos de posse, as coisas móveis depois de um ano”[49].
A usucapião, que é forma originária de aquisição[50] de propriedade, e se caracteriza pelo uso contínuo e por determinadas condições de terras particulares.
O instituto da usucapião também recai sobre bens móveis, como se depreende do art. 1.260 do Código Civil, no entanto esse estudo limita-se a posse e a usucapião de bens imóveis.
A usucapião pode ser de três espécies: a ordinária, a extraordinária e a especial.
A usucapião ordinária está disciplinada no art. 1.242 que dispõe que a propriedade do imóvel pode ser adquirida por aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Podendo, no entanto, esse prazo cair para cinco anos “se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”, conforme dicção do parágrafo único do mesmo artigo.
Verifica-se a essencialidade do caráter da boa-fé e do justo título, a fim de que o possuidor adquira a posse, além do prazo dos dez anos de posse mansa e pacífica. Outro benefício trazido pelo Código é a possibilidade de poder-se acrescentar o tempo da posse de seus antecessores (accessio possessionis) para fins de contagem para a usucapião desde que todas sejam contínuas, pacíficas e possuam justo título e de boa-fé de maneira a colher os benefícios da usucapião ordinária.
Tem-se também a usucapião extraordinária, disciplinada pelo art. 1.238 do Código Civil, que exige, para sua implementação, a posse de quinze anos ininterrupta e sem oposição, e exercida com o animus domini, de forma contínua, mansa e pacífica. Nessa situação, dispensa-se o justo título e a boa-fé, mas o tempo é dilatado para quinze anos. Entendendo-se como justa a posse que não seja violenta, clandestina ou precária e de boa-fé, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa, sendo que o justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. (artigos 1.200 - 1.201, Código Civil)
Entretanto, o parágrafo único desse dispositivo dispõe que o prazo poderá ser reduzido para dez anos, se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Diante dessas melhorias o requisito temporal cairia de quinze para dez anos.
Interessante observar que, não obstante o Código Civil não exigir o animus domini para a caracterização do possuidor, esse elemento subjetivo é exigido para a concretização dos requisitos da usucapião (herança teórica de Savigny). É nesse sentido que Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmarem existir uma:
Ao conceituar a posse da mesma maneira que o seu antecessor, o Código Civil de 2002 filia-se à teoria objetiva, repetindo a nítida concessão à teoria subjetiva no tocante à usucapião como modo aquisitivo da propriedade que demanda o animus domini de SAVIGNY.
Apesar de não haver o requisito do animus domini para a caracterização do possuidor, ele é exigido para a realização dos direitos da usucapião.
Há que se ressaltar que por ser o decurso de tempo requisito para o preenchimento dos direitos à usucapião, tem-se que a mesma deve-se sujeitar às regras em absoluta consonância temporal. Se antes de decorrido o tempo em sua inteireza o proprietário ajuizar ação reivindicatória, os prazos serão interrompidos ou suspensos, conforme a dicção do art. 1.244. “Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”. Também ao que se refere às pessoas contra as quais pode correr a prescrição, nos moldes estabelecidos pelos artigos 197 a 199 do Código Civil. É o entendimento do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul - TJRS, na Apelação Cível que teve como Relatora Elaine Harzheim Macedo:
EMENTA: USUCAPIÃO ORDINÁRIO. JUSTO TÍTULO NÃO CONFIGURADO. LAPSO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA NÃO ALCANÇADO. Contrato particular de promessa de compra e venda, firmado por quem não é o proprietário do imóvel e nem seu representante legal, não caracteriza justo título a reduzir sensivelmente o prazo de aquisição de domínio base no exercício de posse ad usucapionem. Outrossim, o lapso da prescrição aquisitiva ordinária não restou alcançado. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70025901992, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elaine Harzheim Macedo, Julgado em 13/11/2008)[51].
A Constituição Federal traz outro tipo de usucapião, que é a usucapião especial ou usucapião constitucional, com vistas a sedimentar a função social da propriedade. É o que está disposto no art. 183: “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. Essa modalidade de usucapião, segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “é uma das mais claras demonstrações do princípio da função social da propriedade (...), pois homenageia aqueles que com animus domini, residem e/ou trabalham no imóvel em regime familiar, reduzindo os períodos aquisitivos da usucapião para cinco anos”[52].
Esse tipo de usucapião divide-se, conforme Carlos Roberto Gonçalves, em “usucapião especial rural, também denominada pro labore, e usucapião especial urbana, também conhecida como pró-moradia”[53].
A usucapião especial rural, ou pro labore, tem como finalidade manter o homem no campo, evitando-se as emigrações para os grandes centros urbanos que decorrem das deficiências encontradas nas áreas rurais. Assim sendo, é que a Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981, que dispõe sobre a aquisição, por usucapião especial, de imóveis rurais, em seu art. 12 estabelece que: “Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, possuir como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área rural contínua, não excedente de 25 (vinte e cinco) hectares, e a houver tornado produtiva com seu trabalho e nela tiver sua morada, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de justo título e boa-fé, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para transcrição no Registro de Imóveis”. No entanto, apesar de o citado artigo mencionar 25 (vinte e cinco) hectares, a Constituição Federal, no caput do art. 191, ampliou essa área para 50 (cinquenta) hectares.
Carlos Roberto Gonçalves explica que a:
Usucapião especial rural não se contenta com a simples posse. O seu objetivo é a fixação do homem no campo, exigindo ocupação produtiva do imóvel, devendo neste morar e trabalhar o usucapiente. Constitui a consagração do princípio ruralista de que deve ser dono da terra rural quem a tiver frutificado com o seu suor, tendo nela a sua morada e a de sua família. Tais requisitos impedem que a pessoa jurídica requeira usucapião com base no dispositivo legal em apreço porque ela não tem família nem morada. Tal modalidade não exige, todavia, justo título nem boa-fé[54].
É de bom alvitre lembrar que aos requisitos dispostos na Constituição, há de se adicionar os outros requisitos dispostos em lei, como a prova de que ocupa as terras com o ânimo de dono. Decisão do STF é bastante esclarecedora nesse sentido, quando afirma que:
3. Mera permissão ou tolerância não enseja a declaração da prescrição aquisitiva, faltando ao postulante prova da posse com ‘animus domini’ requisito indispensável na ação de usucapião.
(...)
No tocante ao usucapião especial, os autores não comprovaram os demais requisitos. Ainda que a área seja produtiva e inferior a 50ha, sirva de moradia aos autores, e não sejam eles proprietários de outros imóveis, não provaram o principal requisito, no caso, que detêm a posse com ânimo de donos[55].
A aquisição de propriedade por meio da usucapião especial urbana tem sido utilizada naqueles casos em que o proprietário abandona o imóvel e deixa de cobrar os alugueres estabelecidos no contrato de locação. Se essa situação perdura para além dos cinco anos, o locatório pode utilizar do instituto para a aquisição do imóvel. Jurisprudência do STJ já julgou neste sentido:
(...)
3 - De fato, o conjunto probatório acostado aos autos demonstra que o apelado efetivamente abandonou o imóvel, bem como o contrato de locação, deixando a coisa suscetível de ser usucapida e favorecendo o exercício da alegada posse mansa e pacífica pela apelante, que deixou de pagar os alugueres, com manifesto animus domini ou animus rem sibi habendi (ânimo de ter a coisa como sua).
(...)
5 - O abandono do imóvel pelo apelado, notadamente diante da ausência de cobrança dos alugueres por um longo período, deixa de qualificar o não pagamento destes como simples mora e torna possível sua qualificação como ato que exterioriza o animus domini.
6 - A partir do momento em que o apelado renunciou ao contrato de locação, não dando continuidade à relação locatícia, abandonando o imóvel e deixando de cobrar os alugueres, a apelante passou a ter a coisa como sua, com ânimo de dona, ininterruptamente e sem oposição, transmudou-se a posse para ad usucapionem, apta, portanto, a deflagrar a aquisição da propriedade pela usucapião, desde que observados os requisitos objetivos do tempo e tamanho da área usucapida.
(...)
8 - Diante disso, considerando que a apelante passou a ter a coisa como sua a partir de fevereiro de 1997, quando do ajuizamento da presente ação de despejo, em novembro de 2002, já havia transcorrido prazo superior a cinco anos.
(...)
11 - O instituto da usucapião especial urbana tem por objetivo, como sabido, a efetivação do direito fundamental à moradia, tendo em vista o fato de o possuidor ou ocupante dar à propriedade a exigida função social. Recurso Provido[56].
Carlos Roberto Gonçalves explica que para a utilização da usucapião especial não é necessário o justo título nem a boa-fé, e explica que por se tratar “de inovação trazida pela Carta de 1988, (...) não se incluem no preceito constitucional as posses anteriores. O prazo de cinco anos só começou a contar, para os interessados, a partir da vigência da atual Constituição”[57]. Pois, não fosse dessa forma, a lei teria um caráter retroativo para as posses anteriores, o que ocasionaria prejuízos aos proprietários pela vigência de normas posteriores aos fatos.
Quanto à usucapião urbana individual e coletiva, está prevista na Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto das Cidades. Tal dispositivo veio para regular os artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Como se sabe, a população rural tende a migrar para as grandes cidades, o que exigia a elaboração de um diploma que estabelecesse normas de política urbana de forma a assegurar o bem-estar social com a regulação do uso da propriedade em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, conforme o disposto no art. 2º da referida norma.
Conforme Regis Fernandes de Oliveira, citado por Carlos Roberto Gonçalves, a necessidade dessa lei adveio:
Das ocupações irregulares nos grandes conglomerados urbanos. A invasão de áreas, a falta de fiscalização, a invasão de mananciais, o medo da perda da posse por famílias de baixa renda, a falta de um ‘papel’ que lhes dê legitimidade sobre a posse, a venda de ‘propriedades’, barracos e construções malfeitas, tudo a gerar um conflito social sem precedentes... O que mais querem os moradores é a regularização da ocupação. Para tanto, agora, a lei veio a trazer alguns instrumentos de impacto urbano que podem envolver a legitimação da posse, pacificando a sociedade e dando às grandes cidades condições de desenvolvimento saudável[58].
Em parte, esse instituto tenta colocar um freio no crescimento desordenado das grandes cidades, bem como regulamentar as ocupações de terras e favorecer o bem-estar social, além de conceder uma destinação digna a muitos imóveis que se acham desocupados nos grandes centros urbanos. Assim sendo, nessa Lei estão dispostos dois tipos de usucapião que são a urbana individual e a urbana coletiva, que fazem parte dos instrumentos utilizados pelo Estatuto da Cidade para alcançar sua finalidade em promover o bem-estar social.
É indispensável observar que, a despeito da concessão de usucapião aos que preencherem os requisitos legais, os tribunais vêm observando com o máximo rigor sobre tais requisitos de forma a não estabelecer-se a usucapião indevidamente. É o caso de processo de apelação cível de 19 de março de 2008, do TJRS que teve como Relator Pedro Celso Dal Pra, verbi gratia:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO. AUSÊNCIA DE PROVA DA UTILIZAÇÃO DO IMÓVEL PARA MORADIA. A posse própria do pretendente á usucapião especial urbana e/ou sua família no imóvel é requisito imprescindível para acolhimento do seu pedido, por força da regra contida no art. 183 da Constituição da República. Inviabilidade, assim, pretender somar a posse do proprietário anterior, ao escopo de implementar o requisito temporal. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70022144687, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 28/02/2008)[59].
6.2. Da Expropriação
A propriedade, outrora considerada como direito absoluto, poderá ter seus direitos relativizados ou mesmo extintos, se seu legítimo dono não cumprir com os requisitos mínimos estabelecidos em lei. Afora a perda pela usucapião, o proprietário ainda corre o risco de ficar sem suas terras por outras formas estabelecidas em lei, como na expropriação. No entanto, na expropriação ou desapropriação indireta haverá uma indenização como forma de reparar o prejuízo sofrido pelo proprietário. É nessa linha que Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald explicam que “a desapropriação se explica pelo fato do proprietário ser privado de seu direito subjetivo mediante indenização, ao contrário da aquisição pela usucapião que não comporta qualquer tipo de compensação ao antigo titular”[60].
Na mesma linha, Carlos Roberto Gonçalves afirma que a expropriação ou “desapropriação é instituto de direito público, fundado no direito constitucional e regulado pelo direito administrativo, mas com reflexo no direito civil, por determinar a perda de propriedade do imóvel, de modo unilateral, com a ressalva da prévia e justa indenização”[61].
Fundamentado no texto constitucional, o Código Civil dispõe sobre a expropriação em seu art. 1.275, ao afirmar que se pode perder a propriedade por desapropriação (inciso V), e no § 3º do art. 1.228, no qual dispõe que “o proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente”. Existe também outra forma de desapropriação que é aquela estabelecida no § 4º, no qual estabelece que se “o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”. A justa indenização em dinheiro ao proprietário será feita na forma do § 5º.
Infere-se do inciso XXIV do art. 5º da Carta Magna que as desapropriações podem acontecer por necessidade ou utilidade pública, e/ou por interesse social.
Dessa forma, pode-se ter a expropriação por interesse social quando uma área é ocupada por um considerável número de pessoas, o que viabiliza ao Judiciário conceder a propriedade a essas pessoas com a justa indenização ao proprietário, o que caracteriza uma desapropriação judicial por não ter sido dada nem pelo Legislativo nem pelo Executivo. Há que se convir que essa indenização nem sempre é feita em dinheiro, podendo também ser realizada com Títulos da Dívida Agrária - TDA, pagáveis em vinte anos.
É o que dispõe o art. 184 e seus parágrafos: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei”. A ação de desapropriação, pela União, será executada após o decreto que declarar o imóvel como de interesse social (§ 2º).
Apesar de a indenização pelo não cumprimento da função social ser em TDA, as benfeitorias úteis e necessárias deverão ser indenizadas em dinheiro. Como forma de estimular e facilitar as transferências de propriedade, haverá isenção dos impostos federais, estaduais e municipais.
Em Recurso Especial do Rio Grande do Sul de 19 de novembro de 2008, o Relator Ministro LUIZ FUX, assim se pronunciou acerca de desapropriação para fins de reforma agrária:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. EXECUÇÃO. DESAPROPRIAÇÃO. SUBSTITUIÇÃO DE PRECATÓRIO POR TDA's. POSSIBILIDADE.
1. A desapropriação para o fim de reforma agrária compete à União, tendo como fundamento o interesse social, e como objeto o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.
2. A expropriação perfaz-se mediante prévia e justa indenização em Títulos da Dívida Agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 (vinte) anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei, no que pertine à terra nua, sendo certo que as benfeitorias úteis e necessárias devem ser indenizadas em dinheiro, via de regra (artigo 184, § 1.º, da CF/1988).
3. A interpretação teleológica da norma constitucional conduz ao entendimento de que as benfeitorias citadas são indenizadas em dinheiro, porquanto essa reparação faz-se de forma mais breve em razão da distinção entre a perda de propriedade adquirida outrora e de benfeitorias empreendidas a posteriori, por isso que razoável entrever-se regra mater que tem como destinatário favorecido o expropriado.
(...)
5. Interpretação constitucional à luz do cânone da razoabilidade e da ponderação de bens, técnica escorreita de interpretação pós-positivista das normas constitucionais na visão de Dworkin e Alexy [62].
O STJ também é do entendimento que a desapropriação indireta serve para solucionar conflitos concretos entre o direito de propriedade e o princípio da função social, conforme Recurso Especial nº 628588/SP de 01/08/2005, que teve como Relator para o Acórdão, o Ministro Teori Albino Zavascki; eis o entendimento:
A chamada “desapropriação indireta” é construção pretoriana criada para dirimir conflitos concretos entre o direito de propriedade e o princípio da função social das propriedades, nas hipóteses em que a Administração ocupa propriedade privada, sem observância de prévio processo de desapropriação, para implantar obra ou serviço público.
6.3. A Concessão de Direito Real de Uso
Hely Lopes Meirelles define a concessão de uso como “o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo a sua destinação específica”[63], ou seja, é um contrato intuitu personae ou personalíssimo, pois a utilização é exclusiva do particular, sinalagmático pois é bilateral, executado entre a Administração Pública e o particular, poderá ser oneroso ou gratuito e é também comutativo pois os contratantes conhecem ab initio suas respectivas obrigações.
A concessão de direito real de uso foi introduzida no art. 1.225 do Código Civil, por meio da Lei nº 11.481, de 2007, sendo lhe atribuída o privilégio de direito real por estar inserida dentro do rol taxativo do art. 1.225:
Mediante a concessão de direito real de uso, a administração pública pode ceder o uso de bens de seu domínio para o particular, de forma remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, sob a forma de direito real resolúvel, para o desenvolvimento e implementação de atividades socioeconômicas que sejam relevantes para o interesse público. É o que se depreende do art. 7º, caput, do Decreto-lei nº 271, de 28.2.1967, conjugado com o disposto no art. 17, § 2º, da Lei nº 8.666, de 21.6.199 [64].
O art. 17 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, Lei da Licitações e Contratos para a Administração Pública, dispõe que: “A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas: f) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública; h) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis de uso comercial de âmbito local com área de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) e inseridos no âmbito de programas de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública.
Ainda de acordo com o mesmo artigo do dispositivo legal ora comentado, pode haver rescisão automática da concessão, dispensada notificação, nos casos em que haja declaração de utilidade, ou necessidade pública ou interesse social. Também a alienação aos legítimos possuidores diretos ou, na falta deles, ao Poder Público, de imóveis para fins residenciais construídos em núcleos urbanos anexos a usinas hidrelétricas, desde que considerados dispensáveis na fase de operação dessas unidades e não integrem a categoria de bens reversíveis ao final da concessão.
É dentro desses aspectos que o Poder Público realiza a função social destinando bens de sua propriedade para o uso particular.